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Humano, demasiado humano

“Tudo evolui, não há realidades eternas, tal como não há verdades absolutas.”

9/7/2023

Elis Regina cedendo sua voz e imagem em um filme comemorativo aos 70 anos da Volkswagen no Brasil, juntamente com sua filha Maria Rita, embaladas pela inesquecível música de Belchior “Como nossos pais”, causou, com certeza, grande impacto, principalmente aos mais idosos, que tiveram a oportunidade única de rever a cantora que encantou várias gerações e agora ligada a uma campanha publicitária. Como se durante todo este tempo estivesse escondida “atrás da porta”, uma das canções que a imortalizou como cantora. É a inteligência artificial dando uma demonstração de seu imenso repertório.

O homem, pelo seu próprio comportamento e em razão da inteligência de que é dotado, carrega uma característica investigativa e pesquisadora voltada para conhecer os mistérios que o desafiam e rondam seus mundos exterior e interior. Quer penetrar em todos os segredos da natureza, dominar os mares, ares, montanhas, árvores, animais e tudo mais, numa verdadeira operação de cabo de guerra, em que, forçosamente, devem prevalecer sua conquista e superioridade. 

Mas, nem sempre consegue atingir seus objetivos. Nada pode fazer diante de um terremoto, de um tsunami, de uma tempestade, de uma erupção vulcânica, a não ser, preventivamente, comunicar a iminência do perigo. Mas, mesmo assim, prevalece a figura do dominador, do senhor gerenciador de todos os fenômenos naturais, sem freios e contrapesos. Se conseguiu benefícios para aperfeiçoar e otimizar sua vida, acumula prejuízo, pois deixa de recompor e preservar a natureza, que tem suas próprias e imutáveis regras.

O conhecimento vai refinando cada vez mais e o espírito desbravador se volta para a descoberta do próprio homem. O nosce te ipsum, que ilustra o frontal do Oráculo de Delfos, empresta seu significado e aliando-se às técnicas revolucionárias da biotecnologia e da biotecnociência vai à busca de um progresso que ultrapassa e em muito o “Humano, demasiado humano”, profetizado por Nietzche em sua obra que leva este nome e é indicada para pessoas com espíritos livres.

Agora, o homem passa a ser pesquisador de si mesmo e intensifica suas pesquisas para desvendar as curas de doenças consideradas irreversíveis, que é o desejo de toda humanidade e, ao mesmo tempo, sorrateiro, caminhando silenciosamente, tenta fazer um pacto com as células para entrar em seu universo, conhecer suas funções e seus comandos genéticos, com a correta distribuição dos genes. É a era do homo digitas.

O ser humano, desta forma, posiciona-se no núcleo das atividades médico-científicas, que devem pautar seu conhecimento vinculado aos padrões éticos apontados pela sociedade, como também observar o juramento hipocrático prestado, é o destinatário de toda produção que busca as melhores condições de saúde e vida, o que impede, por si só, o nefasto empreendimento como construtor de si mesmo. 

A ciência é colocada à disposição do homem, que, no exercício de sua autonomia de vontade, mirando os princípios norteadores da ética, vai decidir a respeito dos rumos que ela irá percorrer, observando sempre os critérios de conveniência e necessidade. As experiências realizadas com humanos nas guerras mundiais foram suficientes para espancar definitivamente qualquer tentativa de construção artificial de outro modelo.  Cada homem é uma unidade, insubstituível na dimensão estritamente pessoal de sua vida, quer seja na escolha do parceiro, na opção vocacional, na conduta social. Não se qualifica o ser humano como uma verdade corporal, orgânica, racional, biológica ou sociológica. Ele é a síntese da representatividade da própria vida, que lhe confere o potencial para realizar suas aspirações.

O desenvolvimento das pesquisas na área da embriologia, por exemplo, tem que ser visto com muita cautela, buscando sempre o respeito à dignidade humana para que não se corra o risco de ingressar na geração artificial, afastando todos os valores humanos do casal que desejou a procriação. Enquanto as técnicas são direcionadas para a solução dos problemas de infertilidade, tem sua aceitação e aprovação popular. Quando se distancia das metas optadas pela sociedade, como, por exemplo, a programação para fazer nascer somente homens com características previamente selecionadas, ou a clonagem, a rejeição é total. 

O grupo social conhece as regras permissivas para uma convivência de aceitação harmônica. O homem é proprietário de um patrimônio chamado corpo humano, detentor de seus atos, administrador deste inesgotável latifúndio, que vem revestido de uma tutela especial que lhe confere personalidade e o torna-se sujeito de direitos e obrigações. Ao mesmo tempo em que é um patrimônio individualizado, carrega a semente universal, que irá proporcionar a continuidade da humanidade. 

Justamente pela sua unicidade, que é a forma pela qual se apresenta diante de um grupo social e adquire a qualidade de pessoa humana e assim se torna conhecido, com suas virtudes, predicados e defeitos, não pode ser reprisado e nem representado por outro modelo idêntico. Nem mesmo o avanço das tecnologias mais avançadas têm o condão de modificar a natureza humana, que é infinitamente perene, apesar de que, como afirmou Nietzche no livro referido: “Tudo evolui, não há realidades eternas, tal como não há verdades absolutas.”

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Coordenação

Eudes Quintino de Oliveira Júnior promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde e advogado.