Meio de campo

Notas gerais sobre a cláusula moral em contratos de patrocínio esportivo

Notas gerais sobre a cláusula moral em contratos de patrocínio esportivo.

22/7/2020

Texto de autoria de Tiago Gomes e Marcel Belfiore

Um bom contrato de patrocínio esportivo – porque há muitos maus contratos de patrocínio, em que não se busca qualquer alinhamento entre as identidades de patrocinador e patrocinado – é um típico exemplo de associação entre as marcas do patrocinador e do atleta ou entidade patrocinada.

Ao associar a sua marca à de um atleta ou entidade esportiva, o patrocinador busca uma identidade afetiva com seus consumidores por meio de seus ídolos. É como se a marca patrocinadora destacasse a sua identificação com um estilo de vida saudável, com o talento, a superação, o desportismo, e, naturalmente, com as glórias. Obviamente, com isso, busca também identificar-se com as paixões que o esporte suscita e sempre suscitou em seus adeptos e admiradores ao redor de todo o mundo.

Por outro lado, o atleta ou entidade, ao associar a sua marca à de uma empresa patrocinadora declara que aquela é uma marca que tem valores similares aos seus. Que compartilha de seus valores.

Não à toa, em inglês, os contratos de patrocínio são chamados endorsements. Ou seja, por meio dos contratos de patrocínio, marcas e atletas endossam um ao outro, reforçando aos seus respectivos consumidores ou fãs o mútuo apoio e confiança que conferem um ao outro.

Em se tratando de uma associação de marcas há exemplos de relações simbióticas, como a parceria entre Michael Jordan e a Nike, em que uma marca praticamente não pode ser dissociada da outra, e ambas se fortaleceram com a relação.

Mas há, também, o risco de associações tóxicas, que podem estragar a reputação de um patrocinador ou de um patrocinado. Detentor de incríveis 12 medalhas olímpicas, um dos poucos a vencer Michael Phelps em provas individuais em Jogos Olímpicos, recordista mundial, jovem, bonito, Ryan Lochte era um queridinho dos fãs e, consequentemente, dos patrocinadores. Até que, durante os Jogos de 2016, no Rio de Janeiro, alegou ter sido vítima de um assalto para justificar uma baderna em um posto de gasolina. A repercussão mundial que se seguiu foi devastadora para sua imagem, e, por consequência, para a de seus patrocinadores.

Para prevenir situações deste tipo, a partir de conceitos que foram inicialmente construídos para a indústria do cinema, os contratos de patrocínio esportivo nos Estados Unidos passaram a estabelecer o que se convencionou denominar de “cláusula moral”. Em função de referida cláusula, caso o patrocinado viesse a praticar qualquer ato que contrariasse aos valores e normas defendidas pela patrocinadora, esta poderia vir a rescindir o contrato, sem o pagamento de qualquer multa pela rescisão, ou, em certos casos, inclusive mediante a cobrança de indenização da parte infratora.

Em um mundo globalizado, com marcas atuando em todo o planeta, e patrocinando atletas de todo o mundo, essa cláusula passou a se tornar cada vez mais comum em contratos regidos pela lei brasileira. E, embora ainda padeçam de uma mais detida análise da jurisprudência acerca de sua licitude à luz do artigo 122 do Código Civil, à medida em que podem condicionar a eficácia de um contrato ao arbítrio de uma das partes, seu emprego passará a ser cada vez mais comum também no Brasil, e as discussões ao redor de sua aplicação passarão a ser também relevantes por aqui.

Diante disso, a experiência internacional demonstra uma série de questões que merecem atenção. Destacam-se dois pontos que recentemente vêm preocupando patrocinadores e patrocinados em relação à invocação de referida cláusula.

O primeiro é a exposição em redes sociais. Atletas e equipes esportivas costumam atrair em suas redes sociais um enorme contingente de pessoas. A possibilidade de alcançar um universo de pessoas diretamente interessado nas áreas de atuação do atleta ou equipe torna essas redes sociais um poderoso instrumento de marketing para marcas e patrocinadores. Não é por outro motivo que esses canais passaram a ser, possivelmente, a maior fonte de receitas de uma grande quantidade de atletas e equipes esportivas.

O outro lado da moeda é que o amplo alcance dessas ferramentas também pode servir para estragar reputações. Em um mundo extremamente polarizado, imagens e comentários fora de contexto podem ser suficientes para ferir suscetibilidades e contaminar, para uma parcela da população, tudo o que está associado àquele perfil. Acontece que marcas normalmente anseiam se comunicar com todos os espectros políticos e isto pode ser tornar um problema de imagem. No mesmo campo da possibilidade de arruinar reputações, há as situações absurdas que desagradam a todos. Parece ser o caso recente do comentário do CEO da Crossfit, Inc, Greg Glassman, que comparou o assassinato policial de um homem negro nos EUA à pandemia de coronavírus. O resultado imediato foi a perda de uma série de contratos de patrocínio, inclusive o da gigante de artigos esportivos, Reebok, longamente associada ao sistema de prática esportiva criado por Glassman.

O segundo ponto de atenção diz respeito à possibilidade de atletas ou entidades esportivas também utilizarem a cláusula moral a seu favor contra seus patrocinadores, para proteger suas reputações, um ativo que lhes é tão caro quanto o é para as patrocinadoras. É célebre a disputa entre o time de beisebol Houston Astros para rescindir o contrato de patrocínio de seu estádio com a Enron, que, dois anos após firmar o contrato de naming rights com a equipe, se tornou mundialmente infame, em uma associação absolutamente indesejada para os texanos.

Mais recentemente o tenista Roger Federer viu-se em uma situação embaraçosa com um de seus mais longevos patrocinadores, o Credit Suisse, ao ser instado pela ativista sueca Greta Thunberg a “acordar” para os impactos globais causados por investimentos em energias fósseis e não renováveis promovidos pelo banco. O tenista suíço, que é amplamente conhecido por seu desportismo e pelas causas sociais que defende, mostrou-se tão hábil com as palavras quanto o é com a raquete: reafirmou publicamente sua responsabilidade como indivíduo e atleta, e se comprometeu a utilizar a sua influência e privilégio para dialogar sobre o tema com seus patrocinadores. Demonstrando alinhamento com o tenista, o Credit Suisse, por sua vez, afirmou estar comprometido em auxiliar seus clientes na transição para modelos energéticos mais sustentáveis e anunciou não mais investir em novas usinas de carvão. Mas suponha-se que o atleta e seu patrocinador não tivessem chegado a um discurso comum? Poderia Federer, para preservar sua reputação, desejar o rompimento unilateral do seu contrato de patrocínio com base em uma cláusula moral?

Como se vê da experiência internacional, há diversas questões que podem ser suscitadas a partir da invocação das cláusulas morais como forma de preservação da reputação de uma das partes envolvidas em um contrato de patrocínio esportivo. A sua difusão no direito brasileiro requererá atenção de juristas, mas também das partes envolvidas, de forma a se adaptarem à sua aplicação, especialmente em terrenos incertos daquilo que pode ou não afetar a reputação de uma das partes.

*Tiago Gomes é formado em Direito e mestre em Direito Comercial pela USP. Sócio do escritório Ambiel, Manssur, Belfiore, Malta, Gomes, Hanna Advogados.

**Marcel Belfiore é formado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Sócio do escritório Ambiel, Manssur, Belfiore, Malta, Gomes, Hanna Advogados.

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Colunista

Rodrigo R. Monteiro de Castro advogado, professor de Direito Comercial do IBMEC/SP, mestre e doutor em Direito Comercial pela PUC/SP, coautor dos Projetos de Lei que instituem a Sociedade Anônima do Futebol e a Sociedade Anônima Simplificada, e Autor dos Livros "Controle Gerencial", "Regime Jurídico das Reorganizações", "Futebol, Mercado e Estado” e “Futebol e Governança". Foi presidente do IDSA, do MDA e professor de Direito Comercial do Mackenzie. É sócio de Monteiro de Castro, Setoguti Advogados.