Registralhas

Histórico do Notariado brasileiro

Os autores analisam, em texto histórico, os 450 anos do notariado brasileiro.

8/12/2015

Na coluna desta semana, analisaremos os 450 anos do notariado brasileiro. Grande foi a comemoração no XX Congresso Notarial Brasileiro que ocorreu entre 30 de setembro e 3 de outubro na cidade do Rio de Janeiro e que comemorou os 450 anos do notariado brasileiro.

Será que realmente comemoramos os 450 anos de notariado no Brasil ou será que ultrapassamos essa data há muito? Que tal fazermos uma pequena incursão histórica?

Difícil tarefa é a de buscar um histórico do notariado brasileiro desde seus primórdios até a modernidade, não só pela dificuldade na conservação dos documentos, mas também pela dificuldade da técnica do trato pelos historiadores, bem como pela confusão gerada na distinção de escrivão, registrador, tabelião, e do exercício de outras atividades burocráticas pelo Estado.

A própria figura denominada "cartório", desde seus primórdios até os dias atuais, é nebulosa e de difícil conceituação. Até para os juristas há grande dificuldade em delinear a figura, notadamente no que toca a sua natureza jurídica, redundando nas seguintes feições: se é pessoa jurídica, órgão do Estado, figura sui generis, delegação híbrida, entre outras, o que traz muita dificuldade na leitura, principalmente porque alguns textos legislativos também confundem escrivão, tabelião e registrador.

O historiador Deoclécio Leite de Macedo, na sua obra Tabeliães do Rio de Janeiro – do 1º ao 4º ofício de notas 1565-18221, evidencia a grande dificuldade de pesquisa nos seguintes termos: "do período de 1592 a 1675 quase nada nos resta de documentação oficial". O motivo da escassez documental se deve à destruição por incêndio em 1790 do arquivo do Senado e da Câmara. Por incrível que pareça, toda a sua pesquisa se baseou em documentos particulares, além de fontes secundárias.

A origem de nosso estudo remonta ao famoso Tratado de Tordesilhas, assinado na cidade de Tordesilhas em 07 de junho de 1494 entre o reino de Portugal e da Espanha, visava a divisão das terras por ambas as coroas na América, tendo demarcado o meridiano de 370 léguas a oeste da ilha de Santo Antão no arquipélago de Cabo Verde. O território a leste desse meridiano pertenceria a Portugal e a oeste à Espanha. Portugal ratificou o tratado a 5 de setembro de 1494.

Assim, quando do "descobrimento" em 1500, já vigoravam em Portugal, e, por via de consequência, no Brasil as Ordenações do Reino2, que incorporavam a concentração das leis portuguesas. Não é desarrazoado estabelecer, portanto, que as ordenações, notadamente as Filipinas, constituem as primeiras fontes primárias jurídicas a incidir em terras brasileiras, as quais vigoraram até 31 de dezembro de 1916, quando revogadas pelo Código Civil de Beviláqua (Lei 3.071 de 1º de janeiro de 1916)3. E. B. Pondé4 e Cotrim Neto não criticam apenas o fato do Brasil não possuir legislação própria por ocasião de sua independência, afirmam que mesmo o Código Civil de 1916 não trouxe viés moderno para a atividade notarial5. Aliás, houve um retrocesso no que toca a atividade notarial não só ignorada pelo Código de 1916, mas também pelo Código de 2002, ambos apresentando dispositivos esparsos, além do festejado artigo 215 em 2002 para espelhar uma atividade tão importante e bem descrita pelas ordenações.

A prática do primeiro ato notarial no Brasil atribui-se a Pero Vaz de Caminha, escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral6. Por acaso, Caminha se encontrava na nau Capitania da armada de Cabral, porque havia sido nomeado em 1500, escrivão da feitoria de Calicute na Índia. A carta de Pero Vaz de Caminha é o primeiro documento escrito da história do Brasil e foi redigida a Dom Manuel I (1469-1521)7. A carta vem datada de 1º de maio de 1500, sendo o local Porto Seguro e se encontra no arquivo nacional da torre do tombo em Lisboa, e, por ter caráter descritivo, é tida com natureza de ata notarial8.

A atuação notarial no Brasil tem início quando D. João III divide as terras brasileiras em faixas, que partiam do litoral até a linha imaginária do Tratado de Tordesilhas. Essas enormes faixas de terras, conhecidas como Capitanias Hereditárias, foram doadas para os nobres e para as pessoas de confiança do rei, denominadas Donatários. Estes administravam, colonizavam, protegiam, desenvolviam a região, bem como com escolhiam e nomeavam os tabeliães.

Porém, ante o fracasso do regime de capitanias (com exceção das capitanias de Pernambuco e São Vicente), em 1549, o Rei de Portugal criou um novo sistema administrativo para o Brasil, o Governo-Geral, unificando as funções outrora atribuídas aos donatários.

Os capitães donatários, também chamados sesmeiros eram os titulares das sesmarias e tinham entre as suas várias obrigações a de colonizar. É bom lembrar que a posse do território brasileiro pela coroa portuguesa era tida como uma aquisição originária, tal qual decorrente de direito de conquista. Por tal razão, as terras eram tidas sem vínculo causal anterior, sem qualquer senhorio, também tidas por incultas.

A primeira carta sesmarial ou patente foi outorgada a Martim Afonso de Souza, capitão mor da armada portuguesa para colonizar uma área de terra pré-determinada em São Vicente. Partiu de Lisboa em 03 de dezembro de 1530 com quatro naus.

Em 20 de novembro de 1530, D. João III (rei de Portugal) confere poderes a Martim Afonso de Souza, inclusive de jurisdição não só sobre os tripulantes, mas sobre todos os habitantes da colônia. Na realidade são três instrumentos distintos: (i) a carta para o capitão mor dar terras de sesmaria, (ii) "Carta de grandes poderes", (iii) "Carta de poder".

Na primeira carta, o imperador confere plenos poderes a Martim Afonso de Souza para doar porções de terra a pessoas idôneas com a finalidade de povoar e colonizar. A segunda carta chamada "Carta de grandes poderes" é a que dá a Martin Afonso de Souza plena jurisdição sobre os tripulantes da armada e sobre todos os habitantes da colônia. A terceira carta, chamada carta de poder, é a que confere autoridade a Martin Afonso de Souza para delegar a oficiais e tabeliães poderes para a prática de atos burocráticos do império, diz a carta:

"Por esta minha carta de poder ao dito Martim Afonso, para que ele possa criar e fazer dois tabeliães que sirvam das Notas e Judicial que logo daqui com ele vão na dita armada os quais serão tais pessoas que o bem saibam fazer ou que para isso sejam aptos, aos quais dará suas cartas com o traslado desta minha para mais firmeza, e estes tabeliães que assim fizer deixarão seus sinais públicos que houverem de fazer na minha chancelaria, e se depois que ele dito, Martim Afonso, for dita terra lhe parecer que para governança dela são necessários mais tabeliães que os sobreditos que assim daqui há de levar isso mesmo lhe dou poder para os criar e fazer de novo, e para quando vagarem assim uns como os outros ele prover dos ditos ofícios as pessoas que vir que para isso são aptas e pertencentes; e bem assim lhe dou poder para que possa criar e fazer de novo e prover por falecimento dos quais os ofícios de justiça e governança da terra que por mim não forem providas que vir que são necessários".

Portanto, a mencionada carta régia a Martim Alfonso de Souza é o primeiro documento que estabelece a delegação da atividade no Brasil, o que denota indícios de mais de 480 anos da atividade notarial no Brasil9.

Concluindo, é possível afirmar que 2015 estabelece é o termo dos 450 anos do primeiro Tabelionato estabelecido no Rio de Janeiro (1º de março de 1565), porém, a atividade notarial já vinha sendo desempenhada há muito em território nacional.

Forte abraço e até o próximo Registralhas!

*O artigo foi escrito em coautoria com Ana Paula Ribeiro Ferreira da Costa, graduanda da Faculdade de Direito da USP e pesquisadora jurídica.

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1 Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2007.

2 José de Moura Rocha, in Enciclopédia Saraiva do Direito, Vol. 55, p. 1

3 Art. 1806. O Código Civil entrará em vigor em1º de janeiro de 1917.

Art. 1807. Ficam revogadas as ordenações, alvarás, leis, decretos, resoluções, usos e costumes concernentes às matéria de direito civil reguladas neste código.

4 Origen cit. (nota supra), p.440.

5 "Destarte, enquanto, por toda a parte, na Europa (a partir da lei francesa de 25 Ventose do ano XI-16.3.1803), como na América espanhola (a partir das lutas pela indepência), o novo direito consitituído daria à função notarial o relevo jurídico em que ela não deveria deixar de estar, no Brasil nós conservamos – lamentavelmente – aquelas pobres insitutições notariais que um Notario viajor tivera a ordem de implantar no oriente, há quase 500 anos". A. B. Cotrim Neto, Perspectivas da Função Notarial no Brasil, in Revista Internacional del Notariado (Revue Henri Maigret), Año XXIII, nº 71, p. 150.

6 Douglas Tufano, A Carta de Pero Vaz de Caminha, São Paulo, Moderna, 1999, p.

7 Segundo l. Brandelli, Pero Vaz de Caminha, foi o primeiro tabelião a pisar em solo brasileiro, tendo narrado e documentado minuciosamente, embora sem precisão técnica a "descoberta" do Brasil e o apossamento das terras. Apenas é bom deixar assentado que em Portugal não se confundiam as nomenclaturas ‘escrivão’ e 'tabelião', conforme assenta e. b. Pondé, o tabelião sempre foi o notário e não recebia a nomenclatura de escrivão. Origen cit. (nota supra), p.440.

8 "Há quem equipare, em valor notarial, a Carta de Pero Vaz de Caminha à Ata de Rodrigo de Escobedo. Quem nisso crê incorre em grave erro. O último era Tabelião do Consulado dos Mares, enquanto Caminha era um escrivão nomeado para a feitoria de Calecute, sem jurisdição nas Terras de Santa Cruz. A Ata Notarial de Escobedo era oficial, enquanto a carta de Caminha era oficiosa em decorrência de seu caráter explicitamente confidencial, íntimo, na qual pedia um indulto para seu genro, Jorge d'Osório, que se encontrava degredado na ilha de São Tomé" Amaro Moraes e Silva Neto, A importância da ata notarial para as questões relativas ao ciberespaço.

9 Segundo D. L. Macedo "as serventias dos ofícios de justiça e fazenda, se não fossem dadas pelo rei, eram providas pelos governadores gerais, vice-reis do Estado do Brasil, em virute dos regimentos da relação da Bahia, de 7 de março de 1609, da relação do Estado do Brasil, de 12 de setembro de 1652, e dos capítulos 7º e 38º do Regimento de Roque da Costa Barreto, datado de 23 de janeiro de 1677, por provisões anuais passadas em seu nome, e sem irem à chancelaria observendo-se este estilo até fins do ano de 1688", Tabeliães cit. (nota supra), p. 15.

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Colunista

Vitor Frederico Kümpel é juiz de Direito em São Paulo e doutor em Direito pela USP.