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Altera-se a regra após o apito final

Neste cenário surpreendente, há que se questionar e combater judicialmente a pretendida alteração. Não se pode admitir, silente e resignado, uma violação e uma afronta tão clara à lei, ao ordenamento jurídico e, até mesmo, à Constituição Federal.

15/2/2019

Com a edição da lei 13.254 em 2016 – e reedição em 2017, lei 13.428/17 – instituiu-se o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), que trouxe a possibilidade de regularização ou repatriação de recursos, bens ou direitos de origem lícita, não declarados ou declarados incorretamente, remetidos, mantidos no exterior ou repatriados por residentes ou domiciliados no Brasil.

O principal benefício, além da regularização (ou repatriação) do ativo, consistia na extinção da punibilidade dos crimes de sonegação fiscal, sonegação de contribuição previdenciária, evasão de divisas, lavagem de dinheiro, falsificação de documento público, falsificação de documento particular, falsidade ideológica e, por fim, uso de documento falso.

Alguns requisitos se encontravam no próprio texto legal: estavam excluídos do RERCT os sujeitos com condenação penal (mesmo sem o trânsito em julgado da sentença penal condenatória), bem como os detentores de cargos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas, assim como seus cônjuges e parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção.

Além disso, a pessoa física ou jurídica titular desses valores, bens ou direitos deveria, voluntariamente, declará-los na forma de “declaração única de regularização específica” à Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB), com cópia ao Banco Central do Brasil (BACEN), apresentando descrição dos recursos, bens e direitos a serem regularizados, com os respectivos valores em real ou, no caso de inexistência de saldo, a descrição das condutas previstas na lei.

Ainda, a lei dispunha de forma clara que a “declaração única de regularização” não poderia ser utilizada como único indício ou elemento para efeitos de início de procedimento investigatório criminal ou ação penal, como também não poderia ser utilizada para fundamentar, direta ou indiretamente, qualquer procedimento administrativo de natureza tributária ou cambial em relação aos recursos dela constantes.

Em momento algum, importante que se diga, a lei ou o seu respectivo regulamento exigiram a prova ou comprovação da origem lícita do recurso.

Inclusive, uma das perguntas de orientação a respeito do programa dispunha que os aderentes deveriam declarar a origem dos ativos, mas sem a necessidade de sua comprovação.  Não parava por aí: de acordo com a referida orientação caberia à Receita Federal do Brasil a obrigação de demonstrar que as informações seriam falsas.

Diante desse cenário e com as regras postas, diversos contribuintes aderiam ao programa de regularização cambial. O valor total foi de aproximadamente R$ 174.000.000.000 (cento e setenta e quatro bilhões de reais).

No entanto, em 2019, quase dois anos após o término do programa e da importante arrecadação havida para os cofres públicos, a Receita Federal do Brasil passou a notificar contribuintes que aderiram ao RERCT demandando a comprovação da origem de ativos não declarados no exterior.

Exatamente, passa-se a exigir a comprovação de algo que, à época, a própria Receita Federal não exigia. E em notória contradição às próprias orientações oficiais manifestadas anteriormente. 

Já em dezembro de 2018 a Receita Federal havia sinalizado essa mudança com a alteração das perguntas e respostas que esclareciam dúvidas sobre a repatriação. O próprio fisco, sem ruborizar, confirmou que poderia exigir a comprovação da origem dos ativos. 

No mesmo sentido, o ministro da Justiça Sergio Moro indicou que uma de suas metas seria investigar os R$ 174 bilhões repatriados ou regularizados.

Mas investigar? Ora, a lei era expressa no sentido que não se admitiria a instauração de qualquer procedimento com base unicamente na declaração do RERCT!

Neste sentido, ficam algumas perguntas: pode a Receita Federal do Brasil alterar a regra do jogo após o seu término, depois do apito final? O ônus da prova pode ser invertido depois da conclusão do programa?

A resposta parece óbvia.

A alteração pretendida, além de desleal, afronta princípios básicos do direito.

A insegurança jurídica que se instala é preocupante, pois, o recado que se dá aos contribuintes e aos brasileiros é: não confie nas leis e nos órgãos públicos! Não confie nas orientações da Receita Federal, nem mesmo se estiverem formalizadas e por escrito, pois podem mudar ao gosto do freguês.

A questão vai contra as novas políticas fiscais que têm se preocupado em instar a boa-fé dos contribuintes. Mas, ao contrário, a própria receita age de forma a burlar o que ela mesma, previamente, orientou. Inacreditável!

Neste cenário surpreendente, há que se questionar e combater judicialmente a pretendida alteração. Não se pode admitir, silente e resignado, uma violação e uma afronta tão clara à lei, ao ordenamento jurídico e, até mesmo, à Constituição Federal. Torçamos para que essa tentativa traiçoeira seja corrigida pelo judiciário, de forma breve e exemplar.

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*Leandro Falavigna é advogado criminalista do escritório Torres|Falavigna Advogados.

*Andrea Vainer é advogada criminalista do escritório Torres|Falavigna Advogados.

*Marcelo Guaritá é advogado tributarista, sócio do escritório Peluso, Stupp e Guaritá Advogados.

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