Migalhas de Peso

Covid-19 e as relações de trabalho – Análise da MP 927/20

Para aqueles empregadores que já vinham adotando medidas alternativas para manutenção de empregos, caso a situação se amolde às previsões da MP 927/20, a situação restará convalidada, eliminando-se qualquer vício.

26/3/2020

Introdução 

O governo federal, por meio do decreto legislativo nº 6, de 20/03/2020, reconheceu o estado de calamidade pública, como reflexo da emergência de saúde de importância internacional decorrente do COVID-19.

Para enfrentamento da calamidade pública, com a finalidade de fomentar a preservação do emprego e da renda, o Governo Federal editou a Medida Provisória 927/20, a qual trata de diversas ferramentas destinadas à flexibilização das normas trabalhistas neste contexto social.

Com a finalidade de auxiliar na compreensão técnica dos institutos, elaboramos o presente estudo, sem a pretensão de exaurir o tema. Ressaltamos que deixamos de abordar ao art. 18, porquanto revogado pela Medida Provisória 928/20.

Contudo, antes de adentrarmos nos institutos precisamos assentar duas premissas importantes. A primeira, que deve nortear a interpretação da norma, é a preponderância de acordo individual escrito sobre os instrumentos normativos, legais e negociais, respeitados os limites fixados pela Constituição Federal (art. 2º da MP). A segunda, que os institutos nela previstos (e aqui tratados) se aplicam aos trabalhadores terceirizados (lei 6.019/74), rurícolas e domésticos (naquilo em que os institutos forem compatíveis com estes empregados: jornada, banco de horas e férias).

Teletrabalho e home office

Teletrabalho e home office são figuras muito próximas, mas que possuem algumas distinções.

O teletrabalho é aquele realizado à distância, fora do estabelecimento físico do empregador e por meio de instrumentos telemáticos de comunicação (computadores, telefones, smartphones, etc.), como conceitua o art. 75-B. Ou seja, o teletrabalho pode se dar em casa, ou em outro local qualquer, desde que preponderantemente fora do empregador e com uso de instrumentos telemáticos.

Por sua vez, o home office necessariamente é realizado na casa do empregado, podendo se dar em duas modalidades: (i) trabalho em domicílio, conforme art. 6º da CLT, sem o uso de ferramentas telemáticas (ex. costureiras trabalhando em domicílio); ou (ii) teletrabalho (com uso de meios telemáticos – arts. 75-A e seguintes da CLT).

Especificamente acerca do teletrabalho, o regramento da CLT é bastante rígido em algumas formalidades, exigindo: (i) aditivo contratual (com indicação das atividades que serão desempenhadas pelo empregado); (ii) mútuo acordo formalizado no aditivo contratual; (iii) previsão em contrato escrito sobre as formalidades relativas à aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e infraestrutura necessária e adequada à prestação do trabalho; (iv) previsão em contrato acerca do reembolso das despesas arcadas pelo empregado para fins de exercício do teletrabalho; e (v) termo de orientações assinado pelo empregado em que o empregador deverá prestar orientações sobre precauções a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho.

A MP 927/20, por sua vez, mitiga tais rigores, no período de calamidade pública, passando a regular a matéria nos seguintes moldes:

Alteração do regime presencial para qualquer tipo de trabalho à distância (teletrabalho, home office, trabalho em domicílio, etc.) por decisão unilateral do empregador (caput do art. 4º);

Quanto a este último ponto, interessante notar que via de regra o trabalho à distância em qualquer modalidade não está sujeito ao capítulo de duração do trabalho (art. 62, III, da CLT), mas a doutrina costuma indicar que se houver fiscalização efetiva dos horários, o empregado pode fazer jus a eventuais horas extras praticadas¹. Logo, em que pese os dizeres da MP, temos a impressão que é necessária cautela na interpretação do art. 4º, § 5º do novo diploma normativo.

Férias individuais

A concessão de férias no contexto de pandemia sempre foi bastante polêmico, notadamente por desvirtuar o escopo do instituto: lazer, descanso e convívio social do trabalhador fora do ambiente laboral.

De todo modo, parcela significativa dos estudiosos defendia a concessão de férias como alternativa no contexto de pandemia, até porque, o art. 136 da CLT prevê que as férias são concedidas na época que melhor consulte os interesses do empregador.

Ocorre que, a concessão de férias individuais, à luz da disciplina da CLT exige algumas formalidades especiais, como: (i) comunicação ao empregado com antecedência de, no mínimo, 30 dias; (ii) pagamento das férias até dois dias antes do gozo das férias (art. 145 da CLT); e (iii) concessão das férias após completado o período aquisitivo respectivo.

Além disso, no regramento celetista o empregado tem a prerrogativa de conversão de 1/3 das férias em abono pecuniário.

A MP 927/20 flexibiliza bastante a questão, permitindo a antecipação de férias no período de calamidade pública, ainda que não completado o período aquisitivo (art. 6º, II) desde que:

Seja comunicada a antecipação com no mínimo 48 horas de antecedência;

Comunicação por escrito (pode ser meio eletrônico) com indicação do período de gozo;

Permite-se, ainda, que mediante negociação individual escrita, empregado e empregador ajustes a antecipação de períodos futuros de férias, o que dá margem à possibilidade de antecipação de mais do que um período de férias.

Quanto aos trabalhadores que pertençam ao grupo de risco do COVID-19, a norma determina sejam priorizados para gozo de férias (individuais ou coletivas).

Férias coletivas

Como já ressaltado, a concessão de férias no contexto de pandemia sempre foi bastante polêmico, em que pese parcela significativa dos estudiosos defendesse sua utilização no contexto de calamidade.

Especificamente quanto às férias coletivas, o regramento da CLT apresentava alguns óbices práticos importantes à sua concessão: (i) pagamento até dois dias antes do início de seu gozo (art. 145 da CLT); e (ii) comunicação ao órgão local da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho (antigo MTE) e aos sindicatos representativos das categorias profissionais 15 dias antes do início das férias.

A MP 927/20 flexibiliza bastante a questão, primeiro, deixando claro que é possível a concessão de férias no contexto de calamidade pública, observado:

As regras quanto a pagamentos serão, no nosso sentir, as mesmas das férias individuais previstas na MP 927/20.

Aproveitamento e antecipação de feriados

Tal medida é absolutamente nova, prevista na MP 927/20. Segundo o art. 13 de referida norma, durante o período de calamidade pública os empregadores poderão antecipar (por ato unilateral) o gozo de feriados não religiosos federais, estaduais, distritais e municipais. Para tanto deverá o empregador:

O aproveitamento de feriados religiosos dependerá de concordância expressa do empregado em acordo individual escrito.

Banco de horas

O Banco de Horas foi concebido numa tendência flexibilizante da década de 1990, instituído pela lei 9.601/98, com alterações implementadas via medida provisória (2.164-41/01).

Segundo a redação atual da CLT (após reforma trabalhista – lei 13.467/17) existem duas figuras concorrentes na temática, o chamado Banco de Horas Coletivo, que consiste num sistema de compensação pelo módulo anual, e o Banco de Horas Individual, em que há ajuste individual formal, por escrito, entre trabalhador e empregador, num sistema de compensação semestral.

Atenta a esta utilidade do Banco de Horas como forma de equalizar as tensões capital trabalho, a MP 927/20 flexibilizou alguns aspectos polêmicos para o contexto de calamidade pública, permitindo a constituição de regime especial de compensação de jornada, com as seguintes particularidades:

A compensação das horas, contudo, deve observar como limite o número de 2 horas suplementares diárias e não se pode extrapolar a jornada de 10 horas por dia.

Recolhimento diferido do FGTS

Como forma de reduzir momentaneamente os encargos trabalhistas, a MP 927/20 autorizou o pagamento diferido das competências do FGTS de março, abril e maio de 2020, sendo certo que tais competências poderão ser pagas de forma parcelada, em até seis vezes, a partir de julho de 2020, sem atualização e multa.

O benefício se estende a todos os empregadores, independentemente do número de empregados, do regime de tributação e da atividade econômica. Não se exige adesão prévia ao regime de recolhimento diferido, bastando ao empregador declarar as informações necessárias ao recolhimento diferido até 20/06/2020.

O atraso no pagamento diferido implicará em multa e encargos de atualização nos termos do art. 22 da lei do FGTS (8.036/90).

A rescisão do contrato de trabalho no curso deste período diferido obriga o empregador ao recolhimento no prazo legal para pagamento do FGTS e indenização de 40%.

Por fim, a MP determina a suspensão do prazo prescricional dos débitos do FGTS por 120 dias, a partir da entrada em vigor da MPT.

Profissionais da saúde

Considerada a situação crítica da pandemia, a MP 927/20 permite aos empregadores, mediante acordo individual escrito:

Além disso, o empregador poderá suspender as férias ou licenças não remuneradas (sem necessidade de acordo), desde que o faça por escrito (inclusive meio eletrônico), com antecedência de 48 horas.

No nosso sentir, tais medidas não se restringem a médicos e enfermeiros, mas para quaisquer empregados em “estabelecimentos de saúde”, dada a redação bastante abrangente dada aos arts. 7º e 26 da MP.

Covalidação de medidas adotadas do advento da MP

Por fim, importante registrar que a MP 927/20 prevê que medidas adotadas pelos empregadores anteriormente ao advento da MP e que não contrariem o que ela dispõe (por exemplo, concessão de férias sem observância dos requisitos rígidos da CLT ou instituição de teletrabalho sem observância dos prazos e aditivos legais previstos na CLT) serão consideradas convalidadas (art. 36).

Logo, para aqueles empregadores que já vinham adotando medidas alternativas para manutenção de empregos, mesmo que sem respeitar todas as formalidades da CLT, caso a situação se amoldes às previsões da MP 927/20, a situação restará convalidada, eliminando-se qualquer vício.

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1 CARVALHO, Augusto César Leite. Direito do Trabalho: Curso e Discurso. 2ª Ed., São Paulo: LTr, 2018, p. 301.

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*André Eduardo Dorster Araujo é juiz do Trabalho Substituto do TRT da 2ª Região; especialista em Direito do Trabalho pela Universidade de Lisboa; pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Mackenzie. Graduado pela Universidade Mackenzie;  professor do curso preparatório para concursos públicos ProMagis Concursos. Autor de obras jurídicas.

**Priscilla Carrieri Donegá é advogada. Sócia fundadora do escritório DPZ Advogados. Pós-graduada em Direito pela Universidade Autônoma de Lisboa. Pós-graduada em Direito Contratual pelo IICS. Graduada em Direito pela Universidade Mackenzie.

 

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