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Outubro rosa: a quem toca a responsabilidade pela realização do direito à saúde?

Vale destacar que o Estado possui o dever de efetivação do direito à saúde não só mediante as ações direcionadas ao tratamento das doenças, mas em sua compreensão global

1/11/2022

Nossa Constituição de 1988 apostou em um modelo constitucional do Estado Social democrático de direito. Para tanto, na sua consolidação, promoveu uma importante virada de paradigma ao tratar os direitos sociais como fundamentais que o são. Passaram estes direitos a constar dentro do título II e, com mais destaque, sua disciplina constitucional densificada no capítulo específico da ordem social. Dentre os destaques constitucionais nesta matéria está o direito à saúde que tem uma disciplina constitucional bastante específica, inclusive com aplicação de percentual obrigatório aos poderes públicos.

Infelizmente, 34 anos depois ainda vemos que os direitos sociais e – sobretudo – o direito à saúde não são tratados com seu devido status constitucional, sendo que, não é infrequente, que haja judicialização para a realização do direito. Na principiologia que se estabeleceu na jurisprudência atinente aos direitos sociais um dos pilares é o princípio da vedação do retrocesso que também está coligado com a ideia de aplicação progressiva. Se a vedação do retrocesso impede que se recue em níveis já estabelecidos de direitos, a progressividade demanda que continue sempre adicionando mais estândares protetivos, em um crescente, vedando-se também à inação.

Contrariando tudo isso foram veiculadas notícias recentes que anunciaram cortes no orçamento governamental destinados ao controle e prevenção do câncer, doença que está em segundo lugar no ranking das que causam mais mortes no país.1 Além disso, em pleno mês de outubro, no qual se promovem ações de conscientização sobre o câncer de mama, igualmente se noticiou expressiva redução de verbas dirigidas ao denominado Orçamento Mulher2, a qual perfaz um conjunto de políticas públicas destinadas às cidadãs. Tais decisões caminham em sentido contrário à concretização do direito à saúde e da gradatividade principiológica constitucionalmente assumida.

Vale destacar que o Estado possui o dever de efetivação do direito à saúde não só mediante as ações direcionadas ao tratamento das doenças, mas em sua compreensão global, a qual abarca igualmente as políticas econômicas e sociais que envolvem a promoção e proteção. No mês em que se desenrola a campanha do outubro rosa, sobressai a importância dos investimentos realizados nas intervenções educativas da sociedade como parte de um modelo integrativo que não desconsidera os esforços do cuidado na precaução.

O câncer de mama atinge cerca de treze mil mulheres anualmente. Nos casos em que é precocemente diagnosticado possui cerca de 95% de chances de cura,3 motivo pelo qual desponta como fundamental as ações informativas a fim de que se publicize os sinais do reconhecimento da doença e das medidas preventivas para a busca rápida de tratamento. Ou seja, informar a sociedade é eixo essencial de promoção ao direito à saúde e que não pode ser apartada do compromisso governamental, o que exige aporte financeiro e investimentos nesta diretriz, sob pena de comprometer a qualidade de vida das mulheres e, em última instância, representa a negativa do próprio direito à dignidade e à vida.

Contudo, frente aos anúncios de desmonte das políticas públicas que impactarão de sobremaneira o direito à saúde, sobretudo das mulheres, ganha maior peso o fortalecimento da sociedade civil como ator partícipe imprescindível da rede da promoção da saúde. A mobilização social, tanto em seu papel de cobrança governamental na concretização dos direitos fundamentais, como promotor – em paralelo ao dever estatal - de ações dialógicas e informativas sobre os cuidados de prevenção e diagnóstico de doenças é importante aliado para a redução da mortalidade e ao bem-estar da população.

Não se trata exclusivamente de benemerência privada, é certo que o modelo constitucional, a partir do art. 5º, p. 1º, implica os particulares na efetivação dos direitos fundamentais. Não bastasse isso, as diretrizes nacionais de empresas e direitos humanos (constantes do decreto 9571/18) também sublinham este compromisso. Não se trata de substituição à necessária ação estatal, mas sim, de um somatório de esforços e reconhecimento de responsabilidades compartilhadas na consecução do projeto constitucional.

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1 https://www.terra.com.br/economia/entenda-os-cortes-do-governo-no-orcamento-em-2022-e-2023,a7b3b2112c42177b60b37f37813c4e405q1f8ooq.html

2 https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/10/governo-bolsonaro-corta-verba-de-acoes-para-mulheres-em-ate-99-no-orcamento-de-2023.shtml

3 https://www.oncocentrocuritiba.com.br/blog/cancer-de-mama-tem-95-de-chance-de-cura-quando-descoberto-precocemente

Verônica Akemi Shimoida de Carvalho
Advogada, mestre em Direito pela UFPR. Sócia do escritório Fachin Advogados Associados

Melina Girardi Fachin
Advogada e professora adjunta dos cursos de graduação e pós graduação da UFPR.

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