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Apresentação de CND como pressuposto para concessão da recuperação judicial

Sopesando o “super” enaltecimento do crédito tributário e uma realidade “perfeita” que foge às questões fáticas em detrimento da manutenção das atividades, da fonte produtora e dos empregos, se balizam na contramão aos fins colimados no processo de recuperação judicial.

16/3/2023

Os holofotes estão voltados à temática aqui retratada. É famoso, no contexto recuperacional, o debate envolto à indispensabilidade da demonstração de regularidade fiscal de empresas em crise, com a consequente emissão das conhecidas Certidões Negativas de Débitos Fiscais (“CND”) e a sua – suposta – valoração como requisito para a concessão do pedido de Recuperação Judicial (“RJ”).

A controvérsia é cristalina: Existe adequação na exigência de CND como condição prévia para o pedido de Recuperação Judicial? Utopia inalcançável ou complexo do “super” enaltecimento do crédito tributário?

Estruturalmente, a resposta externada pelo corpo normativo apresenta uma “pseudo” facilidade na concepção de um entendimento que solucione a questão, se satisfazendo o legislador em determinar que, após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembléia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151, 205, 206 do Código Tributário Nacional (“CTN”)1.

Ou seja, em cognição sumária e literal básica do quanto determinado pela lei 11.101/05 (“LFRE”) – não obstante ainda se possa contestar -, o verbo “apresentará”, escolhido pelo legislador, doutrina os leitores e aplicadores da lei, a estabelecerem um “link” entre a concessão da RJ e a apresentação da CND, sendo certo que na falta do último, restaria inviabilizado o deferimento do beneplácito legal.

Está-se diante, então, de situação em que a interpretação, não só pode, como deve, transcender o texto entabulado no diploma legal. Se aquiescer da forma como se apresenta, seria o mesmo que permitir à empresa devedora junto à sua comunidade de credores, estabelecer diretrizes em conjunto e de forma privada, podendo, tudo ser arruinado e posto por “água abaixo”, caso inexista a CND.

Essa seria a ideia de “mundo perfeito” objetivada pelo legislador quando da redação do dispositivo legal citado alhures para o alcance dos desígnios que impulsionam o procedimento recuperacional?

O primeiro entrave posto em voga é o próprio art. 47 da LFRE, considerando que, “a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”, revelando abrupto desalinhamento entre o vetor teleológico da norma e o art. 57.

Ora, a exigência de apresentação da CND para a concessão da RJ, assim, tornaria inviável, na prática, o instituto da recuperação ao impor ônus excessivo ao devedor. Outrossim, criaria tratamento privilegiado à União, aos Estados e Municípios, pois condicionaria a possibilidade de reestruturação de todos os outros créditos à regularidade do débito tributário2.

Concisamente, a inquietude com relação à exigência de CND se pauta nas seguintes premissas: (i) o credor tributário não se submete ao procedimento recuperacional; (ii) execuções fiscais não são albergadas pelo prazo de stay period; (iii) o parcelamento tributário deve ser tratado como um direito do devedor e não obrigatoriedade; (iv) não há prejuízos ao Fisco.

A relativização à regra legal já vinha sendo empregada por diversos tribunais, inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), sob o silogismo da “ausência de legislação específica que discipline o parcelamento em sede de recuperação judicial, não constituindo ônus do contribuinte, enquanto se fizer inerte o legislador, a apresentação de certidões de regularidade fiscal para que lhe seja concedida a RJ”.3

O juízo, agora, vem sendo desfigurado, após as alterações trazidas pela lei 14.112/20, sendo considerado que a lacuna normativa anteriormente utilizada para não aplicação do art. 57, já não mais perdura, sendo a solução utópica e “salvadora da pátria”, a possibilidade de as empresas em RJ, equacionarem seu passivo tributário por meio de modalidades de parcelamento, positivados na lei 10.522/02.

Todavia, ao contrário do que se pretende, a lei 14.112/20 trouxe, em verdade, a (i) a exigência de garantias relativas aos créditos tributários objetos de discussão judicial sem suspensão de sua exigibilidade para serem parcelados; (ii) a execução regular das garantias, inclusive por meio de expropriação e; (iii) à Fazenda Nacional, requerer a convolação da recuperação judicial em falência nos casos da exclusão do parcelamento.

A legislação trouxe inúmeras benesses ao credor tributário, ofertando a ele diversas possibilidades de satisfação de seu crédito “fora” do beneplácito legal. Não há logicidade, proporcionalidade e constitucionalidade na exigência. 

O próprio Fisco não será favorecido, na prática: ao impor óbice à consecução da empresa devedora com os créditos sujeitos à RJ e as relações privadas, conduziria à inafastável situação falimentar, oportunidade em que os créditos tributários não seriam prioridade na ordem de pagamentos, podendo, inclusive, nada receber (a depender dos ativos da devedora).4

Sopesando o “super” enaltecimento do crédito tributário e uma realidade “perfeita” que foge às questões fáticas em detrimento da manutenção das atividades, da fonte produtora e dos empregos, se balizam na contramão aos fins colimados no processo de recuperação judicial. É um tanto quanto óbvio.

Ainda se procura motivação hábil para exigir a CND como pressuposto da RJ, assim como beneficiários de tal entendimento. O maior cego é aquele que não quer ver.

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1 (LFRE) Art. 57. Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembléia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151, 205, 206 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional.

2 Sacramone, Marcelo B. Comentários à Lei Recuperação de Empresas e Falência. Disponível em: Minha Biblioteca, (3rd edição). Editora Saraiva, 2022, p. 343. 

3 DIREITO EMPRESARIAL E TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. EXIGÊNCIA DE QUE A EMPRESA COMPROVE SUA REGULARIDADE TRIBUTÁRIA. ART. 57 DA LEI N. 11.101/200 5 (LRF) ART. 191-A DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL. INOPERÂNCIA DOS MENCIONADOS DISPOSITIVOS. INEXISTÊNCIA DE LEI ESPECÍFICA A DISCIPLINAR O PARCELAMENTO DA DÍVIDA FISCAL E PREVIDENCIÁRIA DE EMPRESAS EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. (REsp 1.187.404/MT). 

4 1123881-90.2020.8.26.0100. PAULO FURTADO DE OLIVEIRA FILHO. (...) “Conforme prevê o artigo 57 da Lei 11.101/2005, para a concessão da recuperação judicial, devem as Recuperandas apresentarem as certidões negativas de débitos tributários, nos termos dos artigos 151, 205, 206 da Lei 5.172/1966 (Código Tributário Nacional), ou comprovar o parcelamento dos débitos nos termos de lei específica conforme artigo 68 da LRF, como condição para a concessão da recuperação judicial. Ocorre que tal exigência em nada beneficia o Fisco, considerando que, no cenário de falência, a classificação de seu crédito não permitirá o recebimento do que lhe é devido, ao passo que a concessão da recuperação, com a manutenção da atividade, ao menos permitirá o recolhimento dos impostos correntes. Portanto, neste caso, possível a dispensa da CND.” (...)

Lucas Sebinel Miranda
Advogado do escritório Bismarchi Pires Sociedade de Advogados.

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