Temas extremamente sensíveis que envolvem direitos fundamentais (vida, dignidade da pessoa humana) combinado com uma suposta crise de representatividade dos demais Poderes permitiram o avanço do poder pelo STF.
As ADPF 635 (favelas do RJ), 347 (sistema penitenciário), 760 (ambiental) não tratam, apenas, de seus temas “principais”, objetos das provocações.
Os fins, para o STF e os respectivos interessados, nestes casos, justificariam os meios utilizados.
A crise de representação
Na Câmara dos Deputados do Brasil somente 23 deputados Federais foram eleitos diretamente pelo voto do cidadão, o que demonstra a ínfima participação efetiva na escolha dos representantes.
Somado a este fato o sistema de escolha dos concorrentes (candidatos) pelos partidos políticos privilegia determinados grupos de comando, bloqueando a participação de pessoas desvinculadas aos respectivos “caciques”.
Outro fator de importância é a ausência de uma formação adequada de alguns representantes levando à maior fragilidade na criação de normas adequadas formal e materialmente.
O problema permanece mesmo após de eleitos, pois o sistema legislativo tende a fragilizar o parlamentar que demonstre descompasso de ideias com os chamados líderes, ou lideranças, que atuam em prol dos interesses partidários e políticos, sem qualquer relação direta com os interesses dos representados (o povo).
Com isso, há uma tendência de que normas, ainda que ultrapassem o processo legislativo, sejam declaradas incompatíveis com a CF, seja pela incompatibilidade material/formal ou política.
Corte de justiça x corte constitucional. O excessivo papel STF
O poder constituinte brasileiro, ao fixar a competência do STF, estabeleceu que a referida Corte atuaria como uma corte de justiça, responsável, como exemplo, pelo julgamento de crimes (originário ou em grau de recurso), e, também, como corte constitucional, responsável pela análise de compatibilidade das normas com a CF (guardião).
Tais atribuições acabam provocando problemas que afetam a separação dos Poderes, uma vez que fragilizam e limitam, sobremaneira, a atuação dos parlamentares e do próprio Poder Legislativo, por inúmeros motivos.
No Brasil, não é difícil, um parlamentar ser acusado (e processado) por práticas ilícitas, e ver seu “destino político” cair nas “mãos” do Poder Judiciário.
Na prática, nos casos de infrações graves, como a prática de infrações penais e improbidades, os julgamentos são iniciados no STF (autoridades com foro privilegiado), ou lá acabam chegando através dos recursos.
Ocorre que, de acordo com a CF do Brasil, eventuais abusos praticados pelos ministros da Suprema Corte brasileira, devem ser processados no Senado Federal, o que, por força do próprio sistema, torna-se inviável, uma vez que, grande parte de seus membros, estão, ou algum dia estarão, sob investigação ou julgamento na referida Corte.
Esse fato agrava-se, ainda mais, quando a escolha dos membros da Suprema Corte passou a considerar como relevante e essencial, de maneira clara e sem resistência, a indicação política, ideológica e/ou partidária.
Nem mesmo o suposto “controle”, via sabatina, pelo Senado Federal, tornou-se capaz de filtrar e impedir o ingresso de membros na Corte alinhados politicamente com o presidente da República (único legitimado para a indicação) e as principais lideranças políticas no Brasil.
Basta uma pequena análise das nomeações e sabatinas recentemente ocorridas no Brasil.
Verdadeiras disputas partidárias e políticas, tornando-se irrelevante os requisitos essenciais ao exercício do cargo, em especial, o notável saber jurídico, além de outras limitações de ordem implícita, como a moral e a ética.
A evolução do controle de constitucionalidade e da competência das Supremas Cortes
O controle de constitucionalidade, para grande parte da doutrina, teve sua origem no conhecido caso Marbury vs Madison, na Corte Suprema dos Estados Unidos, no ano de 1803, quando adotou-se o chamado judicial review, considerado como a legitimidade da Corte em poder verificar a compatibilidade da norma com a CF. No entanto, poucos mencionam a peculiaridade do que foi decidido no referido caso.
Em Marbury vs Madison, a Suprema Corte entendeu que uma determinada lei (seção 13 do Judiciary Act de 1789) era inconstitucional, pois permitia ao próprio Tribunal conceder mandado de segurança em casos que não estavam previstos na CF sobre a sua competência, tratando-se, assim, de uma autocontenção de seu poder/função.
Desde então, houve um significativo crescimento das competências e dos sistemas de controle, decorrente, especialmente, do surgimento do chamado ativismo judicial, nos EUA, caracterizado pela postura do Poder Judiciário em não somente averiguar a compatibilidade da norma com a CF (análise negativa), mas, também, interpretar a norma concedendo-lhe uma interpretação apta a, supostamente, fazer cumprir os princípios e normas constitucionais (atuação positiva).
Esse ativismo judicial, de origem no direito norte-americano fundou-se nas peculiaridades do contexto vivenciado pelos americanos e do sistema dos Estados Unidos.
Daí, as escolhas dos membros da Corte Suprema nos Estados Unidos terem sido sempre polêmicas e fundadas em escolhas políticas.
Verificou-se, então, a possibilidade de um novo poder destinado à Suprema Corte (legislador positivo) a fim de efetivar direitos fundamentais dos cidadãos, com as chamadas ações afirmativas.
Nos Estados Unidos, porém, ao contrário do Brasil, essas decisões limitaram-se, ao longo do tempo, em disputas ideológicas, restritas às pautas dos costumes, sem muito avanço nos debates de governo, propriamente dito, como constantes interferências nas esferas tributárias, previdenciárias, orçamentárias, como habitualmente se vê por parte do STF, em decorrência da característica de nossa CF, onde assuntos dos mais diversos estão nela inseridos ou tratados.
A título de exemplo, a Suprema Corte americana recebe cerca de 7 mil petições a cada ano, mas julga, apenas, em torno de 100 casos. Já o STF, por sua vez, profere cerca de 50.000 decisões judiciais a cada semestre, sendo 40 mil, monocráticas, e 10.000 colegiadas.
Com isso, governantes e partidos políticos identificaram maior facilidade e menos desgastante convencer/debater, no caso do Brasil, com apenas 6 membros da Suprema Corte (total de 11), do que com 513 deputados e 81 senadores, e suas peculiaridades pessoais, políticas e ideológicas das mais diversas.
"Governar", "legislar", através do STF, tornou-se o caminho ideal para alguns, pois além de sua força coercitiva e “de última palavra”, não há qualquer tipo de controle posterior de suas decisões, evidenciando, ainda mais, a fragilidade dos demais Poderes.
Diante deste contexto, o poder não estaria limitado à atuação “positiva” visando à efetivação de direitos fundamentais, tomando o lugar do legislador, mas seria possível, também, avançar com relação à governabilidade, ou a participação efetiva nas denominadas políticas públicas, diante das supostas fragilidades, também encontradas nos chefes do Poder Executivo e nas mazelas do Estado.
Denota-se, com isso, um total desvirtuamento do controle de constitucionalidade (positivo ou negativo) e do verdadeiro papel da Corte Suprema estabelecido na CF, criando-se um poder ilimitado, sem ter sido eleito pelo povo, passível de atuação norteada pelas pretensões e desejos de determinado grupo político e/ou pessoais ideológicos.
Atualmente, o STF do Brasil não possui mais qualquer limite de atuação, ainda que sua competência esteja muito bem definida na CF, o documento que, curiosamente, o criou e definiu seus “poderes”.
E o caso se agrava ainda mais, já que essa atuação do Supremo tem por fundamento e justificativa uma suposta defesa das normas e princípios constitucionais, em especial os direitos fundamentais, a democracia, em um conceito por deveras aberto, de acordo com sua própria interpretação, autorizando-o atuar em qualquer tema, sem qualquer restrição.
Não há mais qualquer obstáculo ou autocontenção, capaz de limitar a atuação do STF e, com isso, o Brasil passou a ser um país “governado” por 11 ministros.
A ampliação dos poderes do STF pelo STF. Ofensa à separação dos poderes e ao Estado Democrático de Direito
Muito embora não tenha sido a primeira vez que o STF tenha aplicado a teoria do estado de coisas inconstitucional, fato é que na ADPF 635 a referida Corte deixou claro que não haverá limites de interferência em atos do Poder Executivo e do Legislativo, muito além de um “simples ativismo judicial”.
A teoria do estado de coisas inconstitucional, decorre das chamadas ações estruturais dos Estados Unidos da América, permitindo uma interferência pontual do Poder Judiciário quando diante de uma omissão específica relacionada aos direitos fundamentais.
Na Colômbia e na Índia (aplicada também em outros países), essa teoria ganhou adeptos e transformou-se no que se denomina: “estado de coisas inconstitucional”, que vai além do mero ativismo e do que foi manejado nas ações norte-americanas.
O “estado de coisas inconstitucional” permite ao Poder Judiciário impor ao Poder Executivo políticas públicas que considerar conveniente, em detrimento da implementada, interferindo assim, até mesmo, na questão orçamentária.
A referida teoria, no entanto, ainda que a considerada legítima, exigiria para sua aplicação (quando criada), o preenchimento de, ao menos, cinco requisitos:
- a violação massiva e generalizada de vários direitos constitucionais que afetam um número significativo de pessoas;
- a prolongada omissão das autoridades no cumprimento de suas obrigações para garantia desses direitos;
- a adoção de práticas inconstitucionais;
- a não expedição de medidas legislativas, administrativas ou orçamentárias necessárias para evitar a violação dos direitos;
- a existência de um problema social cuja solução requer a intervenção de várias entidades e a adoção de um conjunto completo e coordenado de ações.
Nota-se, que são conceitos abertos, mas que, ainda assim, exigem um cuidado especial do intérprete quando do reconhecimento de uma possível aplicação da teoria.
O caso da ADPF 635. Intervenção do STF na política pública de segurança do Estado do Rio de Janeiro
No entanto, o que se vê na ADPF 635 é um descontentamento com a política adotada pelo governo local eleito, impondo ao Estado do Rio de Janeiro um limite inaceitável de atuação e invasão de sua competência.
A mera insatisfação com a política pública adotada não serve (ou, não deveria servir) de base para a aplicação da teoria do estado de coisas inconstitucional.
O mais grave da ADPF 635, não obstante, por óbvio, a seriedade e a urgência de medidas necessárias ao caso, tendo em vista o grande número de óbitos de uma determinada população, fato curioso, é que o pedido de intervenção decorre de um determinado partido político (PSB), oposição ao governador eleito no Estado, e que sugere ao STF a “implementação” de uma política de segurança que, na visão deste partido, é considerada a mais adequada.
Trecho da inicial do autor da ação:
“a fim de que sejam reconhecidas e sanadas as graves lesões a preceitos fundamentais da Constituição praticadas pelo Estado do Rio de Janeiro na elaboração e implementação de sua política de segurança pública, notadamente no que tange à excessiva e crescente letalidade da atuação policial, voltada sobretudo contra a população pobre e negra de comunidades. Diante desse reconhecimento, postula-se a adoção das diversas providências listadas ao final desta petição.”
Ao deferir o pedido inicial, ainda que em parte, o STF, como colocado anteriormente, acabou por permitir a implementação de política pública estabelecida como a “mais adequada”, não pela sociedade, ou pelo governo local eleito e legitimado, mas por uma política sustentada pelo autor da ação.
O que se extrai da ADPF 635 é deveras perigoso e pode trazer uma grave crise entre os Poderes e na Corte com a quantidade de casos que poderão chegar, especialmente quando o STF vier a ser provocado por outros partidos, com ideologias e políticas das mais diversas.
E pior, quando for provocado para tratar, também, de outros direitos fundamentais, gravemente afetados pelas políticas públicas e por todos os entes, como a saúde, o saneamento básico, a educação, o transporte, a previdência, a assistência social, a habitação, a alimentação (fome), dentre outros inúmeros direitos inadequadamente prestados, ou inexistentes, no Brasil.
Indaga-se, ainda, alguns fatos relevantes: e quando a política estabelecida pelo STF, ainda que decorrente de debates com diversas entidades e a sociedade civil, não conseguir obter o resultado esperado? E se esse resultado negativo for percebido após alguns anos? E se a política estabelecida através do STF resultar em agravamento da situação que se busca solução?
Percebe-se, no Rio de Janeiro, que, embora dados revelem queda na letalidade decorrente de operações policiais, em contrapartida o crime organizado vem ganhando território em plena expansão de atuação e domínio.
Curiosamente, o partido político, autor da ação (ADPF 635), PSB, governa três Estados (Maranhão, Espírito Santo e Paraíba).
De acordo com o anuário de segurança pública (2022), todos esses três estados possuem índices superiores ao Estado do Rio de Janeiro com relação aos homicídios violentos.
No tocante aos números relacionados à atuação policial no enfrentamento da criminalidade, os maiores óbitos são identificados nos Estados da Bahia e do Amapá.
Em Fortaleza, no Estado do Ceará, notícias divulgadas na imprensa, destacam que “traficantes comandam a rede de internet” do município, o que leva a crer que seria necessária e urgente uma intervenção no referido ente estatal por parte do STF.
Um dado, porém, caso chama a atenção e coloca o Rio de Janeiro, verdadeiramente, no topo, em comparação aos demais Estados da federação: o de mortes de policiais em serviço, e o que levaria a se buscar, também, na ADPF mencionada, políticas públicas de preservação das vidas policiais, com o estabelecimento de assistências, melhor formação, investimentos e melhores condições de trabalho ao policial, mas que, infelizmente, não se observa da inicial, nem nos debates que seguem a referida ação estrutural.
A referida ADPF 635, possivelmente, foi muito bem pensada pelo autor da ação, pois nada melhor do que levar ao Poder Judiciário um caso grave, sensível e que traz um grande apelo social para que, através desse tema, possa, futuramente, “ampliar” os precedentes (e poder) da Corte, quando diante da teoria do “estado de coisas inconstitucional”.
Conclusão
As denominadas ações afirmativas foram criadas nos EUA, consideradas as peculiaridades do país, visando o fim da segregação racial e da desigualdade entre os cidadãos norte-americanos.
Posteriormente, essas ações afirmativas serviram para implementação de políticas fundadas em debates ideológicos e de costumes.
No Brasil, as ações afirmativas serviram, no início, com o mesmo propósito, a fim de dar efetividade aos direitos fundamentais, especialmente os relacionados aos direitos de igualdade entre gêneros e raças.
Esse controle constitucional, através das ações afirmativas ou das próprias ações diretas (de constitucionalidade/inconstitucionalidade), permitem que o STF atue, não somente para retirar normas ilegítimas do ordenamento jurídico, mas como “legislador positivo” nos casos de necessária efetivação de direitos, considerando a ausência de norma especifica produzida pelo Poder Legislativo.
Posteriormente, com base em uma teoria desenvolvida na Colômbia, denominada “estado de coisas inconstitucional”, o STF, sob o argumento de proteção aos direitos fundamentais, passou a atuar na implementação e fiscalização de políticas públicas, em substituição aos administradores democraticamente eleitos.
Essa permissão fornecida pela própria Corte torna-se ilegítima, pois amplia, sem autorização, a sua competência, estabelecida pela CF, ofende o Estado Democrático de Direito, a democracia, a separação dos poderes, e o permite atuar livremente, sem resistência e limites, em substituição aos demais Poderes da República.
Suas recentes nomeações evidenciam escolhas políticas e de poder por parte de determinados grupos, desvirtuando a essência de suas funções, não obstante suas qualificações de excelência.
O STF não representa (mandato) o povo brasileiro, sendo uma característica que deveria limitar sua atuação estritamente nos limites expostos na CF.
Torna-se preemente o debate sobre os limites de atuação do STF, em especial nas chamadas intervenções em políticas públicas e atos da administração e de governo, bem como uma readequação do sistema de controle de constitucionalidade e reformulação da estrutura da Corte.
O sistema de freios e contrapesos para ser efetivo precisa de regras concretas que garantam a fiscalização mútua das atribuições e meios adequados de sustação de atos abusivos por parte de algum dos Poderes.
No Brasil, a CF prevê, como exemplo, de maneira tímida, no art. 49, XI, ser competência exclusiva do Congresso Nacional zelar pela sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes.
Neste caso, considerando a ampliação de competência do STF, sem a modificação necessária no texto constitucional, poder-se-ia pensar na utilização da referida norma para sustar qualquer “ato normativo” expedido pela Corte que ultrapasse os limites de sua atuação legislativa, ainda que oriundo de um (camuflado) ato judicial, o que nunca foi discutido.
Porém, a melhor solução está na conscientização coletiva das autoridades envolvidas para que os Poderes da República possam atuar dentro de suas limitações expostas no texto constitucional, sem prejuízo da criação de novas normas aptas à efetivação e fiscalização dos limites e sustação dos abusos, sob pena de perder-se o controle das instituições e o Brasil ingressar em uma infinita “guerra de/pelo poder”, interessante, apenas, aos inimigos do país e do povo brasileiro.