I. – Introdução
Nos últimos tempos, o instituto da desconsideração da personalidade jurídica tem ganhado destaque nos debates jurídicos. Recentemente, tivemos a oportunidade de oferecer nossa crítica1 à mudança de entendimento do STJ em relação à fixação de honorários exclusivamente na hipótese de improcedência do pedido.
Não foi a primeira vez que apontamos o desequilíbrio2 nas relações entre credor e devedor, nem é novidade para advogados militantes na área da recuperação de ativos o descompasso entre o avanço de técnicas e estratégias destinadas a limitar a exposição de investidores em relação aos riscos inerentes à atividade empresarial.
O intuito não é oferecer um juízo moral sobre as escolhas feitas no microcosmo da reestruturação societária ou planejamento sucessório. “São apenas negócios”, diz o clichê.
Neste breve estudo, enfrentar-se-á uma estratégia que é encontrada com incremental frequência no âmbito das recuperações de créditos e ativos: o exercício do controle acionário de uma sociedade anônima através de pessoas jurídicas cujo patrimônio se limita às próprias ações daquela, à semelhança de um famoso brinquedo russo, a boneca matrioshka.
II. – Matrioshka na estrutura societária
A boneca-russa, matrioshka, tem uma origem bem documentada, sendo criada no ano de 1890 por Vasily Zvyozdochkin e Sergey Malyutin. Constitui-se de um conjunto de bonecas de madeira inseridas uma dentro das outras, todas ocas, exceto pela última e menor delas.
Abrindo-se a primeira boneca, encontra-se a segunda, menor e distinta apenas em sua pintura, quando não idêntica. Esta segunda boneca, quando aberta, revelará uma terceira boneca, um pouco menor. Invariavelmente, e a despeito do número de peças, acabará se alcançando a única que não esconde outras réplicas.
A mesma lógica se aplica à tendência de constituir holdings com o fim específico de substituir a figura do sócio no quadro societário de companhias limitadas ou sociedades anônimas. Conquanto as razões para seu emprego sejam variadas e plenamente justificáveis, seu potencial como instrumento de abuso e ocultação patrimonial é patente.
Imaginemos uma sociedade anônima hipotética, a Matrioshka S.A., cujo controle acionário seja exercido por outra pessoa jurídica, uma holding de participações constituída na forma de sociedade limitada, a Boneca-Russa Participações LTDA., composta pelos sócios Vasily e Sergey.
Partindo deste cenário, examinaremos duas questões jurídicas particulares: a forma da desconsideração da personalidade jurídica à luz da lei 6.404/76 (LSA) e a modalidade da desconsideração per saltum como remédio contra o uso de múltiplas pessoas jurídicas postas entre a desconsideranda e seu sócio final.
III. – Acionista controlador e a desconsideração da personalidade jurídica
A desconsideração da personalidade jurídica, como estabelecida no art. 50 do CC, presume atos de controle. Afinal de contas, não se deturpa a função da companhia ou se transfere ativos e passivos sem o poder de definir a forma de sua administração, ainda que indiretamente.
Para a CVM - Comissão de Valores Mobiliários o entendimento sobre controle da sociedade tangencia “o poder efetivamente utilizado por acionista de dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia, de forma direta ou indireta, de fato ou de direito, independentemente da participação acionária detida”.
José Alexandre Tavares Guerreiro, do ponto de vista sociológico, afirma: “no que tange ao poder do acionista controlador, tem ele foro próprio, que vem a ser a assembleia geral, em que seu voto prepondera, mas é inegável que o exercício daquele poder se verifica também fora da assembleia geral, mediante a utilização de uma força informal, insuficientemente normatizada, que se traduz na fórmula legislativa de dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia”.
Nos termos do art. 116 da lei 6.404/76, a condição de acionista controlador exige o preenchimento cumulativo de dois pressupostos: (i.) titularidade da maioria de votos nas deliberações; ter o poder de eleger a maioria dos administradores; e (ii.) utilização de modo permanente e efetivamente esse poder.
Observe-se que o dispositivo prevê que pode ser considerado acionista controlador “a pessoa física ou jurídica, ou grupo de pessoas vinculadas por acordo de voto ou de controle comum”.
É certo que este poder, como qualquer outro direito, está sujeito ao abuso por seu detentor. Como bem aponta Rodrigo Rentzsch Sarmento Barata, “[p]or dirigir as atividades da sociedade, o controlador tem lógica influência sobre o desvio de finalidade da pessoa jurídica. O dever de diligência engloba o respeito às funções próprias da pessoa jurídica. Assim, o uso disfuncional de uma sociedade tem relação direta com o exercício dos poderes pelo controlador, o que atrai sua responsabilidade.”
Valemo-nos das lições do autor Rof Madaleno, “a condição de sócio controlador colide com o princípio maior da boa-fé objetiva, consagrado pelo Código Civil de 2002, e está, igualmente, conectado com o artigo 187 do Código Civil ao estabelecer a aplicação da desconsidera¬ção da pessoa jurídica quando ocorrer abuso do direito ou como admitem os preceitos legais que regulam a sociedade anônima, também haverá abuso no desvirtuamento do poder de controle do acionista controlador da empresa.”
O art. 117, da lei 6.404/76 estabelece balizas para a valoração dos atos praticados pelo controlador que responderá pelos danos causados pelo exercício abusivo do poder de direção da companhia, sendo a desconsideração da personalidade jurídica o instrumento processual plausível a terceiros, enquanto os demais acionistas e a própria companhia deverão se valer da ação social disposta no art. 246, §§, da mesma lei.
Neste ponto, assevera Guerreiro que “o elenco não taxativo de modalidades de abuso do poder de controle, que a Lei 6.404/76 registra no artigo 117, §1º, compreende não só o abuso do direito de voto em assembleia geral, mas também o abuso do poder verificado fora da reunião acionária, mediante ordens e determinações sem forma nem figura, impostas ao Conselho de Administração e/ou aos diretores sem qualquer formalidade.”
As hipóteses relacionadas no §1º do referido art. 117 podem indicar a configuração tanto do desvio de finalidade, quanto da confusão patrimonial, como estabelecidos no art. 50 do CC.
Frente às considerações, bem como à lacuna da legislação acionária brasileira, certo é que caberá ao terceiro interessado comprovar o abuso do poder de controle cometido para imputar àquele a responsabilidade pelos atos perpetrados, através do incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
Não há grande controvérsia quanto à sujeição do acionista controlador às consequências de suas escolhas. O STJ há tempos tem o entendimento pela aplicação da desconsideração da personalidade jurídica às sociedades anônimas, desde que seja para inserção no polo passivo da demanda principal o acionista controlador.
Neste sentido, no julgamento do REsp 1.412.997/SP de relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, decidiu-se que:
“Nos termos do art. 50 do CC, o decreto de desconsideração da personalidade jurídica de uma sociedade somente pode atingir o patrimônio dos sócios e administradores que dela se utilizaram indevidamente, por meio de desvio de finalidade ou confusão patrimonial. É de curial importância reiterar que, principalmente nas sociedades anônimas, impera a regra de que apenas os administradores da companhia e seu acionista controlador podem ser responsabilizados pelos atos de gestão e pela utilização abusiva do poder; sendo certo, ainda, que a responsabilização deste último exige prova robusta de que esse acionista use efetivamente o seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar os órgãos da companhia.”
A questão posta, contudo, diz respeito à identificação do verdadeiro controlador que se utiliza de pessoa jurídica interposta e cujo patrimônio social se limita às ações da sociedade devedora.
Como a boneca-russa, o credor levantaria o véu da personalidade jurídica apenas para encontrar a mesma devedora. Conquanto pudesse penhorar as ações da executada original, tal medida no mais das vezes se revela ineficaz para o fim específico de satisfação do crédito inadimplido.
Não devemos ignorar o complexo trâmite de sua penhora, nos termos do art. 861, incisos I a III do CPC que, para o caso de sociedades anônimas fechadas, desaguará na liquidação das ações e seu depósito em juízo.
A alternativa trazida pelo §2º do mesmo dispositivo, voltada às S.A. abertas não é mais atraente, já que a adjudicação das ações, ou sua alienação em bolsa de valores, ainda vinculariam o credor a uma empresa dilapidada pelos ilícitos que autorizaram a própria desconsideração de sua personalidade jurídica.
É para esta situação que é proposta a adoção da desconsideração per saltum para que os verdadeiros controladores, como a última boneca do conjunto, sejam responsabilizados.
IV. – A desconsideração per saltum da personalidade jurídica
“O tempo é uma ilusão. A hora do almoço é uma ilusão maior ainda.”
Trazendo ao debate a profunda observação de Ford Prefect, o pesquisador betelgeusiano da cômica série O Guia do Mochileiro das Galáxias, de Douglas Adams, podemos dizer que “a personalidade jurídica é uma ilusão. A personalidade da holding de participações é uma ilusão maior ainda.”
Em texto anterior3, examinando os efeitos da penhora das quotas sociais de uma holding, sustentamos que a ausência de atividade empresarial própria implicaria numa conexão direta entre sua esfera patrimonial e a de seus sócios.
O mesmo raciocínio se aplica à hipótese ora examinada: a pessoa jurídica que existe para representar a vontade de seus sócios na administração de uma sociedade anônima não tem a mesma autonomia atribuída garantida àquelas que exploram um negócio qualquer.
Usualmente, a empresa tem interesses próprios, devendo prezar por sua própria subsistência. Por exemplo, não se espera que um restaurante que opte por pagar a mensalidade da escola dos filhos de seu sócio ao invés de seus fornecedores continue em atividade. Tal atitude se enquadraria na definição de confusão patrimonial do art. 50, §2º, I do CC.
Já a holding de participações que não tem sede, funcionários ou outra atividade além da representação da vontade de seus sócios na administração da sociedade anônima de que detém ações, não enfrenta a mesma limitação.
Sua razão de existir e o limite de sua atuação é análoga à do procurador de seus sócios, já que são esses que colherão os dividendos percebidos uma vez que a pessoa jurídica interposta não apresenta custo operacional.
Retornemos ao caso hipotético a que nos referimos anteriormente: a Matrioshka S.A. tem como acionista controladora a Boneca-Russa Participações Ltda., com dois sócios, Vasily e Sergey.
Demonstrado o abuso do poder de controle pela Boneca-Russa Participações Ltda. e acolhido o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, o credor encontrará apenas as ações da insolvente Matrioshka S.A., enquanto os dividendos percebidos são regularmente transferidos para Vasily e Sergey.
De acordo com a jurisprudência majoritária, para que os dois sócios sejam incluídos no polo passivo da execução, exige-se a demonstração do desvio de finalidade ou confusão patrimonial entre eles e a Boneca-Russa Participações Ltda., o que beiraria o impossível.
Isso porque nenhum ilícito seria necessário para que o produto do abuso lhes fosse transferido, encerrando-se na holding de participações o vínculo com a sociedade desconsiderada.
É o que já decidiu o TJ/SP:
“Porém, quanto à decisão de inclusão da agravante, Aline Granado Bertin, o inconformismo prospera.
Isso porque, trata-se de desconsideração da personalidade jurídica para incluir no polo passivo da ação os sócios da empresa executada, Terra e Forma Fernandópolis Spe Ltda. Ocorre que, no caso, do “Instrumento Particular de 2ª Alteração de Contrato Social” (fls. 21/39 da origem), nota-se que a única sócia da empresa executada é a empresa, Persico Participações Ltda. (...).
Assim, admitir desde já, a inclusão da pessoa física tão somente da empresa Persico Participações Ltda. sócia no polo passivo da execução, implicaria desconsideração per saltum, o que não se admite, vez que seria necessário, em primeiro lugar, a inclusão da empresa-sócia, para, depois, se o caso, pretender a extensão da responsabilidade da sócia da empresa Persico Participações Ltda.), a agravante Aline.”
Interpretado isoladamente o texto legal, a solução alcançada pela Corte Paulista parece irretocável: cada pessoa jurídica tem personalidade própria e autônoma, cuja superação está sujeita ao preenchimento dos requisitos do art. 50 do CC.
Ocorre que tal leitura cria uma situação análoga à lavagem de dinheiro, já que os valores transferidos ilicitamente da Matrioshka S.A. para a Boneca-Russa Participações Ltda. podem ser remetidos aos sócios Vasily e Sergey sem qualquer ilicitude, fadando a execução ao insucesso.
Este é o cenário para o qual propõe-se a adoção da desconsideração per saltum como remédio jurídico cabível, reconhecendo-se que a Boneca-Russa Participações Ltda. representaria verdadeiro alter ego de Vasily e Sergey, efetivos controladores da Matrioshka S.A.
Dissipada a ilusão da personalidade jurídica, é forçoso reconhecer que a holding de participações não possui vontade ou compromissos próprios, existindo apenas como uma segunda camada de isolamento entre a sociedade anônima e os beneficiários do controle acionário.
Não importa quantas bonecas idênticas sejam colocadas entre a primeira e a última, é com a inclusão desta no polo passivo da execução que o ilícito será superado, garantindo-se a efetividade da lei em sua essência.
V. – Conclusão
A técnica da desconsideração per saltum, à primeira vista, parece incompatível com nosso senso comum de justiça e devido processo legal. Se a pessoa jurídica é considerada um ente autônomo, então as consequências do ilícito por ela praticado não poderia alcançar terceiros estranhos ao abuso.
Todavia, os sócios da holding de participações não são estranhos aos atos da sociedade. Em nossa alegoria, a Boneca-Russa Participações Ltda. não age senão como porta-voz de Vasily e Sergey, aqueles que efetivamente ostentam a condição de controladores, mesmo que não sejam formalmente acionistas, da Matrioshka S.A. e exercem o poder de mando que conduziu à desconsideração de sua personalidade.
Até que a lacuna normativa seja preenchida, compete à doutrina e às Cortes eliminar esta brecha sistêmica, desincentivando o uso de pessoas jurídicas que existam somente como matrioshkas que, abertas, revelam novas bonecas ocas e escondem em seu núcleo os frutos do ilícito cometido à ordem e em benefício de seus idealizadores.
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1 https://www.migalhas.com.br/depeso/425145/honorarios-sucumbenciais-em-idpj-o-agravamento-do-desequilibrio
2 https://www.migalhas.com.br/depeso/420398/coisa-julgada-e-idpj
3 https://www.migalhas.com.br/depeso/407686/o-navio-de-teseu-e-a-autonomia-mitigada-da-holding-patrimonial
4 GUERREIRO, José Alexandre Tavares. “Sociologia do poder na sociedade anônima”, RDM n. 77, p. 50-56, 1990.
5 MADALENO, Rolf. “A desconsideração judicial da pessoa jurídica e da interposta pessoa física no direito de família e no direito das sucessões”. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
6 Sociedades : Lei das Sociedades Anônimas comentada: volume 2 / coordenação Alfredo de Assis Gonçalves Neto. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, p. 563, 2024.
7 STJ; REsp n. 1.412.997/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 8/9/2015, DJe de 26/10/2015.
8 TJSP; Agravo de Instrumento 2238227-07.2024.8.26.0000; Relator: Vicentini Barroso; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 24/09/2024; Data de Registro: 24/09/2024.
9 BARATA, Rodrigo Rentzsch Sarmento. Alcance Subjetivo da Desconsideração da Personalidade Jurídica: imputação de sócios, controladores e administradores – Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 115.