A recente visita do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, à Hungria, reacendeu um debate de alta complexidade no âmbito do Direito Internacional Penal, concernente aos limites da jurisdição do TPI - Tribunal Penal Internacional em face da soberania estatal. A celeuma adquiriu novos contornos quando autoridades húngaras aventaram, em tom incisivo, a possibilidade de denunciar o Estatuto de Roma – tratado constitutivo do TPI – como forma de obstar ao cumprimento de um eventual mandado de prisão expedido contra o líder israelense. A declaração, longe de consubstanciar mero ruído diplomático, evidencia uma fissura latente no modelo de justiça penal internacional vigente desde 2002.
O TPI, concebido como mecanismo permanente de responsabilização por crimes internacionais graves (genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e, mais recentemente, crime de agressão), enfrenta, desde sua fundação, críticas concernentes à seletividade e à politização de suas decisões. Não obstante seja dotado de autonomia funcional e jurisdicional, o tribunal opera em um terreno delicado: depende da colaboração dos Estados para executar seus mandados, mas frequentemente enfrenta resistências políticas, sobretudo quando a persecução recai sobre chefes de Estado em exercício ou líderes de países não alinhados aos interesses das grandes potências ocidentais. É imperioso reconhecer que a efetividade do TPI reside na cooperação irrestrita dos Estados, e qualquer tentativa de obstrução compromete a credibilidade e a legitimidade da justiça penal internacional.
No caso específico de Netanyahu, o TPI analisa sua atuação – juntamente com a do ministro da defesa de Israel, Yoav Gallant – à luz de supostos crimes cometidos na Faixa de Gaza, incluindo o uso desproporcional da força, punição coletiva à população civil e bloqueio humanitário. Ainda que Israel não seja parte do Estatuto de Roma, o tribunal se declara competente para analisar a situação a partir da adesão da autoridade palestina ao tratado, além da natureza dos crimes, que violam normas de jus cogens, como o princípio da proteção de civis em conflitos armados.
A visita à Hungria, país signatário do TPI, colocou o governo húngaro diante de um dilema jurídico e diplomático: cumprir o Estatuto de Roma e prender Netanyahu – conforme estabelecido no mandado internacional, caso emitido – ou preservar a relação bilateral estratégica, assumindo o ônus político de ignorar uma decisão do tribunal. Ao ventilar a hipótese de retirada formal do TPI, a Hungria se alinha a um movimento observado em outros contextos – como o dos Estados Unidos, que nunca ratificaram o tratado; da Rússia, que se retirou após a acusação de crimes na Crimeia; ou das Filipinas, que abandonaram o tribunal em meio a investigações sobre execuções extrajudiciais no governo Duterte. Tal postura, contudo, fragiliza o sistema de justiça internacional e pode encorajar a impunidade de crimes graves.
Essa tensão revela um embate clássico entre soberania e jurisdição internacional: até que ponto um Estado deve se submeter a decisões de uma corte supranacional, sobretudo quando envolvem figuras políticas de alto escalão? E, mais ainda, qual a eficácia de um sistema de justiça internacional que depende da adesão voluntária dos Estados, mas visa julgar crimes que, por definição, afetam a coletividade humana como um todo?
Do ponto de vista jurídico, a saída do TPI não exime um país de cooperar com investigações que envolvam crimes de natureza universal. A própria jurisprudência internacional – inclusive no âmbito da CIJ - Corte Internacional de Justiça – reconhece que a retirada de um tratado não tem efeito retroativo e não anula obrigações decorrentes de normas imperativas. Em outras palavras, mesmo que a Hungria optasse por se desligar do TPI, poderia ser cobrada a cumprir obrigações já assumidas enquanto Estado-parte, especialmente se a demanda envolver crimes contra a humanidade. A responsabilidade internacional por crimes de jus cogens é inderrogável e imprescritível, não podendo ser elidida por manobras políticas ou jurídicas.
Uma análise comparativa com outros tribunais internacionais, como a própria CIJ e o TEDH - Tribunal Europeu de Direitos Humanos, revela diferentes abordagens para lidar com a soberania dos Estados e a jurisdição penal. Enquanto a CIJ se concentra em disputas interestatais e o TEDH em violações de direitos humanos cometidas por Estados, o TPI enfrenta o desafio particular de julgar indivíduos – inclusive chefes de Estado – por crimes internacionais graves, o que frequentemente desencadeia resistências políticas internas e tensões diplomáticas.
Casos emblemáticos, como o de Omar al-Bashir, ex-presidente do Sudão, ilustram as dificuldades enfrentadas pelo TPI ao tentar exercer sua jurisdição. Apesar de acusado formalmente de genocídio e crimes contra a humanidade, sua prisão foi reiteradamente frustrada pela ausência de cooperação de Estados membros, mesmo quando esteve em seus territórios. Esse cenário evidencia a fragilidade do sistema atual e reforça a necessidade de mecanismos mais robustos de cooperação internacional, que incluam incentivos à adesão ao Estatuto de Roma, sanções para a inércia estatal e a melhoria dos processos investigativos. A comunidade internacional deve envidar esforços para fortalecer o TPI, dotando-o de instrumentos eficazes para garantir a responsabilização de indivíduos por crimes que atentam contra a consciência da humanidade.
Por fim, a análise das implicações da jurisdição do TPI para a cooperação internacional ressalta a importância de um sistema de justiça que seja visto como imparcial, eficaz e equitativo. Apenas com a percepção de que todos os Estados e seus líderes são tratados com igualdade de critérios – e que os crimes mais graves não serão tolerados em nome de conveniências políticas – é que se poderá reforçar a autoridade moral e institucional do TPI. Nesse sentido, o episódio envolvendo Hungria e Netanyahu não é um ponto fora da curva, mas sim um sintoma da necessidade urgente de reformar e consolidar a justiça penal internacional como instrumento legítimo de pacificação e responsabilização global.