Migalhas de Peso

Uma lente de aumento ampliada para a recente decisão do Tribunal do Cade sobre notificação de ativos imobiliários

O Cade sinaliza revisão na notificação de ativos imobiliários, visando segurança jurídica, eficiência regulatória e foco concorrencial real.

30/4/2025

1. Muito se repercutiu sobre a orientação recente do Tribunal do Cade de não ser necessária a aprovação, pelo Cade, de operações envolvendo a compra e venda de imóvel não operacional. No caso1, Bompreço Bahia Supermercados Ltda. teria encerrado as atividades de um estabelecimento comercial não operacional, cujo imóvel seria então adquirido por uma incorporadora imobiliária para outra destinação. 

2. Embora a decisão do Tribunal do Cade não inove no mérito, é suficientemente clara a ponto de afastar, ao menos em parte, incertezas derivadas de decisões não uniformes da autarquia sobre o tema. Mas a recente orientação deve ser lida com lente de aumento ampliada.

3. A notificação de ativos imobiliários ao Cade é objeto de críticas por parte de empresas e advogados com atuação no Cade. A reclamação é antiga e se dá pelo fato de o setor imobiliário consistentemente figurar entre os setores com mais notificações, sendo a esmagadora maioria dos casos processados pelo rito sumário de análise, sem representar riscos concorrenciais.2

4. O excessivo volume de casos tem explicação. A resolução Cade 33/22 – que trata da notificação de atos de concentração ao Cade –, não possui dispositivos específicos para ativos imobiliários. Diante disso, aplica-se uma análise concorrencial geral a um mercado repleto de particularidades. E, para além do aspecto normativo, as decisões recentes da Superintendência-Geral do Cade são conflitantes3 e geram insegurança jurídica aos administrados, levando à adoção de estratégias conservadoras de submissão ad cautelam para evitar a aplicação de multas de até R$ 60 milhões4, além de sanções não pecuniárias. A operação pretendida representa acréscimo de capacidade produtiva? O ativo transacionado possui destinação específica? O imóvel em negociação pode ser considerado essencial à atividade econômica da compradora? Essas e outras perguntas passaram a ser recorrentes no dia a dia das empresas.

5. O cenário é contraproducente. De um lado, o Cade deixa de direcionar os seus recursos – escassos – para casos com potencial concorrencial lesivo. De outro lado, as empresas levam mais tempo para implementar suas operações imobiliárias e arcam com custos mais elevados. Efeitos indiretos, e positivos, de um olhar mais atento do Cade para esse setor são (i) redução dos custos de transação em relação a uma parcela significativa de operações imobiliárias; (ii) possível otimização do tempo médio de análise dos demais atos de concentração, pela liberação de parte dos recursos humanos da autarquia; (iii) eficiência econômica e administrativa, melhorando o ambiente de negócios.

6. A boa notícia é que o Cade parece estar disposto a rever o assunto. No dia seguinte à sessão de julgamento, foi disponibilizada a portaria normativa Cade 46/25 instituindo novo GT - Grupo de Trabalho para discutir regras relacionadas à notificação de atos de concentração envolvendo aquisição de ativos. O movimento indica um provável caminho normativo a ser construído pelo Cade.

7. E mais. As ações do Cade com relação à notificação de ativos imobiliários podem marcar o início de uma revisão geral da resolução Cade 33/22, sinalizada pelo próprio Tribunal do Cade em 2024 e desejada pela comunidade antitruste. Quais outros temas relacionados à notificação de operações podem disputar a atenção do Cade neste ano?

8. O exercício prospectivo nos leva imediatamente ao conceito de “controle” estabelecido na resolução Cade 33/22, com repercussão na definição de grupo econômico para fins concorrenciais. Pode ser o momento adequado para o Cade, após a decisão do Tribunal do Cade no AC Digesto/Jusbrasil,5 reconsiderar definitivamente o critério de participação acionária de 20% e restringir a análise de controle aos direitos de governança detidos pelos acionistas? E, sendo esse o caminho, deve-se aprofundar e listar especificadamente cada um dos direitos tidos como relevantes para a análise de controle na resolução Cade 33/22? 

9. Essa mudança poderia, também, levar à redução de operações notificadas ao Cade pelo fato de um dos critérios de notificação obrigatória para a autarquia ser o faturamento dos grupos econômicos envolvidos na operação pretendida, juntamente com a produção de efeitos no Brasil e a qualificação da operação como ato de concentração.

10. Para além do controle, efeitos de operações no Brasil deveriam exigir atenção do Cade. Os julgados do Cade têm dado direcionamento a respeito, por exemplo, da necessidade de notificação em casos em que a operação não gere efeitos imediatos no Brasil, mas há possibilidade de exportação no prazo de 5 anos após a assinatura do contrato, ou mesmo em casos em que o mercado é definido como mundial, não sendo possível excluir o risco de o produto chegar no Brasil, mesmo não sendo o Brasil objeto daquela operação. Não estaria tal direcionamento criando ônus excessivos às empresas? Parece-nos salutar, para fins de segurança jurídica, o aprofundamento e a implementação de diretrizes na própria resolução Cade 33/22, ao invés de os administrados ficarem dependentes de julgados esparsos.

11. E, ainda, a notificação de joint ventures é uma candidata para alterações na resolução Cade 33/22, considerando não haver qualquer distinção na legislação concorrencial nacional acerca dos diferentes tipos de joint venture, incluindo aquelas não concentracionistas. A Europa avançou há muito nesse tema, ao não exigir a notificação às autoridades concorrenciais europeias de non full function JVs, joint ventures com função específica que não têm capacidade de produzir mudanças estruturais no mercado.6

12. Considerando o agregado, faz todo sentido que a resolução Cade 33/22 seja revista e atualizada. O ambiente de negócios exige o olhar atento e constante do Cade, e sua postura com relação à notificação de ativos imobiliários indica reconhecer o seu papel e a importância de um melhor direcionamento aos agentes econômicos. Esperamos noticiar, ao final do ano, mudanças nos critérios de notificação que levem à diminuição de casos sem relevância concorrencial, para o melhor aproveitamento dos recursos do órgão, bem como para maior dinamismo e eficiência para os agentes econômicos em geral. Todos ganharão.

___________

1 Consulta nº 08700.007814/2024-75.

2 Anuário do Cade de 2024 que reportou 712 Atos de Concentração submetidos à análise da autarquia em 2024. O setor de incorporação e empreendimentos imobiliários se destacou como um dos quatro principais que notificaram operações. Disponível em: https://indd.adobe.com/view/89a82010-1734-43f2-954b-0318eb218ed1. 

3 Tem-se como exemplos recentes de diferentes raciocínios para a obrigatoriedade de notificação: (i) operacionalidade e essencialidade do ativo para a atividade da empresa compradora, ou gerando aumento de capacidade (Atos de Concentração nº 08700.002190/2020-76); (ii) essencialidade ao negócio da empresa compradora e/ou incremento de capacidade produtiva (mesmo sem operacionalidade; Atos de Concentração nº 08700.007988/2022-76, 08700.006524/2016-02, 08700.003501/2020-14, 08700.001513/2023-57); e (iii) operacionalidade, destinação específica, essencialidade do ativo e/ou acréscimo de capacidade produtiva (Atos de Concentração nº 08700.001216/2024-92, 08700.001580/2024-52, 08700.000735/2024-33, 08700.001514/2023-00).

4 O valor da multa pode ser, em muitos casos, superior ao valor do ativo objeto da transação.

5 Ato de Concentração nº 08700.001465/2023-05, entre Digesto Pesquisa e Banco de Dados S.A. (Digesto) e Goshme Soluções Para A Internet Ltda. (Jusbrasil) . O AC Digesto/Jusbrasil abriu portas para discussão relevante sobre a configuração de grupos econômicos, definição de controle acionário e cálculo do faturamento auferido pelo grupo para fins de notificação de transações ao Cade. Em suma, o Cade entendeu que o ponto de partida para definição de grupo econômico são as empresas diretamente envolvidas na operação, de forma que: (i) se for uma empresa, aplica-se o § 1º, art. 4º da Resolução nº 33/2022; e (ii) se for um fundo de investimento, aplica-se o § 2º do mesmo artigo. Além disso, o Tribunal do Cade levantou discussão sobre definição de controle e direitos de governança detidos por acionistas, abrindo espaço para uma futura definição de quais direitos são considerados relevantes para a análise de poder e controle e para a definição de grupos econômicos. 

6 Em setembro de 2017, o Tribunal de Justiça da União Europeia julgou o caso Austria Asphalt, C-248/16, e concluiu que o Artigo 3 da European Merger Regulation (EUMR) era obscuro em relação ao conceito de concentração e necessidade de notificação de joint ventures não funcionais. 

7 Joint ventures funcionais desempenham de forma duradoura todas as funções de uma entidade econômica autônoma, independentemente de essa JV ser anterior à transação ou ser uma entidade recém-criada. Conforme o entendimento do Tribunal, as joint ventures não funcionais não desempenham essas funções, e não são capazes de gerar mudanças estruturais no mercado. Por não resultarem em concentração e não gerarem efeitos sobre o mercado, as JV não funcionais não estão sujeitas ao controle de estruturas europeu. Em suma, as JVs devem atender ao teste de funcionalidade plena para que o EUMR seja aplicado, independentemente de serem recém-criadas ou de surgirem de uma empresa preexistente.

8 Para mais informações sobre as definições do conceito de concentração e de funcionalidade total de joint ventures, vide Consolidated Jurisdictional Note. Disponível em: https://competition-policy.ec.europa.eu/mergers/legislation/notices-and-guidelines_en

Renê Guilherme S. Medrado
Advogado em São Paulo e em Nova York, atuante em Direito Econômico, Direito da Concorrência e Direito do Comércio Internacional. Bacharel em Direito (PUC-SP), Mestre em Direito (Columbia University School of Law). Doutor em Direito Internacional (USP). Sócio de Pinheiro Neto Advogados. Presidente do IBRAC (biênio 2024/2025).

Luis Henrique Perroni Fernandes
Associado de Pinheiro Neto Advogados. LL.M. pela University of Pennsylvania. Especialização em Economia pela Fundação Getulio Vargas (FGV-EESP). Graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Letícia Vieira de Melo
Associada de Pinheiro Neto Advogados. Graduação em Direito pela Universidade de São Paulo (USP).

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