O STJ atingiu a marca de um milhão de habeas corpus. David Metzker, em artigo publicado na revista eletrônica Migalhas n. 6.090 , registra que “o HC número 1 chegou ao STJ no dia 28 de abril de 1989. O HC n. 100.000 chegou no dia 7 de fevereiro de 2008, quase 19 anos depois. O HC n. 500.00 chegou no dia 22 de março de 2019, 11 anos depois e o HC n. 1.000.000 alcançou a Corte no dia 30 de abril de 2025, quase 6 anos depois”.
Esses números impressionantes provocaram diversas reflexões. Uns, como o jurista Ribeiro Dantas, Ministro do STJ, a criticar o que chama de banalização do emprego do habeas corpus, desvirtuado da sua concepção original de remédio voltado à proteção da liberdade de ir e vir, além do arcaísmo do sistema recursal no processo penal brasileiro (Migalhas, n. 6.090). Outros, como o professor Aury Lopes Jr., no antigo Twitter, a apontar uma disfunção do sistema de justiça penal representada primeiramente pelo descompasso entre o Código de Processo Penal (CPP) de 1941, promulgado em plena ditadura do Estado Novo, e a Constituição democrática de 1988 e, depois, por uma mentalidade marcada pelo autoritarismo inquisitorial de não poucos juízes, o que implica em falar do cotidiano de desrespeito ao devido processo legal e, pior, à própria jurisprudência consolidada dos Tribunais Superiores.
Reformar o CPP para reforçar os recursos ordinários, ampliando cabimento destes para, por exemplo, permitir-se a discussão da falta de justa causa para o recebimento de denúncias ou nulidades em geral, poderia ser uma saída para ver diminuídas as impetrações de habeas corpus, mas, na prática, seria como trocar seis por meia dúzia. Esse recurso ampliado ganharia relevo nas estatísticas processuais e o habeas corpus perderia espaço. Ainda assim, fica a pergunta de se saber se esse recurso ordinário ampliado teria a mesma celeridade e protegeria eficazmente o devido processo legal?
Como quer que seja, antes de qualquer coisa, é preciso reconhecer que o aumento exponencial das impetrações de habeas corpus tem a ver com o aumento da atividade repressiva estatal. Quando se diz que temos a terceira maior população carcerária do planeta isso tem que ser bem entendido. Se há trinta anos a jurisdição federal era insignificante, basta dizer que tínhamos em São Paulo apenas duas Varas Criminais, hoje temos dez só na Capital e outras tantas em praticamente todas as cidades médias e grandes do interior. A Polícia Federal, por outro lado, cresceu e ganha cada vez mais espaço na atividade repressiva. A criminalidade comum também aumentou. Para se ter uma ideia, o Tribunal de Justiça de São Paulo, há trinta anos, tinha apenas seis câmaras criminais; hoje tem dezesseis. É verdade que não há mais o Tribunal de Alçada Criminal, mas o números mostram um aumento colossal no número de casos penais.
Contrapartida do aumento da atividade repressiva estatal foi o aumento da atividade defensiva. A criação das Defensorias Públicas nos Estados e da União deu voz a acusados pobres que antes não chegavam os tribunais superiores e hoje chegam em boas mãos. Sob esse aspecto, por mais que se façam críticas, é positivo que os habeas corpus tenham aumentado. É a voz da defesa presente; algo a demostrar a vitalidade dos mecanismos de defesa numa democracia.
Afora o paralelismo com o crescimento da persecução penal, não se pode desconsiderar que o sistema em vigor, a despeito de falhas e eventuais distorções, tem propiciado a tutela eficaz não apenas da liberdade de ir e vir, mas da legalidade da ação penal.
Se é verdade que em 1832 o habeas corpus aparece muito acanhado, restrito aos casos de prisão, não é menos verdade que na sua evolução, já em 1871, ele ganha uma dimensão preventiva, abrangendo os casos de ameaça de prisão. Mas é na primeira Constituição republicana, em 1891, que o instituto é completamente redimensionado e passa a proteger a violação a quaisquer direitos. Importante, no ponto, a observação do Ministro Enéas Galvão para quem “o habeas-corpus não conserva mais o seu primitivo aspecto, não deve ser conceituado com as restrições da antiga legislação. Outra concepção delle resulta em face dos dizeres do paragrapho 22, doa art. 22”. Esse entendimento, expressão maior da “doutrina brasileira do habeas corpus”, garantiu a posse do então candidato vitorioso ao Estado do Rio de Janeiro, Nilo Peçanha (STF, HC n. 3.697, julgado em 16/12/1914).
No dizer de Evandro Lins e Silva, essa “construção feliz, talvez arrojada em certos casos, mas que foi necessária para suprir a falta de outros institutos capazes de amparar direitos assegurados na Constituição...”[1]
Foi sob o Estado de Sítio, em 1926, que no governo de Arthur Bernardes se estreitou o cabimento do habeas corpus a pretexto de se despolitizá-lo e sem que houvesse o mandado de segurança a amparar outros direitos. Embora muitos saúdem a recondução do habeas às suas origens, o fato é que o novo arranjo dificultou o questionamento judicial de arbitrariedades tão frequentes no campo da política da República Velha.
Historicamente falando, haveria erro na ampliação do habeas corpus? Enéas Galvão dizia que não, pois se atendia às “necessidades de nossa organização social e política”. O Tribunal, dizia ele, “está cumprindo a sua missão de tutelar direitos, está evoluindo com as necessidades da Justiça; se há excesso, é o excesso que leva ao caminho da defesa das liberdades constitucionais” (STF, HC n. 3.697).
Proféticas palavras! Valem, sem tirar e nem pôr, para os dias de hoje. Foi por meio do habeas corpus que se o Judiciário brasileiro tomou as mais importantes decisões: do reconhecimento da inconstitucionalidade do regime integralmente fechado (STF, HC n. 82.959, rel. Min. Marco Aurélio), passando pela exigência de rigor no momento do reconhecimento do autor do crime (STJ, HC n. 598.886, rel. Min. Rogério Schietti) até a integridade da cadeia de custódia na extração da prova digital (STJ, AgRg no RHC n. 143.169, rel. Min. Ribeiro Dantas). Isso, sem falar no início da criação das “Regras de Miranda” entre nós (STF, HC n. 186.797) depois estruturada no julgamento do RE n. 1.177.984, tema de Repercussão Geral n. 1.185, relatado pelo Min. Edson Fachin, e no reconhecimento da inocência de condenados que já cumpriam pena por estupro e prova posterior revelou o erro judiciário na condenação (STF, RHC n. 128.096, rel. Min. Marco Aurélio e STJ, HC n. 870.636, rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca).
Essas e outras importantes decisões, como o habeas corpus coletivo n. 143.641, relatado pelo Min. Ricardo Lewandowski em favor das mulheres presas preventivamente, não representam uma “distorção” ou “desvirtuamento” do emprego do habeas corpus, mas “a própria essência dos atuais writs, que tem origem na ampla concepção protetiva conferida pelo habeas corpus no texto de 1891, é fundamento para interpretarem-se os institutos de maneira mais ampla, afastando-se o caráter fragmentado dos remédios constitucionais no termos que definidos pela Constituição de 1988”. Sistematicidade, completa o Ministro Gilmar Mendes, “que, ao fortalecer a garantia, acaba por fortalecer o direito ao qual se refere, a liberdade de ir e vir”[2].
Cada país cria no seu ordenamento jurídico mecanismos de calibragem para garantir direitos e, por paradoxal que possa parecer, com todos os defeitos que possa ter, ainda não inventaram entre nós nada melhor que o quase bicentenário habeas corpus.
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1. Prefácio ao História do Supremo Tribunal Federal, de Leda Boechat Rodrigues, t. III/1910-1926, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 14.
2. Gilmar Mendes em: O habeas corpus e a proteção efetiva de direitos fundamentais no processo penal brasileiro, in: Habeas corpus: Teoria e prática estudos em homenagem ao Ministro Nilson Naves, orgs. Anna Maria Reis e Outros. Belo Horizonte: D’Plácido, 2023, p. 210/211.