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Temos lei para resolver a "uberização": Trabalho intermitente

A "uberização" das relações de trabalho se consolidou com as plataformas digitais, criando um debate sobre autonomia e informalidade. Este artigo visa apresentar uma tese jurídica viável sobre o tema.

13/5/2025

A chamada “uberização” das relações de trabalho se consolidou nos últimos anos, especialmente com a expansão das plataformas digitais e o avanço da informalidade em troca da autonomia da relação de trabalho. Nesse contexto, o trabalhador, acaba excluído do regime de trabalho tradicional regido pela CLT – Consolidação das Leis do Trabalho, ficando sem amparo previdenciário, garantias mínimas e acesso aos direitos básicos previstos no art. 7º da Constituição Federal.

O debate é amplo e envolve questões de ordem social, política e econômica. No entanto, o objetivo deste artigo é apresentar uma tese jurídica viável, passível de ser suscitada no atual ordenamento.

Importante observar que a Constituição Federal de 1988, em seu art. 7º, elenca de forma expressa ao longo de 34 incisos os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de reconhecer outros que visem à melhoria da condição social.

Diferentemente do Brasil, diversas constituições estrangeiras não incluem esse nível de detalhamento. Em países como os Estados Unidos, as normas trabalhistas são estabelecidas em leis ordinárias ou regulamentos administrativos, sujeitos a alterações legislativas menos complexas.

A opção brasileira revela o compromisso com a dignidade do trabalhador como valor fundante da ordem jurídica. Ao elevar essas garantias à Constituição, criou-se um piso civilizatório mínimo que deve ser observado em qualquer relação de trabalho, inclusive nas novas formas de prestação de serviço.

Diante desse cenário, uma possível solução jurídica para garantir um mínimo de proteção social ao trabalhador, sem afastar a flexibilidade desejada por alguns setores da economia, está no contrato de trabalho intermitente.

Essa modalidade foi incluída no ordenamento jurídico pela reforma trabalhista (lei 13.467/17) e encontra previsão no art. 443, §3º da CLT:

O contrato de trabalho intermitente é aquele em que a prestação de serviços, com subordinação, não é contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade, determinados em horas, dias ou meses, independentemente do tipo de atividade do empregado e do empregador.”

Nesse modelo, o empregador realiza convocações conforme a necessidade, o trabalhador, por sua vez, podem aceitar ou recusar a oferta, sem que seja caracterizada insubordinação. O legislador cuidou disso no Art. 452-A, § 3o da CLT.

A recusa da oferta não descaracteriza a subordinação para fins do contrato de trabalho intermitente”.

Trazendo para a prática, o motorista ou entregador mantém a liberdade de aceitar ou recusar a oferta de trabalho feita pelo aplicativo. Em contrapartida, a plataforma assumiria o pagamento proporcional dos direitos trabalhistas nos termos do art. 452-A, §6º da CLT:

Ao final de cada período de prestação de serviço, o empregado receberá o pagamento imediato das seguintes parcelas: I – remuneração; II – férias proporcionais com acréscimo de um terço; III – décimo terceiro salário proporcional; IV – repouso semanal remunerado; e V – adicionais legais.”

Neste cenário, não se trata de reinventar o mercado de trabalho, tampouco de assegurar salário fixo mensal ao trabalhador por aplicativo, já que sua remuneração seria proporcional aos serviços efetivamente prestados. Trata-se de aplicação do que já foi pacificado pela jurisprudência trabalhista, conforme dispõe o item I da orientação jurisprudencial 358 da SDI-I do TST.

Ainda que não fosse essa a orientação jurisprudencial, é fato notório que a maioria dos trabalhadores por aplicativo aufere remuneração superior ao salário-mínimo nacional.

Ainda que o regime intermitente tenha sido objeto de críticas desde sua introdução, sobretudo em razão da ausência de garantia de jornada mínima, é fato que ele fornece instrumentos formais mínimos de proteção ao trabalhador, ao contrário do que se verifica no modelo atualmente adotado por aplicativos.

É certo que o modelo não resolve todas as fragilidades presentes nas relações de trabalho mediadas por plataformas. No entanto, considerando que o contrato intermitente exige formalização por escrito, com registro na CTPS (art. 452-A, §1º da CLT), e acesso ao sistema de seguridade social, ele pode representar um avanço em relação ao atual estado de informalidade generalizada.

Ao mesmo tempo, permite a coexistência de regimes contratuais diversos, desde que garantidos os direitos fundamentais do trabalho. Portanto, a aplicação do regime intermitente em setores como o de entregas e transporte por aplicativos poderia ser discutida como alternativa intermediária — não vinculando o trabalhador à rigidez do contrato típico, mas também não o deixando à margem da proteção trabalhista.

O fato é que, diante da lacuna legislativa sobre o tema da "uberização", o contrato intermitente já está previsto na legislação ordinária, com regras claras e fiscalização possível. A adoção desse modelo — ainda que demandando eventuais ajustes normativos — poderia reduzir a insegurança jurídica atual.

___________

1 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. Obra revista e atualizada. Livro digital. São Paulo: LTr, 2020. ISBN 9788530101787

2 MUCELIN, Guilherme; CUNHA, Leonardo Stocker Pereira da. Relações trabalhistas ou não trabalhistas na economia do compartilhamento. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2021. ISBN 9786559918164

3 ESCOLA SOCIAL DO TRABALHO. Direito Comparado do Trabalho. São Paulo: Escola Social, 2020. Disponível em: https://www.excolasocial.com.br/wp-content/uploads/2021/01/Direito-Comparado-do-Trabalho-2020.pdf. Acesso em: 8/5/25.

Rafael Viana
Advogado desde 2010. Especializado em Direito do Trabalho pela FMU. Membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB/SP. Sócio-propritário do escritório Viana Advogados Associados.

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