Migalhas de Peso

O STJ e o enfrentamento das decisões envolvendo portadores de TEA

A explosão de ações sobre TEA pressiona o STJ a definir os limites da cobertura terapêutica pelos planos de saúde, gerando alta insegurança jurídica.

13/5/2025

Os advogados e demais operadores do Direito que atuam no ramo da saúde suplementar estão acostumados a enfrentar ações de massa que discutem assuntos envolvendo coberturas contratuais e outras questões da relação de consumo entre operadoras de planos de saúde e seus consumidores. Ao longo das duas últimas décadas, já se viu discussões sobre limite de tempo na internação hospitalar, cobertura para órteses e próteses, cirurgias por vídeo, reajustes por faixa etária, todas com volumes expressivos de ações que, em determinada época e contexto judicial, abarrotaram o Judiciário por algum tempo, até que houvesse a estabilização do entendimento do próprio STJ ou até mesmo do STF acerca de determinada tese, acalmando os ânimos entre as partes envolvidas. No entanto, jamais se viu um volume tão grande de demandas envolvendo um determinado grupo de pacientes em razão de determinada patologia, ou melhor, transtorno, como no caso dos processos envolvendo as coberturas para portadores de transtornos do espectro autista ou, simplesmente, TEA. Esta é, em jargão popular, a bola da vez nas questões judiciais envolvendo assuntos ligados à saúde. 

As razões para esse incremento estão ligadas, primeiramente, ao aumento significativo de diagnósticos envolvendo crianças portadoras do transtorno mas, fundamentalmente, em decorrência da modificação da legislação - decorrente da mitigação do caráter taxativo do rol de procedimentos da ANS - mas também pela ampliação e modificação dos critérios de cobertura presentes na normatização emanada pela Agência na sua função de regulamentar a lei dos planos de saúde, modificando as hipóteses de cobertura a partir de 2021. De lá para cá, no mínimo três resoluções normativas ampliaram severamente os critérios de cobertura contratual, acabando com os limites anuais de cobertura para sessões de fonoaudiologia, terapia ocupacional, fisioterapia e psicologia e possibilitaram que os médicos indicassem os métodos que entendessem mais adequados para os tratamentos envolvendo, inclusive, tais áreas, afins à medicina. 

O que se viu, a partir daí, foi o questionável entendimento de que, havendo pedido médico, operadoras estariam obrigadas a custear quaisquer tratamentos, com quaisquer métodos ou fora dos ambientes clínicos de saúde. Com a justificativa de serem terapias aplicadas ao comportamento humano - como a conhecida terapia ABA - pedidos de acompanhamento escolar ou em domicílio passaram a aportar, a despeito da superada questão relativa à quantidade de sessões paras as terapias tradicionais, algo imediatamente absorvido pelas operadoras, não obstante a ausência de contrapartida financeira decorrente do incremento do risco. Ou seja, os pedidos médicos não se limitaram a prescrever sessões semanais de psicologia, fono ou TO, por exemplo, mas pedidos de atendimentos por profissionais da educação, em ambientes alheios ao escopo de atuação dos serviços de saúde. 

As ações que discutiam os limites anuais ou os tipos de terapias, no entanto, demoraram a aportar ao STJ, pelo natural curso dos processos nas duas instâncias inferiores, passando a Corte a emitir posicionamentos colegiados e de mérito somente no final de 2022, como por exemplo no Ag Int Resp 1.900.671/SP, que tratou do limite de sessões e da cobertura para a terapia ABA ou o REsp 2.043.003/SP, que tratou da questão relativa à abusividade da negativa de cobertura para terapias especializadas indicadas para o tratamento do TEA, tal qual a musicoterapia. 

Ocorre que, de lá para cá, centenas de decisões passaram a ser replicadas na Corte Superior, com o viés de estabelecer o entendimento acerca da ausência de limites para as mais diversas sessões e tipos de terapias, até a recente decisão de afetação proposta pelo ministro Antônio Carlos Ferreira, nos autos do REsp 2.167.050/SP, Tema 1.296, que irá decidir acerca da “possibilidade ou não de o plano de saúde limitar ou recusar a cobertura de terapia multidisciplinar prescrita ao paciente com transtorno global do desenvolvimento.” Segundo consta da referida decisão, a iniciativa de erigir o recurso à hipótese de tema ou precedente repetitivo, se deu pois muito embora a jurisprudência do STJ tenha se orientado no sentido de ser abusiva a recusa ou limitação de cobertura de tratamento multidisciplinar prescrito para paciente com transtorno global do desenvolvimento, “tem-se verificado significativa dispersão jurisprudencial acerca da matéria, com altíssimo índice de recorribilidade, o que tem conduzido à multiplicidade de recursos nesta Corte Superior.” 

À primeira vista, nos parece desacertada a justificativa exposta na decisão de afetação, posto que a controvérsia não se restringe “à possibilidade do plano limitar ou recusar a cobertura e terapia multidisciplinar”, mas sim, em que circunstâncias estará a operadora obrigada a arcar com os custos desse tratamento, uma vez que seguem em vigor as hipóteses legais de exclusão de cobertura previstas no art. 10 da lei 9.656/98. Neste norte, convém lembrar que o próprio STJ já firmou entendimento, por exemplo, no sentido de que psicopedagogia só será coberta quando prestada por profissional da saúde e em ambiente clínico, não escolar ou domiciliar (REsp 2.064.964/SP) ou que, os atendimentos fora da rede de prestadores credenciados só se darão em caráter excepcional (Resp 2.043.003/SP). 

Com isso, cria-se a expectativa se efetivamente o STJ enfrentará a questão de forma aprofundada, analisando o contexto geral de aplicação da lei dos planos de saúde e todas as suas nuances, ou simplesmente tratará do assunto de forma rasa, sob enfoque do viés social que o assunto tem demandado. Até lá, seguimos na luta pela válida e correta aplicação da lei ao caso em concreto.

Cássio Augusto Vione da Rosa
Pós-Graduado em Direito do Consumidor e Direitos Fundamentais pela PUCRS e em Direito de Família e Sucessões pela PUCRS. Advogado em Porto Alegre/RS.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Autonomia patrimonial e seus limites: A desconsideração da personalidade jurídica nas holdings familiares

2/12/2025

Pirataria de sementes e o desafio da proteção tecnológica

2/12/2025

Você acha que é gordura? Pode ser lipedema - e não é estético

2/12/2025

Tem alguém assistindo? O que o relatório anual da Netflix mostra sobre comportamento da audiência para a comunicação jurídica

2/12/2025

Frankenstein - o que a ficção revela sobre a Bioética

2/12/2025