Hoje é 20 de maio de 2025. O outono insiste em parecer verão. O céu azul, o calor inesperado, os ventos suaves. Tudo parece bonito, leve, convidativo. Mas não é. A aparência engana. Como o falso empreendedorismo das plataformas digitais, que promete liberdade e entrega precarização. Que veste de modernidade aquilo que é, no fundo, a velha exploração de sempre, agora travestida de inovação.
Nesta manhã, os jornais estampam a manchete: “Apps de 'bicos' em supermercados cobram por uniforme e não pagam transporte”. A reportagem, publicada pela coluna de Carlos Juliano Barros no UOL, revela o cotidiano de milhares de trabalhadores convocados por aplicativos como Helppi, iWof e Switch para realizar tarefas pontuais em supermercados. Trabalhadores que bancam seus próprios uniformes, seus próprios deslocamentos, sua própria invisibilidade.
Sob a lógica do algoritmo, essas pessoas não têm nome, carteira assinada ou sequer uma cadeira para sentar. São a engrenagem silenciosa do novo mercado: microempreendedores compulsórios, removidos do amparo da CLT, inseridos em um sistema que os trata como números substituíveis, sem vínculos, sem voz, sem vez.
Essa é a nova classe invisível do varejo de plataforma. E ela cresce sob o sol quente de um outono mentiroso. Plataformas intermediam atividades em supermercados por meio de aplicativos, convocando pessoas para tarefas pontuais, chamadas de “bicos”, sem qualquer tipo de proteção social. O trabalhador paga pelo próprio uniforme, não recebe vale-transporte e enfrenta jornadas que nada têm de flexíveis, ao contrário do que apregoa o discurso do empreendedorismo de si.
O cenário descrito não é isolado. Representa a consolidação de uma lógica neoliberal que transforma trabalhadores em microempreendedores individuais, mascarando relações de subordinação com uma retórica de liberdade e escolha. Essa nova forma de organização do trabalho, fundada na intermediação digital e na desresponsabilização patronal, é parte de um fenômeno mais amplo de precarização estrutural.
Sob o verniz da modernidade, o que se estabelece é a velha exploração, agora algorítmica, pulverizada e invisível. A legislação trabalhista brasileira, concebida para proteger a parte hipossuficiente e mediar os conflitos entre capital e trabalho, encontra-se tensionada por um modelo que desafia seus fundamentos. O vínculo empregatício é dissolvido pela arquitetura tecnológica das plataformas, que terceirizam não apenas o serviço, mas também os riscos, os custos e as obrigações legais.
No plano jurídico, essa nova realidade ganha contornos ainda mais graves diante da recente decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes, que, no contexto do Tema 1.389 da Repercussão Geral, determinou a suspensão nacional dos processos em trâmite na Justiça do Trabalho que discutem a validade da pejotização. Tal medida, que retira a possibilidade de análise concreta e contextualizada dos casos, representa um cerceamento do acesso à Justiça e uma afronta ao princípio da primazia da realidade, pedra angular do Direito do Trabalho.
Aqui, um ponto de inflexão histórica. O Direito do Trabalho, conquistado a duras penas, encontra-se diante de uma encruzilhada: adaptar-se ao discurso da eficiência mercadológica ou reafirmar sua vocação originária de proteção. O falso empreendedorismo, propagado como alternativa à informalidade, na verdade a institucionaliza, criando um novo tipo de trabalhador: o “empreendedor sem escolha”, compelido à informalidade sob a promessa de autonomia.
É urgente resgatar a centralidade do trabalho como elemento estruturante da cidadania e da dignidade humana. Isso exige um enfrentamento não apenas jurídico, mas também ético e político. Exige que se revele o que há por trás das plataformas: relações de poder, assimetrias, violações de direitos.
Entre gôndolas e algoritmos, o trabalho segue acontecendo. Invisível nos relatórios de desempenho das startups, silenciado nas estatísticas oficiais, mas profundamente presente na vida de quem levanta cedo, veste o uniforme comprado do próprio bolso e paga para poder trabalhar.
Resta ao Direito e àqueles que o constroem com ética e coragem recusar esse silêncio. Denunciar a farsa da autonomia vendida em embalagens digitais. Reafirmar que nenhuma inovação pode custar a dignidade. E lembrar, como resistência, que os direitos não são dados pelos algoritmos, são conquistados pela luta.
A contemporaneidade apresenta um mercado de trabalho atravessado por novas tecnologias e pela ascensão de plataformas digitais que prometem autonomia e liberdade aos trabalhadores. No entanto, por trás do discurso sedutor do “empreendedorismo de si”, esconde-se uma realidade marcada por precarização, ausência de direitos sociais e desresponsabilização dos tomadores de serviço.
As plataformas Helppi, iWof e Switch, citadas na mencionada reportagem, funcionam como intermediadoras entre trabalhadores e supermercados, vendendo a promessa de “flexibilidade” e “independência”. Contudo, exigem padrões de conduta, jornadas, vestimenta e regras estritas que revelam uma relação de subordinação clássica, mascarada sob a roupagem de trabalho autônomo. Como assinala Ricardo Antunes: “A uberização é um processo no qual as relações de trabalho são crescentemente individualizadas e invisibilizadas, assumindo, assim, a aparência de 'prestação de serviços' e obliterando as relações de assalariamento e de exploração do trabalho.” Trata-se, na visão do sociólogo, da ascensão do precariado digital, onde a informalidade é tecnologicamente mediada e juridicamente escamoteada.
Nessa lógica, não há relação de emprego reconhecida, tampouco liberdade real. Os trabalhadores são induzidos a aceitar condições laborais abusivas, sem acesso a proteção social, órgãos de representação sindical ou instrumentos de defesa coletiva. Paga-se para trabalhar. Compra-se uniforme. Arca-se com deslocamento. Assume-se o risco integral da atividade, em total dissonância com os princípios do Direito do Trabalho.
O mito do “empreendedor de si mesmo” como estratégia de desresponsabilização empresarial, o discurso neoliberal de que todo trabalhador é um “empreendedor”, ignora as desigualdades estruturais e transfere para o indivíduo a responsabilidade por sua sobrevivência em um mercado excludente. Essa retórica se ancora em uma ideologia de mérito que encobre a exploração. A ideia do “bico por aplicativo” como escolha esconde o fato de que, para muitos, é a única forma possível de obter alguma renda.
No caso dos supermercados, a relação triangular entre plataforma, estabelecimento comercial e trabalhador permite a dissipação de responsabilidades. Nenhuma das partes reconhece o vínculo empregatício, embora todas se beneficiem do serviço prestado. O resultado é uma massa de trabalhadores desprovidos de qualquer garantia, sem voz e invisíveis para o Estado.
É urgente repensar os contornos da relação de trabalho na era digital. Não se trata de negar a inovação, mas de garantir que a tecnologia não se torne instrumento de exploração.
A reportagem sobre os “bicos” em supermercados por meio de aplicativos escancara uma realidade cada vez mais comum: o uso da tecnologia para rebaixar direitos e fragmentar a proteção social. O falso discurso do empreendedorismo precisa ser desmascarado e enfrentado com seriedade jurídica e compromisso político. O Direito do Trabalho segue sendo o instrumento mais importante de contenção das desigualdades e de afirmação da justiça social.
Que o caso da Switch e seus congêneres sirva de alerta. Que o trabalho do futuro não seja um retorno ao passado anterior às conquistas trabalhistas, mas uma reinvenção comprometida com a dignidade, a equidade e o bem comum.
Mas, quando o sistema começa a reagir, quando as vozes tentam se levantar em defesa dos invisíveis, a caneta de um ministro cala milhões. Com um só despacho, a Justiça do Trabalho foi travada. O Supremo virou escudo para o avanço da precarização. A pergunta que se impõe é dura, mas necessária: quem se beneficia quando os trabalhadores são chamados de empresários? O STF não pode congelar a proteção social enquanto plataformas ampliam a terceirização sem responsabilidade.
Essa decisão não é neutra. Ela é política. E tem consequências devastadoras. Retira do trabalhador a chance de ser ouvido. Suspende sua busca por reparação. Paralisa a esperança de uma decisão justa. Enquanto isso, as empresas seguem lucrando. Os algoritmos seguem distribuindo tarefas. Os uniformes continuam sendo cobrados. E o transporte, descontado.
Esse encontro entre a tecnologia que explora e a caneta que silencia é o retrato mais cruel do nosso tempo. Um tempo em que o Direito do Trabalho precisa gritar, para que os gritos dos trabalhadores não sejam apenas sussurros apagados nas telas de um aplicativo.
Não se trata de ser contra o progresso. Mas de recusar um progresso que se alimenta da dor alheia. Inovação, sim, mas com proteção. Liberdade, sim, mas com dignidade. Autonomia, sim, mas com direitos.
A Constituição de 1988 ainda pertence a todas as pessoas. Ela ainda afirma que o trabalho é fundamento da República. Que a dignidade não se negocia. Que a justiça social é um compromisso, não uma concessão.
Porque o que está em jogo não é apenas um contrato. É a vida de quem trabalha.
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ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.
BARROS, Carlos Juliano. Apps de 'bicos' em supermercados cobram por uniforme e não pagam transporte. UOL Economia, 20 maio 2025. Disponível em: https://economia.uol.com.br/colunas/carlos-juliano-barros/2025/05/20/apps-de-bicos-em-supermercados-cobram-por-uniforme-e-nao-pagam-transporte.htm. Acesso em: 20 maio 2025.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1532603. Relator: Min. Gilmar Mendes. Brasília: STF, 2024