Vivemos uma era marcada pela especialização extrema e pelo avanço tecnológico, mas que, paradoxalmente, convive com a decadência do pensamento crítico e individual.
O Direito, ciência vocacionada à justiça, tem sido vítima de um processo silencioso, mas devastador: a terceirização do conhecimento.
Cada vez mais, profissionais do meio jurídico delegam sua capacidade reflexiva a teses prontas, pareceres encomendados e, mais recentemente, às inteligências artificiais.
Esse fenômeno compromete não apenas a qualidade da atuação profissional, mas os próprios alicerces da Justiça.
O filósofo francês Michel Villey, em sua clássica obra Filosofia do Direito, denuncia essa ruptura entre o saber filosófico e o conhecimento jurídico contemporâneo. Villey nos lembra que, na Antiguidade, o saber era holístico — pensadores como Aristóteles, Pitágoras e Tales não se limitavam a um único campo do conhecimento.
A filosofia, como raiz de todas as ciências, fornecia as bases para o verdadeiro exercício da razão. Ao abandonar essa matriz, o Direito perdeu a conexão com sua essência: a busca pela verdade e pela justiça.
A especialização trouxe avanços, é verdade, mas também instaurou compartimentos estanques, onde muitas vezes não há espaço para o pensamento crítico, nem para o questionamento profundo.
O jurista, antes filósofo do justo, passou a ser um técnico de processos. As decisões, em vez de refletirem a ponderação entre o justo e o legal, passaram a obedecer apenas à lógica da eficiência, da padronização e do encerramento célere dos litígios — mesmo que à custa da justiça.
Recentemente, dois casos noticiados pelo portal Migalhas exemplificam os riscos da substituição do raciocínio humano por inteligência artificial no Direito.
Em um deles, um advogado foi multado por um ministro do STF ao apresentar jurisprudências inexistentes, geradas por IA. No outro, um causídico utilizou um áudio artificial para realizar sustentação oral.
São episódios que sinalizam o início de uma era preocupante, em que o operador do Direito pode se tornar mero replicador de ideias alheias, sem reflexão, sem responsabilidade e sem autenticidade.
A maior perda das últimas décadas não é tecnológica, mas intelectual: perdemos o hábito — e o valor — da busca autônoma pelo saber.
Alegando falta de tempo ou excesso de demandas, muitos abdicam do estudo profundo e se contentam com resumos prontos, opiniões enviesadas e conteúdos moldados por interesses específicos.
Esse ambiente fértil à superficialidade aniquila a liberdade de pensamento, substituindo-a por ideias terceirizadas, vendidas como soluções, mas que, em essência, empobrecem a razão.
No Direito, isso tem efeitos particularmente graves. Narrativas jurídicas e interpretações são elaboradas sob encomenda, em vez de construídas a partir do entendimento profundo dos conceitos. O debate perde densidade. A Justiça, muitas vezes, perde o rumo.
Até mesmo as regras processuais passaram a servir como atalhos para o encerramento de demandas, e não mais como ferramentas de efetiva solução de conflitos.
O discurso da “segurança jurídica” é esvaziado quando se confunde com rapidez ou padronização, esquecendo que a verdadeira segurança reside na entrega qualificada da prestação jurisdicional.
O Direito — ciência social, humana e filosófica — não pode ser refém de soluções automáticas. Ele exige reflexão, exige o raciocínio individual, exige formação crítica. E essa formação só é possível com a revalorização da filosofia.
O estudo da Filosofia do Direito não é um luxo acadêmico: é um instrumento indispensável para garantir que o advogado compreenda, questione, e não apenas repita. Que raciocine, e não apenas reproduza. Que seja um sujeito pensante, e não um algoritmo humano.
É hora de reagir. Reagir contra a padronização do pensamento, contra a passividade intelectual, contra a ilusão de que conhecimento pode ser delegado. O verdadeiro saber é aquele que se conquista, e não o que se consome.
A filosofia, base de toda ciência, deve retornar ao centro da formação jurídica, como ferramenta de emancipação do pensamento e, sobretudo, como guia para a justiça.
Sem isso, o Direito corre o risco de deixar de ser instrumento de transformação e passar a ser simples engrenagem de repetição.
O futuro da advocacia — e da Justiça — depende do resgate da liberdade intelectual e da responsabilidade de pensar por si.