Introdução
O avanço do constitucionalismo contemporâneo — fortemente influenciado pelo pós-positivismo e pelo neoconstitucionalismo — redefiniu a função do intérprete constitucional no Estado Democrático de Direito.
Ao romper com o positivismo jurídico tradicional, esse novo paradigma elevou os princípios constitucionais a normas dotadas de força normativa própria, valorizando a dignidade da pessoa humana, os direitos fundamentais e a realização da justiça material.
Essa evolução teórica e normativa, embora tenha representado um marco civilizatório na história do Direito, abriu também espaço para um fenômeno preocupante: a centralização decisória no Poder Judiciário, com o crescimento de decisões de caráter político proferidas por órgãos constitucionalmente incumbidos da guarda da Constituição.
Em diversas democracias constitucionais, o poder interpretativo conferido às cortes constitucionais tornou-se tão amplo que, não raramente, elas passaram a ocupar uma posição de destaque na definição de políticas públicas, na correção de omissões legislativas e, em alguns casos, na formulação de novos direitos.
Tal movimento — embora fundado no compromisso com a proteção das minorias e dos direitos fundamentais — gera tensão com o princípio da separação dos poderes e com a própria soberania popular, sobretudo quando decisões judiciais se distanciam dos valores socialmente compartilhados e das escolhas democráticas legitimamente realizadas.
O presente artigo busca refletir criticamente sobre os limites da atuação do intérprete constitucional em regimes democráticos, propondo uma análise das consequências institucionais do ativismo judicial.
Para tanto, examina modelos comparados de contenção do poder jurisdicional, mecanismos de override legislativo, relacionando-os à recente PEC 28/24.
Ao invés de aderir a uma visão idealizada do Poder Judiciário como agente exclusivo da justiça social, propõe-se aqui uma abordagem mais equilibrada e institucionalista, segundo a qual o papel do intérprete constitucional deve ser desempenhado com racionalidade argumentativa, responsabilidade institucional e limites claros — sobretudo quando estiver em jogo a vontade expressa da sociedade democrática.
Nesse sentido, parte-se do entendimento de que, em regimes verdadeiramente democráticos, as decisões judiciais — inclusive as de última instância constitucional — não devem ser absolutas, e sim sujeitas a mecanismos institucionais de revisão ou contenção.
No caso brasileiro, afirma-se a legitimidade da criação de instrumentos constitucionais que permitam ao Congresso Nacional, mediante maioria qualificada, suspender ou derrubar os efeitos de decisões do STF que contrariem valores essenciais da sociedade ou ultrapassem os limites da função jurisdicional.
Trata-se, portanto, de resgatar o equilíbrio entre os Poderes e reafirmar a soberania popular como fundamento último da ordem constitucional.
II. O intérprete em excesso: Judiciário como poder político
2.1 Neoconstitucionalismo e a expansão do poder interpretativo
A doutrina neoconstitucionalista, surgida no bojo do pós-positivismo, promoveu uma reconfiguração profunda da teoria constitucional, especialmente ao reconhecer os princípios constitucionais como normas jurídicas com eficácia plena.
Essa mudança de paradigma foi impulsionada por autores como Ronald Dworkin, que sustentava a ideia de que os direitos têm peso moral e devem ser levados a sério na argumentação judicial, e por Robert Alexy, que elaborou a teoria da colisão de princípios com base na técnica da ponderação e na ideia de "otimização normativa".
No Brasil, um dos principais expoentes dessa corrente é Luís Roberto Barroso, que defende uma concepção ampla da jurisdição constitucional, na qual o Judiciário exerce não apenas a função de controle de constitucionalidade, mas também um papel ativo na transformação social, inclusive mediante atuação direta sobre políticas públicas.
Na opinião de Sua Exa., o Judiciário pode — e deve — intervir para corrigir falhas institucionais, suprir omissões legislativas e promover valores constitucionais, especialmente os direitos fundamentais.
Contudo, essa concepção tem sido objeto de duras críticas, sobretudo por extrapolar os limites tradicionais da função jurisdicional.
Ao legitimar a atuação judicial em temas de elevada complexidade técnica, orçamentária e política — normalmente atribuídos aos Poderes Executivo e Legislativo —, corre-se o risco de subverter a lógica democrática da separação dos poderes, transformando o juiz constitucional em um gestor público sem mandato popular.
Essa postura tende a confundir jurisdição com governo, elevando o Judiciário à condição de protagonista político em detrimento da representatividade parlamentar.
Ao atribuir ao magistrado a missão de “realizar a Constituição” em sua integralidade — inclusive no que diz respeito à formulação de políticas públicas — cria-se um modelo de interpretação que pode conduzir à centralização tecnocrática do poder, isolada das dinâmicas próprias do jogo democrático.
A abertura interpretativa promovida por esse modelo, embora teórica e axiologicamente atraente, criou zonas de insegurança jurídica e instabilidade institucional, ao permitir que princípios de conteúdo aberto — como dignidade, igualdade ou solidariedade — fossem usados para sustentar decisões que, em muitos casos, subvertem a legalidade estrita, relativizam o texto constitucional e afastam-se da vontade democrática majoritária.
2.2 Da esperança à crítica: Cortes como instrumentos políticos
Durante muito tempo, a atuação judicial foi vista como esperança de superação das falhas do Legislativo e do Executivo, especialmente diante da omissão legislativa ou da captura dos demais Poderes por interesses privados ou ineficiência.
No entanto, autores como Gerald N. Rosenberg, em sua clássica obra The Hollow Hope: Can Courts Bring About Social Change?, alertaram para a fragilidade dessa aposta.
Com base em extensa análise empírica do sistema jurídico norte-americano, Rosenberg concluiu que as cortes são, na maioria das vezes, estruturalmente limitadas, politicamente dependentes e institucionalmente inaptas para gerar mudanças sociais profundas e duradouras.
Na mesma linha crítica, Teitel e Ginsburg, no estudo Dynamic, Regressive, or Obstructionist Courts?, propõem uma reavaliação do papel do Judiciário à luz dos efeitos reais de suas decisões.
Para os autores, a atuação judicial pode não apenas deixar de promover avanços, mas também obstruir reformas democráticas, reforçar desigualdades e inibir o debate público.
Essa crítica converge com uma constatação cada vez mais presente na realidade latino-americana: o fenômeno da judicialização da política tem sido acompanhado por um preocupante movimento de politização do Judiciário, sobretudo quando as decisões passam a refletir interesses ideológicos ou de grupos específicos, ainda que revestidas do discurso de proteção de direitos ou defesa de minorias.
2.3 A autolegitimação judicial e o esvaziamento democrático
Um dos aspectos mais problemáticos da centralização do poder jurisdicional é a ausência de mecanismos de controle sobre a última instância decisória, o que cria um ambiente propício à autolegitimação institucional.
A corte constitucional, nesse cenário, julga, interpreta, executa e se autojustifica, sem qualquer possibilidade de reversão por outra instância constitucional, mesmo quando extrapola seu papel de guardiã para assumir funções normativas ou governamentais.
Esse tipo de atuação rompe com a concepção clássica da separação dos poderes e debilita a legitimidade do Legislativo como expressão da soberania popular.
A consequência mais grave é a criação de um poder que, embora não eleito, exerce influência direta sobre os rumos políticos do país — não raro, sem prestar contas e sem sujeição a limites externos.
O discurso que justifica essa atuação com base na defesa das minorias ou efetivação de direitos fundamentais deve ser encarado com cautela.
Embora seja dever do constitucionalismo proteger direitos contra eventuais abusos da maioria, isso não significa autorizar decisões judiciais sistematicamente contrárias à vontade social e aos valores coletivos sob a justificativa de superioridade moral do intérprete.
Como alerta a doutrina do abusive constitutional borrowing, há riscos evidentes quando instituições utilizam modelos constitucionais legítimos para fins autoritários ou de concentração de poder, inclusive sob a aparência de defesa da democracia.
III. Mecanismos de contenção democrática e reequilíbrio institucional
3.1 A clause nonobstant e o modelo canadense de revisão legislativa
Um dos instrumentos mais emblemáticos de contenção democrática do poder jurisdicional é a cláusula não obstante (clause nonobstant, em francês; notwithstanding clause, em inglês), prevista no art. 33 da Canadian Charter of Rights and Freedoms, inserida na Constituição do Canadá de 1982.
Trata-se de um dispositivo que autoriza o Parlamento Federal ou as assembleias legislativas provinciais a declararem, de forma expressa, que determinada norma legislativa terá validade mesmo que contrarie os direitos protegidos nos arts. 2 e 7 a 15 da Carta.
Ou seja, mediante declaração expressa, os legisladores canadenses podem suspender os efeitos de uma decisão judicial constitucional por até cinco anos — prazo renovável —, preservando o direito de a sociedade decidir, por meio de seus representantes eleitos, sobre o conteúdo de normas que envolvam valores fundamentais.
Esse mecanismo não representa uma afronta à proteção de direitos, mas sim a afirmação do princípio da soberania popular e da centralidade do Parlamento como locus natural do debate político em uma democracia representativa.
A sua utilização, embora parcimoniosa, mostra que a última palavra constitucional não precisa necessariamente ser do Judiciário, mas pode — e em certos casos deve — retornar ao campo da deliberação política legitimada pelo voto popular.
3.2 O legislative override e a contenção democrática do ativismo judicial
A referida cláusula canadense se insere em uma concepção mais ampla conhecida como legislative override — mecanismos institucionais que permitem ao Legislativo sobrepor-se, sob determinadas condições, a decisões judiciais de controle de constitucionalidade.
Modelos semelhantes, ainda que com variações, são discutidos ou adotados em sistemas como o da Finlândia, Israel e, em certos aspectos, no Reino Unido (que adota modelo não rígido de constitucionalidade).
O pressuposto de tais mecanismos não é a negação do controle judicial, mas sim o reconhecimento de que o Judiciário, em uma democracia, deve ser limitado, controlado e submetido a uma lógica de responsabilização institucional — como ocorre com os demais Poderes.
A ausência de qualquer controle externo sobre as decisões finais da jurisdição constitucional pode levar à sua autonomização antidemocrática, ainda que revestida de discurso constitucional.
3.3 A PEC 28/24 e o contexto brasileiro
No Brasil, o debate sobre os limites da atuação do STF ganhou novo fôlego com a PEC 28/24, apresentada no Senado Federal.
A PEC prevê, entre outros pontos, a possibilidade do Congresso Nacional sustar, por maioria qualificada (3/5), os efeitos de decisões do STF que extrapolem os limites da função jurisdicional ou contrariem valores constitucionais consolidados pela sociedade.
A proposta gerou controvérsia, sendo apontada por críticos como uma tentativa de ingerência indevida sobre o Judiciário.
No entanto, se examinada à luz dos modelos comparados, a PEC representa um esforço de criação de um sistema de pesos e contrapesos mais equilibrados, que reconhece o poder contramajoritário do STF, mas recusa sua absolutização.
Importante destacar que a PEC não elimina o controle de constitucionalidade, tampouco reduz a proteção aos direitos fundamentais.
Ela apenas propõe que, em situações excepcionais e mediante respaldo qualificado do Parlamento, seja possível reverter ou suspender os efeitos de decisões que, embora legitimadas pelo discurso jurídico, destoem da vontade democrática ou violem o princípio da separação dos Poderes.
Contudo, para que esse modelo de contenção seja eficaz e legitimamente democrático, é necessário reconhecer a fragilidade estrutural do sistema político brasileiro: a crise de representatividade no Congresso Nacional.
O atual modelo eleitoral e partidário, marcado por fragmentação excessiva, distorções no sistema proporcional e baixa responsabilidade programática, compromete a capacidade do Legislativo de expressar a vontade popular de forma coerente, estável e transparente.
Sem enfrentar essa falha estrutural, qualquer mecanismo de override Legislativo poderá ser capturado por interesses corporativos, fisiológicos ou populistas, reproduzindo o déficit democrático que se pretende combater no âmbito do Judiciário.
Assim, o reequilíbrio entre os Poderes passa, necessariamente, pela reformulação do sistema de representação política no Brasil, sob pena de se criar um modelo de contenção institucional apenas formalmente democrático, mas substantivamente ineficaz ou oportunista.
Conclusão
O avanço do neoconstitucionalismo representou um momento importante na afirmação dos direitos fundamentais e na superação do formalismo jurídico.
Contudo, a concentração do poder interpretativo nas mãos do Judiciário — e especialmente em cortes constitucionais — exige mecanismos institucionais de contenção democrática, sob pena de enfraquecimento da soberania popular e da lógica representativa que sustenta o Estado de Direito.
Ao examinar modelos como a clause nonobstant canadense, o conceito de legislative override e a PEC 28/24, este artigo defende que nenhum Poder deve ter a prerrogativa de decidir sem possibilidade de revisão ou responsabilização.
Isso inclui o Poder Judiciário, cuja missão constitucional, por mais elevada que seja, não pode autorizar a substituição do espaço político pelo espaço judicial.
A proteção das minorias, a concretização dos direitos e a integridade da Constituição devem ser valores preservados.
Mas sua realização só será legítima quando também respeitar os limites institucionais e refletir a vontade social expressa democraticamente.
Em uma democracia madura, o guardião da Constituição deve prestar contas à própria Constituição — e, em última instância, ao povo soberano que o instituiu.