Introdução
A recente condenação judicial de um humorista por falas proferidas em um espetáculo de stand-up reacendeu, com ferocidade, o debate sobre os limites da liberdade de expressão no país, especialmente quando ela se manifesta por meio da arte, mesmo que essa arte seja expressa de forma não conveniente, por assim dizer. Embora o verdadeiro e autêntico discurso de ódio mereça, legitimamente, a censura e a reprovação jurídica, há uma crescente preocupação com o uso excessivo e politicamente sensível do Direito Penal sobre manifestações artísticas simbólicas, especialmente aquelas ligadas à sátira, à crítica social e à estética popular ou periférica.
Este artigo propõe uma análise reflexiva sobre os perigos de se criminalizar a arte, sobretudo no campo das expressões e manifestações do humor, da música de rua e de outras linguagens marginalizadas, com base em instrumentos legais que, embora destinados à proteção de grupos vulnerabilizados, têm sido utilizados de maneira expansiva. A linha tênue entre “repressão legítima” e “censura moralizante” imposta pelo Estado deve ser analisada sob o crivo da Constituição, dos princípios fundamentais do Direito Penal e do contexto histórico em que se inserem tais dispositivos.
A liberdade de expressão e o seu regime jurídico no Brasil
A liberdade de expressão, tutelada no art. 5º, incisos IV, IX e XIV da Constituição Federal, é o fundamento elementar da sociedade democrática. Ela compreende a liberdade de manifestação do pensamento, da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. Em razão de seu papel estruturante na formação da opinião pública e da crítica ao poder, trata-se de um direito fundamental dotado de eficácia direta, imediata e plena.
Porém, como qualquer direito fundamental, não é absoluto. A colisão entre a liberdade de expressão e outros bens jurídicos, como a dignidade da pessoa humana, a igualdade, a integridade psíquica e moral das minorias, por exemplo, demanda ponderação jurídica. Nesse cenário, o discurso de ódio, entendido como manifestação deliberada e enfática de intolerância contra determinados grupos, pode justificar restrições, inclusive penais. A dificuldade reside em delimitar, de modo objetivo, o que é crítica ácida ou humor provocativo e o que constitui incitação ao preconceito ou à violência.
O Direito Penal combatendo o discurso: breve retrospectiva normativa
Historicamente, o tratamento penal do discurso no Brasil percorre uma trajetória de tensões entre repressão política e proteção de direitos fundamentais. Durante o Estado Novo (1937-1945) e a Ditadura Militar (1964-1985), leis penais de conteúdo ideológico foram utilizadas para perseguir opositores por meio de tipos penais vagos, como “subversão da ordem”, “atentado contra a moral” ou “incitação ao ódio contra as Forças Armadas”.
Com a Constituição de 1988, operou-se uma “inflexão garantista”. O Estado Democrático de Direito passou a exigir:
- Taxatividade penal (princípio da legalidade – art. 5º, XXXIX),;
- Reserva legal estrita (art. 5º, II);
- Proporcionalidade punitiva (derivada do art. 1º, III e do art. 5º, LIV).
Entretanto, nos últimos anos, observa-se um movimento legislativo que visa recrudescer o tratamento penal sobre discursos considerados ofensivos a minorias. Destacam-se:
- Lei 7.716/1989 - Lei de crimes resultantes de preconceito, que já previa punição para quem praticasse, induzisse ou incitasse a discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional;
- Lei 12.735/12, que tratou de crimes praticados por meio da internet;
- Lei 13.146/15 - Estatuto da Pessoa com Deficiência, especialmente o art. 88, que tipifica a prática de preconceito contra pessoas com deficiência;
- Lei 14.532/23, que alterou significativamente a redação da lei 7.716/1989, tipificando de forma mais ampla os crimes de ódio cometidos por meio de redes sociais, meios digitais e através de contexto cultural dirigido ao público.
Com essas alterações, o campo para responsabilização penal de manifestações artísticas aumentou consideravelmente, ainda que os limites hermenêuticos entre crítica e incitação continuem absolutamente nebulosos.
Arte, crítica social e o risco do punitivismo moral
O que se observa, na prática, é o uso de tipos penais, muitos deles com formulações abertas, ou seja, não objetivas, para reprimir manifestações artísticas dissidentes, polêmicas ou provocativas. Expressões culturais vinculadas a estéticas periféricas, como o funk, o rap, o slam, os saraus e o stand-up, têm sido alvo recorrente de processos judiciais, denúncias públicas e tentativas de silenciamento. Muitas vezes, essas manifestações expõem as contradições da sociedade, as desigualdades, o racismo, a exclusão urbana ou, até mesmo, forçam a reflexão sobre certo ou errado no que tange ao convívio social.
Historicamente, desde o período colonial e, de modo mais agudo, nas décadas de governo militar, a arte como instrumento de resistência foi alvo de vigilância estatal e censura, com perseguições a músicos, poetas e artistas de rua. Mesmo no regime democrático atual, artistas de regiões periféricas, especialmente negros e jovens, continuam sendo criminalizados por “perturbação da ordem”, “apologia ao crime”, “vadiagem artística” ou simples “desobediência” às normas urbanas. Vide o caso também recente do MC Pozé do Rodo.
Ocorre que a arte urbana e o humor crítico têm uma função fundamental: evidenciar o que a sociedade prefere esconder, irromper consensos morais e reverter, através da ironia ou do confronto simbólico, a lógica impiedosa de determinados discursos dominantes, por vezes autoritários. A criminalização desse tipo de expressão, sob a justificativa de coibir preconceitos contra minorias, pode representar o retorno de um moralismo estatal punitivo sob nova veste, agora travestido de “proteção identitária”.
Na esfera internacional, recentemente tivemos um caso emblemático com reflexos no Brasil. Em maio de 2023, o cantor britânico Roger Waters, ex-integrante e vocalista da banda Pink Floyd, foi investigado pela polícia alemã por antissemitismo após realizar um show em Berlim e teve outro show cancelado, em Frankfurt. O motivo: durante a apresentação da música “In the flesh?” (Na carne?), Waters interpreta o personagem fictício “Pink”, que acredita ser um ditador fascista. Na performance, ele veste um sobretudo alusivo ao uniforme da polícia nazista Schutzstaffel (SS) e esse personagem aparece em shows e na iconografia do Pink Floyd desde os anos 1980, quando foi lançado o álbum conceitual “The Wall”, que conta com a canção “In the Flesh?”.
Como dito, esse caso reverberou no Brasil através de uma notícia de fato apresentada junto ao Ministério Público Federal que solicitava o impedimento da entrada do artista no país, com shows agendados em nossa terra. Ao arquivar o procedimento, o MPF se manifestou da seguinte forma:
“(...) a forma escolhida para realizar a crítica aos regimes autoritários, à extrema-direita e ao Estado de Israel pode ser considerada chocante e de mau gosto, mas expressa o pensamento político do cantor na apresentação”. A liberdade de expressão, como garantia que permite a pluralidade de ideias e de pensamentos, fornece mecanismos para que Waters possa ser criticado pelos métodos utilizados e pela escolha da manifestação artística veiculada em seu show, mas não censurado por sua forma de pensar – ainda que a expressão de suas ideias possa ter ocorrido por meio de ‘comportamentos expressivos’ inadequados ou deseducados.”
Essa imputação a Waters, que refletiu no Brasil, como visto, é infundada e descabida. Desde os tempos de Pink Floyd, o músico criticava enfaticamente o nazismo, e o fato de se travestir de um personagem nazista durante a apresentação musical era justamente uma manifestação crítica severa ao autoritarismo. O próprio rock’n’roll, gênero predominante de Waters e do Pink Floyd, pela essência originária, é uma forma de arte que protesta contra o autoritarismo.
Outro exemplo nesse sentido, talvez o mais famoso do mundo no meio artístico, é a obra cinematográfica “O Grande Ditador”, de 1940, na qual o icônico Charlie Chaplin interpretou Adolf Hitler. Chaplin, de ascendência judaica por parte de pai, escreveu, dirigiu e protagonizou a obra que satirizava ferozmente o nazismo, o fascismo e seus maiores propagadores, Adolf Hitler e Benito Mussolini.
A pergunta que fica é: Waters e Chaplin mereceriam ser presos por discurso de ódio e por apologia ao nazismo e disseminação de ideais antissemitas? Óbvio que não. A obra desses artistas são sátiras criadas para fazer pensar, para colocar o público numa situação incômoda, dissonante sensorialmente, e com isso provocar o pensamento crítico a respeito do tema abordado, e despertar os seguintes questionamentos: “É certo eu rir disso?”, “Por que estou rindo disso?”, “Qual a mensagem por trás dessa performance?”
O que se percebe nitidamente é que boa parte da sociedade mundial está retrocedendo sua capacidade cognitiva. Muitas pessoas estão perdendo a capacidade de interpretar sátiras ácidas, ironias, humor de desconforto, expressões manifestadas na música, no teatro, no cinema, no stand-up, na literatura, enfim, em várias formas de arte criadas justamente não só para entreter, mas também para fazer o público pensar e refletir. E é justamente isso que está faltando. É muito mais “fácil” para as autoridades – e aqui incluímos legisladores, julgadores e acusadores - criminalizar o portador de uma mensagem que incômoda do que consertar a origem, a causa dessa mensagem embalada na roupagem de manifestação artística.
A jurisprudência e os limites da imputação penal por discursos artísticos
A jurisprudência brasileira ainda está em formação quanto aos critérios para diferenciar discurso artístico de discurso de ódio. O STF, em casos como o julgamento do HC 82.424/RS (sobre liberdade de imprensa), reafirmou a importância da liberdade de expressão como matriz fundante da democracia. Contudo, também reconheceu, em julgados mais recentes, a necessidade de proteger grupos vulneráveis da incitação ao ódio.
A decisão recente que condenou o humorista Léo Lins pelo conteúdo de seu show, apesar de ser uma decisão de primeira instância, ilustra esse embate. A sentença reconhece que ele extrapolou os limites da liberdade de expressão ao atingir diretamente, com menosprezo e escárnio, pessoas com deficiência, além de outras minorias. Ainda assim, a aplicação de pena privativa de liberdade e o bloqueio de suas redes sociais suscitam o debate: quais os limites aceitáveis para intervenção penal sobre obras artísticas com viés crítico, satírico ou provocativo?
Há o risco concreto de que o Judiciário passe a agir como uma espécie de instância de curadoria moral, definindo o que pode ou não ser dito, numa apresentação artística, em nome da proteção de determinados valores e minorias. E isso, em um Estado Democrático, é perigoso - flerta, fulgurosamente, com a censura.
Conclusão: o futuro da arte sob constante vigilância penal
A repressão simbólica de manifestações artísticas por meio do Direito Penal tende a gerar efeitos colaterais indesejados. A autocensura, a retração da crítica, o esvaziamento da arte como linguagem política são apenas alguns dos sintomas do avanço de um modelo jurídico-repressivo de controle social.
Ao invés de criminalizar expressões de arte incômodas, dissonantes, satíricas, o Estado deveria investir em educação para a diversidade, políticas públicas culturais, formação crítica e promoção do debate plural. A arte, por definição e fundamento, desafia, provoca e incomoda. E é justamente por isso que ela deve ser protegida.
O combate ao verdadeiro e puro discurso de ódio deve existir, mas de forma proporcional, fundamentada e compatível com a liberdade de criação artística e o pluralismo de ideias. Criminalizar a arte em nome da moralidade, mesmo que essa arte seja de “mau-gosto”, como dito pelo MPF no caso Waters, é condenar o pensamento ao silêncio, ou seja: censura.