A Azul Linhas Aéreas S.A., em 28 de maio de 2025, entrou com pedido de reestruturação nos Estados Unidos, procedimento chamado de Chapter 11 da lei norte-americana. A decisão foi motivada por uma combinação de fatores que impactaram significativamente sua saúde financeira nos últimos anos.
1. Principais motivos para o pedido de Chapter 11:
- Impactos da pandemia de covid-19: A crise sanitária reduziu drasticamente a demanda por voos, afetando severamente a receita da companhia;
- Crise Financeira: As ações da Azul vêm caindo desde que informada a crise. Após o pedido, em Nova York, as ações chegaram a cair 40% antes da abertura do mercado, enquanto no Brasil a queda era de aproximadamente 6%. De acordo com o mercado, as ações da companhia já acumulam uma perda de quase 90% nos últimos 12 meses, sendo 70% apenas em 2025;
- Aumento expressivo da dívida: A dívida da Azul alcançou R$ 31,35 bilhões no primeiro trimestre de 2025, um aumento de mais de 50% em relação ao ano anterior; e
- Desafios macroeconômicos e operacionais: A Companhia enfrentou diversas dificuldades, como inflação, flutuações cambiais e problemas na cadeia de suprimentos, que afetaram a operação e os custos.
2. Por que o pedido foi feito nos EUA?
A Azul optou por recorrer ao Chapter 11 nos Estados Unidos, em vez de buscar recuperação judicial no Brasil, em razão de algumas vantagens do sistema americano, como maior agilidade, menor burocracia e a possibilidade de negociar diretamente com credores internacionais. Além disso, muitos credores da empresa são investidores estrangeiros, tornando o processo nos EUA mais adequado.
Inicialmente, podemos dizer que o principal motivo pela opção ao sistema americano é o impeditivo legal brasileiro (lei 11.101/05) à não submissão dos créditos decorrentes de leasing de aeronaves ao processo de recuperação judicial (art. 199, §1º) e à possibilidade de retomada das aeronaves pelos credores, mesmo dentro do período do automatic stay já concedido em 30.5.2025.
Vale ressaltar que o Brasil, ao se tornar signatário da Convenção da Cidade do Cabo, optou pela Alternativa A da Convenção no que tange a direitos existentes em cenários de insolvência, como a recuperação judicial. De acordo com a Alternativa A, em especial conforme o artigo XI do Protocolo, em um cenário de insolvência o administrador da insolvência ou o devedor, deverá transferir a posse do bem aeronáutico ao credor até (a) o término do período de espera (que, no Brasil, equivale a 30 (trinta) dias corridos); ou (b) a data na qual o credor teria direito à posse do bem aeronáutico se o artigo do Protocolo de Aviação não fosse aplicável, o que ocorrer primeiro.
Em outras palavras, de acordo com a Alternativa A escolhida pelo Brasil, a devolução do bem aeronáutico deveria ocorrer em, no máximo, 30 (trinta) dias corridos, salvo se houver prazo menor previsto na lei local, o que dificulta sobremaneira a reestruturação de uma Companhia Aérea no Brasil.
Outro relevante motivo é que o mercado de financiamento de empresas em recuperação judicial (o DIP Financing ou debtor-in-possession) é mais desenvolvido nos EUA, fazendo com que o investidor tenha mais segurança jurídica em emprestar “dinheiro novo” ao devedor, em virtude de sua super prioridade no recebimento. No caso, a própria Azul afirma que seu processo de reestruturação judicial contempla US$ 1,6 bilhão em DIP.
3. Mas qual a verdadeira estratégia do Chapter 11?
Poucos perceberam que entre os maiores credores listados pela própria Azul estão o Comando da Aeronáutica do Brasil com crédito de U$189,887,069 e o Ministério da Fazenda com crédito de U$22,947,031.
Tais créditos, todavia, não estão sujeitos ao Chapter 11, que trata unicamente dos ativos e passivos sob jurisdição americana e das relações com credores internacionais ou sujeitos à jurisdição dos EUA.
Portanto, dívidas fiscais e tributárias oriundas do Brasil e créditos de titularidade da Aeronáutica brasileira (taxas de tráfego aéreo entre outras) não são automaticamente afetados ou suspensos pelo Chapter 11.
Ocorre que a decisão de automatic stay proferida pelo juízo do Southern District de New York, conferiu a suspensão da execução ou constrição de todos os créditos devidos pela Azul, incluindo aqueles de cunho Federal Brasileiros, como os créditos da Aeronáutica e Ministério da Fazenda Brasileiros.
A decisão da Justiça norte-americana garante à Companhia fôlego financeiro no curto prazo para manter suas operações em funcionamento, enquanto apresenta o plano completo de reorganização das dívidas.
O planejamento da reestruturação será discutido na audiência marcada para o dia 9 de julho (“Second Day Hearing”), ocasião em que o juiz também revisará a concessão do automatic stay concedido.
Em suma, a estratégia da Azul com a adoção do sistema norte-americano para a sua reestruturação foi, em princípio, bem-sucedida, seja porque garantiu sua operação com investimentos relevantes, seja porque alcançou créditos derivados de órgãos governamentais brasileiros.
4. O Brasil é obrigado a reconhecer a decisão americana e obedecê-la?
De acordo com o Capítulo VI da lei 11.101/05, que trata da insolvência transnacional, em casos de insolvência de multinacionais, como na hipótese da Azul, a autoridade ou representante estrangeiro deverá solicitar o reconhecimento da decisão estrangeira para que ela possa produzir efeitos no Brasil.
Sem esse reconhecimento a jurisdição do Brasil é soberana e o automatic stay não produz efeitos no Brasil. Essa regra serve para qualquer credor que tenha sede brasileira.
Ressalte-se que a Justiça do Rio de Janeiro já reconheceu a insolvência transnacional de uma empresa em Singapura, através do reconhecimento de um processo de insolvência em trâmite no Superior Tribunal de Singapura. Este caso envolve a empresa de navegação Prosafe SE e foi proposto pela advogada Ana Carolina Monteira, autora desse artigo. (Processo 0129945-03.2021.8.19.0001)
Nesse contexto, para os credores brasileiros, na ausência de solicitação formal por parte do processo estrangeiro, não há base legal para o reconhecimento automático ou para a intervenção do Judiciário brasileiro.
Isso ressalta a importância de mecanismos adequados de comunicação e cooperação entre as jurisdições envolvidas em processos de insolvência transnacional.
5. Como ficam os créditos da Fazenda Nacional (impostos federais)?
- Esses impostos, por serem federais, não são abarcados pela jurisdição americana e não só podem ser cobrados ou negociados no Brasil.
- A Azul continua obrigada a pagar tributos no Brasil ou a negociar separadamente com a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN).
- Como tributos federais são, por natureza, créditos não sujeitos à recuperação judicial, não poderão ser perdoados ou vinculados às condições de pagamento previstas nos planos de recuperação judicial, nem mesmo no Brasil.
No entanto, a Companhia poderá:
- Negociar parcelamentos, no Brasil, ou transações tributárias com base na Lei do Contribuinte Legal (lei 13.988/20).
- Utilizar programas brasileiros da Receita Federal/PGFN como Transação Tributária, desde que atenda aos requisitos legais.
6. E os créditos com a Aeronáutica (ANAC, Infraero, Aeroportos, etc.)?
Esses créditos estão sob a jurisdição brasileira, pois são regulados por normas administrativas e contratos sob a vigência da legislação brasileira, de forma que suas obrigações deverão continuar sendo pagas ou negociadas separadamente no Brasil.
7. Plano de reestruturação
A Azul apresentou um plano para reduzir mais de US$ 2 bilhões em dívidas, incluindo a conversão de parte delas em ações. A Companhia também garantiu acesso a US$ 1,6 bilhão em financiamento para manter suas operações durante o processo de reestruturação. Além disso, há a possibilidade de captar até US$ 950 milhões em financiamento adicional, com potenciais investimentos de até US$ 300 milhões por parte da American Airlines e United Airlines. O processo tem várias etapas. Depois do comitê de credores formado, a Azul começará a trabalhar no plano de saída. A audiência de confirmação do plano é a final e a Cia espera que aconteça até o fim do ano.
8. Continuidade das operações
Apesar do processo de reestruturação, a Azul afirmou que continuará operando normalmente, mantendo todos os compromissos com clientes, funcionários e parceiros.
9. Perspectivas futuras
Conforme mencionado a Companhia espera concluir o processo de Chapter 11 até o início de 2026, emergindo com uma estrutura financeira mais sólida e preparada para enfrentar os desafios do setor aéreo.
Se a Azul requerer o reconhecimento da decisão estrangeira do automatic stay, como permitido pela legislação brasileira, ela resolverá os problemas jurisdicionais existentes e poderá seguir com suas negociações com os órgãos governamentais e Fazenda Nacional no âmbito de uma reestruturação segura e eficaz.