A era digital e o surgimento das plataformas de streaming revolucionaram as relações de consumo, impondo desafios à propriedade intelectual, notadamente quanto à definição dos direitos decorrentes da relação mantida entre autores e plataformas.
Apesar de a Constituição Federal de 1988 não trazer a expressão “plataforma” em seu texto, ela não é alheia ao mundo digital. A emenda 85, de 2015, redesenhou o capítulo IV de modo a denominá-lo “Da Ciência, Tecnologia e Inovação”. Segundo o art. 218, o Estado promoverá e incentivará “a inovação”, enquanto o inciso V do art. 23 diz ser competência da federação (União, Estados, DF e Municípios) proporcionar os meios de acesso “à tecnologia” e “à inovação”. Recentemente, a EC 115/22 trouxe o inciso LXXIX do art. 5º, que assegura, “nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais”.
Mas não é só. O inciso XXVIII do art. 5º assegura, desde a promulgação da Constituição, nos termos da lei: “a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas; e b) o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas;”. Esse é um dispositivo central para o presente texto.
É que o STF reconheceu a repercussão geral do Tema 1.403 (ARE 1.542.420), que discute a possibilidade de fiscalização pelos autores dos parâmetros das negociações pactuadas com as plataformas digitais e a devida prestação de contas, com foco na proteção da propriedade intelectual, na segurança jurídica das relações contratuais e no mercado do entretenimento.
O caso é interessante. Roberto Carlos e Erasmo Carlos (sim, eles mesmos) ajuizaram uma ação ordinária contra a Editora e Importadora Musical Fermata do Brasil Ltda, sustentando terem com ela firmado contratos de exploração econômica de suas obras nos idos dos anos de 1964 a 1987 e, diante do advento dos streamings, esses contratos deveriam ser revisitados quanto aos direitos autorais deles decorrentes.
Sustentam que “nenhuma pessoa pode ser obrigada a vínculo eterno com terceiros”; não estando abrangida nos contratos a “exploração por intermédio do formato digital”, mas apenas “a exploração comercial de músicas gravadas em suporte material” ou “o universo das edições fonomecânicas”; e que recebem pagamentos “irrisórios”, faltando “prestação de contas” e acesso a demonstrações técnicas fidedignas para aferição das exibições das obras musicais nas plataformas digitais, bem como a não participação direta dos recorrentes nas negociações com essas empresas.
Pedem que (i) se declare a inexistência de direitos autorais patrimoniais da empresa sobre a exploração econômica das suas obras por intermédio de tecnologias inexistentes à época das contratações; permitindo-se (ii) o desfazimento dos vínculos contratuais ou, caso se reconheça que os contratos contemplam a exploração por meio digital das obras, (iii) que “a relação jurídica seja resilida”, ante a “inadimplência contratual em relação à exploração das obras por intermédio de empresas de ‘streaming’”.
A empresa recorrida, contudo, pensa de outra forma. Para ela, os contratos cederam os direitos autorais de forma definitiva, sem limitar formatos ou meios de uso. Mesmo sob a vigência do Código Civil de 1916, a cessão abarcaria não só os formatos existentes à época, mas também os que viessem a surgir — como as plataformas digitais.
Para a Recorrida, “o fato de os tempos terem mudado e se digitalizado não deslegitimam um contrato perfeito”; “a cessão se esgota no ato de transferência e não comporta resilição”; “a transferência definitiva não violava à época da contratação (e não viola as Leis vigentes), o direito exclusivo de utilização, publicação e reprodução das obras pelos autores, e tampouco o direito de propriedade sobre elas”; e “não apenas os contratos de cessão, por si só, são claros em ceder à editora a exploração, entre outros, dos direitos fonomecânicos em qualquer espécie ou por qualquer processo, como também o direito de exploração comercial em todos os meios e formatos existentes e que vierem a existir constituem direito adquirido da Editora”.
A empresa citou a decisão do STJ no AREsp 325.117 (Rel. Min. Villas Bôas Cueva), no qual o cantor Gilberto Gil também pretendeu rescindir seus contratos. Os fundamentos que prevaleceram no caso foram os seguintes: a) mero arrependimento do contratante não pode ser causa de extinção dos vínculos contratuais; b) no contrato não há cláusula de arrependimento; c) o autor não nega estar recebendo a remuneração contratada, e d) incide o princípio pacta sunt servanda.
No STF, o ministro Dias Toffoli, relator, entendeu que a matéria alcança toda a cadeia da indústria fonográfica e os direitos fundamentais dos autores, especialmente diante das transformações nas relações na era digital.
Enquanto a discussão infraconstitucional se concentra na natureza jurídica dos pactos e na aplicação temporal da legislação para chancelar a exploração via streaming, o STF irá analisar se, independentemente da natureza do contrato e do período de sua celebração, o direito fundamental de fiscalização autoral e outros princípios constitucionais impõem limites e deveres de transparência às editoras e plataformas digitais na exploração dessas obras.
É o Estado da Arte na necessária compatibilização entre as mudanças geradas pelo ecossistema digital e o anteparo jurídico necessário à resolução dessas controvérsias.