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Direito de cópia do prontuário médico para fins diversos

Análise jurídica do direito fundamental de acesso ao prontuário médico. Aborda CF/1988, LGPD, jurisprudência do STJ e desafios práticos. Essencial para advogados e profissionais da saúde.

30/6/2025

1. Introdução

O prontuário do paciente constitui um dos documentos mais importantes no registro do histórico de atendimento por diversos profissionais da área de saúde, no qual se registra ou deve registrar cada procedimento realizado, passando pelos atestados, laudos de exames e prescrições médicas, entre outros. Trata-se de um documento de propriedade do paciente, que tem total direito de acesso.

A questão do acesso ao prontuário médico transcende a mera relação médico-paciente, inserindo-se no contexto mais amplo dos direitos fundamentais à informação, à saúde e ao devido processo legal. No ordenamento jurídico brasileiro, este direito encontra fundamento em múltiplas fontes normativas, desde a Constituição Federal1 até as resoluções específicas dos conselhos profissionais, passando pela legislação infraconstitucional e pela jurisprudência dos tribunais superiores.

A relevância do tema se manifesta especialmente quando o acesso ao prontuário médico se destina ao exercício de direitos junto ao poder público e aos particulares, como em demandas previdenciárias, ações de responsabilidade civil, processos criminais e procedimentos administrativos diversos. Nestes casos, o prontuário médico assume caráter probatório fundamental, constituindo-se em meio de prova essencial para a demonstração de fatos relacionados à saúde do paciente.

2. Fundamentos constitucionais e legais

2.1. Base constitucional

Existem várias normas que regulam a utilização, a guarda, o direito de acesso entre outros em relação ao prontuário médico, mas a que está no topo da pirâmide é a Constituição Federal, a qual, no seu art. 5º, XXXIII, garante que todos têm direito a receber dos órgãos públicos (ou delegatários do serviço público, tal como hospitais e estabelecimentos de saúde privados) informações de seu interesse particular, que deverão ser prestadas no prazo razoável, sob pena de responsabilidade2.

O dispositivo constitucional estabelece um direito fundamental de acesso à informação que se estende aos estabelecimentos privados quando estes exercem atividades de interesse público, como é o caso dos serviços de saúde. Esta interpretação ampliativa do texto constitucional encontra respaldo na doutrina e na jurisprudência, que reconhecem a natureza pública da atividade médica, independentemente da natureza jurídica da entidade prestadora do serviço.

2.2. Lei geral de proteção de dados pessoais

A lei 13.709/18, LGPD, representa um marco normativo fundamental na regulamentação do tratamento de dados pessoais, incluindo os dados de saúde contidos nos prontuários médicos. A LGPD prevê, em seu art. 6º, inciso IV, o livre acesso e consulta facilitada e gratuita sobre a integralidade de seus dados pessoais, no inciso VI, a transparência no tratamento dos dados e no inciso X, a responsabilização e prestação de contas pelo agente responsável pela proteção, guarda e permissão de acesso aos dados pessoais3.

No seu art. 7º, inciso VIII, a LGPD prevê expressamente o tratamento de dados pessoais mediante fornecimento de consentimento pelo titular (inciso I); para o exercício regular de direitos em processo judicial, administrativo ou arbitral (VI); para proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiro (VII) e para a tutela da saúde, exclusivamente, em procedimento realizados por profissionais de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária (VIII)4.

A LGPD reconhece que os dados de saúde são dados pessoais sensíveis, merecendo proteção especial. Contudo, a lei estabelece hipóteses excepcionais em que o tratamento destes dados pode ocorrer sem consentimento, como na manutenção do prontuário do paciente, para atender a normas que preveem a guarda do documento para fins de utilidade pública, incluindo a fiscalização da atividade médica por parte do Conselho de Medicina5.

2.3. Lei de arquivos públicos e privados

A lei 8.159/1991, que dispõe sobre a política nacional de arquivos públicos e privados, estabelece em seu art. 7º e §1º que os arquivos públicos são os conjuntos de documentos produzidos e recebidos, no exercício de suas atividades por órgãos públicos municipal, estadual ou federal, e que são, também públicos os conjuntos de documentos produzidos e recebidos por instituições de caráter público, por entidades encarregadas da gestão de serviços públicos no exercício das suas atividades (Hospitais privados, por exemplo)6.

Esta disposição legal é fundamental para compreender que os prontuários médicos, mesmo quando mantidos por instituições privadas, assumem caráter público quando estas instituições prestam serviços de saúde, atividade de interesse público por excelência.

2.4. Lei de acesso à informação

A lei 12.527/11, que regula o acesso a informações previsto no Inciso XXXIII do art. 5º da CF/1988, estabelece em seus arts. 31, 32, incisos e parágrafos que: a) O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais; b) As informações pessoais relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem, mas que tal consentimento é desnecessário quando para: b.1) prevenção e diagnóstico médico, quando a pessoa estiver física ou legalmente incapaz, e para utilização única e exclusivamente para o tratamento médico; b.2) cumprimento de ordem judicial; b.3) defesa de direitos humanos; b.4) proteção do interesse público e geral preponderante [7].

O art. 32 da lei 12.527/11 estabelece que constituem condutas ilícitas que ensejam responsabilidade do agente público ou militar: I - recusar-se a fornecer informação requerida nos termos desta lei, retardar deliberadamente o seu fornecimento ou fornecê-la intencionalmente de forma incorreta, incompleta ou imprecisa; II - utilizar indevidamente, bem como subtrair, destruir, inutilizar, desfigurar, alterar ou ocultar, total ou parcialmente, informação que se encontre sob sua guarda ou a que tenha acesso ou conhecimento em razão do exercício das atribuições de cargo, emprego ou função pública8.

3. Regulamentação do Conselho Federal de Medicina

3.1. Prazo de preservação dos prontuários

O art. 8º da resolução CFM 1.821/2007 estabelece o prazo mínimo de 20 anos, a partir do último registro, para a preservação dos prontuários dos pacientes em suporte de papel, que não foram arquivados eletronicamente em meio óptico, microfilmado ou digitalizado9.

3.2. Código de Ética Médica e acesso ao prontuário

A resolução CFM 2217/18, Código de Ética Médica, em seus arts. 80 a 91, impõe vedações ao médico, as quais podem gerar alguma confusão na liberação do prontuário médico, imbróglio este que contribui para alta litigiosidade em demandas de exibição de documentos e de mandados de segurança. No art. 88, estabelece que é vedado ao médico: “Negar ao paciente ou, na sua impossibilidade, a seu representante legal, acesso a seu prontuário, deixar de lhe fornecer cópia quando solicitada, bem como deixar de lhe dar explicações necessárias à sua compreensão, salvo quando ocasionarem riscos ao próprio paciente ou a terceiros”10.

Representante legal é aquele que representa uma pessoa incapaz para a realização dos atos da vida civil. Para fins previdenciários, por exemplo, podem ser administradores provisórios os herdeiros necessários, sendo estes representados pelo cônjuge, ascendentes (avós, bisavós) e descendentes (filhos, netos, bisnetos).

Noutro turno, o art. 89 do Código de Ética Médica estabelece que também é vedado ao médico: “Liberar cópias do prontuário sob sua guarda exceto para atender a ordem judicial ou para sua própria defesa, assim como quando autorizado por escrito pelo paciente”11.

3.3. Resolução CFM 2.381/24

A mais recente resolução CFM 2.381/2024, publicada no DOU em 2/7/24, normatiza a emissão de documentos médicos e estabelece que documentos médicos são aqueles emitidos por médicos e gozam de presunção de veracidade, produzindo os efeitos legais para os quais se destinam. A resolução considera expressamente a lei 13.709/18 (LGPD) sobre dados pessoais sensíveis e confirma que somente médicos têm prerrogativa de diagnosticar enfermidades e emitir atestados12.

4. Interpretação jurisprudencial

4.1. Superação da interpretação restritiva

A jurisprudência é farta no sentido de superar a interpretação restritiva do Código de Ética Médica à luz da legislação ordinária de regência e da Constituição Federal. Os Tribunais têm reconhecido que o direito de acesso ao prontuário médico não pode ser limitado por interpretações excessivamente restritivas das normas éticas profissionais.

4.2. Desnecessidade de prévio requerimento administrativo

Conquanto seja recomendável que a parte interessada faça o prévio requerimento administrativo para a instituição que tem guarda do prontuário médico( até por que como se poderia, por razões lógicas, se instituir um litígio sobre algo que não foi previamente negado?), há precedentes que entendem, inclusive, desnecessário, como preliminar de interesse de agir:

4.3. Dispensa de reconhecimento de firma em procuração

O TJ/MT, em decisão paradigmática, reconheceu que a exigência de reconhecimento de firma em procuração para obtenção de prontuário médico constitui excesso de zelo e exigência ilegal:

O Estado Constitucional se apresenta, em algumas situações, com o que se chama de “fatores reais de poder”, que são forças sociais, econômicas e políticas que moldam a realidade de um país, influenciando suas leis e instituições. Assim, uma constituição que não reflita a realidade social corre o risco de ser ineficaz e permanecer apenas no papel.

A fé pública dos advogados, também conhecida como o poder de autenticar documentos, é uma prerrogativa que lhes confere a capacidade de declarar a autenticidade de cópias de documentos apresentados em processos judiciais ou administrativos, sem a necessidade de reconhecimento de firma por tabelião ou outro agente com fé pública. Essa prerrogativa, estabelecida por lei, agiliza o andamento dos processos e reconhece a confiança depositada no profissional do Direito.

A exigência de reconhecimento de firma do advogado, no exercício de sua função (munus público) é mais uma das abrangências restritivas praticadas por alguns órgãos públicos e instituições privadas que acabam tendo que ser resolvidas pelo Poder Judiciário.

A lei 8.906/1994, Estatuto da Advocacia e Ordem dos Advogados do Brasil, ao regular o exercício da profissão, não excepciona em qualquer de suas linhas, em qualquer âmbito de atuação, em qualquer extensão, a necessidade do reconhecimento de firma nas procurações outorgadas aos advogados, assentando o art. 5º, §§ 1º, 2º e 3º6, como exigência suplementar, apenas a outorga de poderes especiais nos casos legais e nada mais. Ao contrário, autoriza, inclusive em juízo, o advogado, em algumas situações de urgência, a atuar sem procuração.

Segundo o art. 133 da Constituição Federal, “ O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. Exigências restritivas a sua atuação, tal como a exigência de firma reconhecida em procuração acompanhada de cópia da Carteira Profissional do Advogado, ofendem diretamente a Constituição.

Igualmente, a lei 13.726/18, a chamada "lei da desburocratização", que no art. 3º, inciso I, registra que:

Acrescente-se e repita-se, ainda, que gozam os advogados de fé pública, na medida em que, ao apresentarem fotocópia de qualquer documento, podem declará-lo autêntico, nos termos do art. 1º da lei 11.925/1997, que modificou o art. 830 da CLT; art. 11, §1º da lei 11.419/2006 e art. 425, inciso IV, do Código de Processo Civil (CPC) de 2015, sendo inegável que, para o Poder Constituinte Originário, o derivado e o legislador ordinário brasileiro, os advogados ocupam degrau superior em confiança e credibilidade inatas ao histórico e ao pleno exercício da profissão.

Os precedentes abaixo são necessários para maior ilustração deste tópico:

4.4. Responsabilidade por danos morais

No precedente a seguir, definiu-se que a negativa do hospital de fornecimento de prontuário médico ao paciente constitui fonte de aflição e angústia e é capaz de atingir-lhe a esfera extrapatrimonial, especialmente frente ao seu receio de ver indeferido benefício previdenciário pleiteado junto ao INSS, caracterizando-se, portanto, o dano moral indenizável. Nesse sentido:

Um outro ponto crucial da responsabilidade civil médica é a relevância da conduta omissiva frente ao dever jurídico de diligência imposto ao profissional da saúde. Ainda que não se possa afirmar com absoluta certeza que a ausência de registros médicos possa ser a causa direta e imediata do danos ao paciente, a omissão do médico no adequado preenchimento do prontuário médico pode caracterizar a violação de dever jurídico essencial, com repercussões não apenas éticas, mas também jurídicas.

A atividade médica, apesar de ser de meio e não de resultado, exige do profissional a adoção de todas as condutas esperadas de um técnico prudente, inclusive aquelas de natureza documental, como a adequada anotação das intercorrências clínicas. Esse registro é parte integrante da atuação médica responsável, pois assegura a continuidade do cuidado, a avaliação retrospectiva do procedimento e, em eventual judicialização, a transparência quanto ao que foi efetivamente realizado.

Ademais, nos termos da teoria da causalidade adequada, adotada pelo STJ16, o foco não é mais a relação física e direta entre a conduta e o dano, mas sim a previsibilidade jurídica e a aptidão da omissão para, de forma adequada, contribuir para o resultado danoso. Se a ausência de monitoramento e de registros impediu o diagnóstico e a intervenção tempestiva, ou mesmo a demonstração posterior de que todas as medidas cabíveis foram adotadas, a conduta se revela juridicamente relevante para o desfecho prejudicial.

Portanto, a responsabilização do médico neste caso não decorre da adoção de um critério de culpa objetiva, mas sim da verificação de uma culpa por omissão, configurada pela negligência técnica em um contexto de risco elevado. Trata-se da consagração de um modelo de responsabilidade civil compatível com os princípios da dignidade da pessoa humana e da proteção integral da criança, conforme impõe o ordenamento jurídico brasileiro.

Daí que exsurge a obrigação de não apenas entregar o prontuário médico ao requerente, mas de entrega-lo sem omissões e dúvidas que possam lhe retirar a presunção de veracidade fática nele relatado.

4.5. Prontuário médico para subsidiar direito a dano moral

No precedente abaixo, analisou-se, em cautelar de exibição de documentos, a necessidade de fornecimento do prontuário médico para análise de eventual interesse em ação de indenização por danos morais por negligência médica. Ficou resolvido que o alegado sigilo profissional do médico, contido no seu Código de Ética não era oponível ao seu dever de fornecer o prontuário médico aos sucessores do de cujus. Nesse sentido:

Alan da Costa Macedo
Doutorando em D. Trab e Seguridade Social na USP. Mestre em Direito Público, Especialista em D. Constitucional, Previdenciario, Processual e Penal. Coordenador Científico do IPEDIS.

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