Introdução
A crescente judicialização das demandas previdenciárias no Brasil representa um dos fenômenos mais significativos do sistema de justiça contemporâneo, revelando tensões estruturais entre a efetivação de direitos sociais e a capacidade institucional do Estado em garanti-los por meio de seus procedimentos administrativos. Os dados do Conselho Nacional de Justiça demonstram que o INSS - Instituto Nacional do Seguro Social figura como o maior litigante do país, com milhões de processos pendentes na Justiça Federal1. Este cenário não apenas sobrecarrega o Poder Judiciário, mas também evidencia falhas sistemáticas no processo administrativo previdenciário que impedem o reconhecimento tempestivo dos direitos dos segurados.
O presente estudo parte da hipótese de que a violação sistemática do dever de orientação e esclarecimento estabelecido no art. 88 da lei 8.213/1991, conjugada com o descumprimento dos princípios fundamentais do processo administrativo previstos na lei 9.784/1999, constitui uma das principais causas da excessiva judicialização previdenciária. Esta problemática assume contornos ainda mais graves quando se considera que a previdência social, enquanto direito fundamental de segunda geração, deve ser efetivada pelo Estado de forma proativa, garantindo não apenas o acesso formal aos benefícios, mas também a orientação adequada aos segurados sobre seus direitos e os meios de exercê-los.
A relevância desta investigação justifica-se pela necessidade de compreender os mecanismos jurídicos que podem contribuir para a redução da litigiosidade previdenciária, promovendo maior eficiência na prestação dos serviços públicos e garantindo a efetivação dos direitos sociais em sede administrativa. Ademais, o tema ganha especial importância no contexto atual, marcado pela reorganização dos processos de trabalho no INSS, pela crescente automação das decisões administrativas e pelos debates jurisprudenciais sobre a responsabilidade da autarquia previdenciária pelas falhas em seus procedimentos internos.
O objetivo geral desta pesquisa consiste em analisar juridicamente o dever de orientação e esclarecimento do INSS, identificando as principais violações aos princípios do processo administrativo e seus reflexos na judicialização previdenciária. Como objetivos específicos, busca-se: examinar os fundamentos normativos do dever de orientação na legislação previdenciária; identificar as principais violações aos princípios do processo administrativo federal; analisar os dados estatísticos da litigiosidade previdenciária e sua correlação com as falhas administrativas; examinar a jurisprudência dos tribunais superiores sobre o tema; e propor medidas para a efetivação do dever de orientação como instrumento de redução da judicialização.
A metodologia empregada baseia-se no método dedutivo, partindo da análise dos princípios gerais do processo administrativo e do dever de orientação para examinar suas aplicações específicas no âmbito previdenciário. Utiliza-se pesquisa bibliográfica, com consulta à doutrina especializada em Direito Previdenciário e Administrativo; pesquisa documental, abrangendo legislação, instruções normativas e relatórios institucionais; e pesquisa jurisprudencial, com foco nas decisões dos tribunais superiores, especialmente o Tema 1.124 do STJ. Os dados estatísticos foram coletados junto ao CNJ, CGU e TCU, permitindo uma análise quantitativa do fenômeno da judicialização previdenciária.
A estrutura do trabalho organiza-se em seis seções principais, além desta introdução e das considerações finais. Inicialmente, examina-se o dever de orientação e esclarecimento na legislação previdenciária, analisando seus fundamentos normativos e evolução histórica. Em seguida, abordam-se as violações sistemáticas aos deveres de orientação, com base em dados oficiais sobre indeferimentos automáticos e falhas na instrução processual. A terceira seção analisa os reflexos dessas violações na judicialização previdenciária, apresentando dados estatísticos e examinando o Tema 1.124 do STJ. A quarta seção examina a jurisprudência e precedentes administrativos relevantes. A quinta seção apresenta propostas para a efetivação do dever de orientação, abordando medidas normativas e práticas. Por fim, as considerações finais sintetizam os principais achados e apontam perspectivas futuras de pesquisa.
2. O dever de orientação e esclarecimento na legislação previdenciária
2.1 Fundamentos normativos do dever de orientação
O dever de orientação e esclarecimento do Instituto Nacional do Seguro Social encontra seu fundamento normativo primário no art. 88 da lei 8.213/1991, que estabelece as competências do Serviço Social na previdência social. Este dispositivo legal, frequentemente negligenciado na prática administrativa, constitui um dos pilares fundamentais da relação entre a autarquia previdenciária e seus segurados, impondo obrigações específicas que transcendem a mera análise técnica dos requerimentos de benefícios2.
O art. 88 da lei de Benefícios da Previdência Social dispõe que "compete ao Serviço Social esclarecer junto aos beneficiários seus direitos sociais e os meios de exercê-los e estabelecer conjuntamente com eles o processo de solução dos problemas que emergirem da sua relação com a Previdência Social, tanto no âmbito interno da instituição como na dinâmica da sociedade"3. Esta norma estabelece, de forma inequívoca, que o INSS possui o dever legal de esclarecer aos segurados não apenas quais são seus direitos previdenciários, mas também os meios práticos de exercê-los, incluindo a orientação sobre documentação necessária, procedimentos administrativos e alternativas disponíveis.
A amplitude do dever de orientação é reforçada pelos parágrafos do art. 88, que estabelecem prioridades específicas e instrumentos de atuação. O § 1º determina que "será dada prioridade aos segurados em benefício por incapacidade temporária e atenção especial aos aposentados e pensionistas"3, reconhecendo a vulnerabilidade particular desses grupos e a necessidade de orientação diferenciada. O § 2º prevê que "para assegurar o efetivo atendimento dos usuários serão utilizadas intervenção técnica, assistência de natureza jurídica, ajuda material, recursos sociais, intercâmbio com empresas e pesquisa social"3, demonstrando que o legislador concebeu um sistema abrangente de apoio aos segurados.
A interpretação sistemática do art. 88 revela que o dever de orientação não se limita a uma obrigação moral ou ética, mas constitui uma imposição legal específica que gera responsabilidades concretas para a autarquia previdenciária. Esta compreensão é fundamental para entender que a omissão do INSS em orientar adequadamente os segurados não representa apenas uma falha de atendimento, mas uma violação direta da legislação previdenciária, com consequências jurídicas que podem incluir a responsabilização da autarquia pelos prejuízos decorrentes.
O fundamento constitucional do dever de orientação encontra-se no próprio conceito de seguridade social estabelecido no art. 194 da Constituição Federal, que a define como "um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social"4. A expressão "conjunto integrado de ações" implica que a efetivação dos direitos previdenciários não se esgota na mera concessão de benefícios, mas abrange todas as medidas necessárias para garantir o acesso efetivo dos cidadãos aos seus direitos, incluindo a orientação e o esclarecimento.
2.2 A Matriz Teórico-Metodológica do Serviço Social na Previdência
A compreensão adequada do dever de orientação estabelecido no art. 88 da lei 8.213/1991 requer o exame da Matriz Teórico-Metodológica do Serviço Social na previdência social, documento seminal publicado em 1994 que fundamentou teoricamente a atuação dos assistentes sociais no INSS5. Esta Matriz representa um marco na evolução do Serviço Social previdenciário, estabelecendo uma ruptura com práticas conservadoras anteriores e reafirmando o compromisso da profissão com a perspectiva crítica e emancipatória.
A Matriz de 1994 estabeleceu princípios fundamentais que conferem densidade teórica ao dever de orientação previsto na lei. Primeiro, reconhece a previdência social como direito constitucional do trabalhador, não como benesse estatal, o que implica que a orientação deve ser prestada numa perspectiva de garantia de direitos, não de favor ou caridade. Segundo, determina que o Serviço Social deve posicionar-se criticamente no interior da instituição, enfrentando as contradições e tensões inerentes à relação entre capital e trabalho que se manifestam no âmbito previdenciário5.
O documento estabelece ainda que a prática profissional deve fundamentar-se no "embate das relações concretas constitutivas da própria Previdência Social", reconhecendo que a orientação aos segurados não pode ser neutra ou meramente técnica, mas deve considerar as desigualdades sociais e as relações de poder que permeiam o sistema previdenciário5. Esta perspectiva é fundamental para compreender que o dever de orientação possui uma dimensão política e social que transcende os aspectos puramente procedimentais.
A Matriz também enfatiza a necessidade de "enfrentamento de novos desafios" profissionais, antecipando as transformações que o sistema previdenciário sofreria nas décadas seguintes, incluindo a crescente automação dos processos, a redução do quadro de servidores e a pressão por maior produtividade. Neste contexto, o dever de orientação assume importância ainda maior como instrumento de humanização do atendimento e garantia de que os direitos dos segurados não sejam sacrificados em nome da eficiência administrativa.
2.3 Princípios do processo administrativo federal e sua aplicação na previdência
O dever de orientação estabelecido na legislação previdenciária específica deve ser compreendido em articulação com os princípios gerais do processo administrativo federal, estabelecidos na lei 9.784/1999. Esta lei, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, estabelece princípios e regras que se aplicam integralmente aos procedimentos do INSS, conferindo maior densidade normativa ao dever de orientação6.
O art. 29 da lei 9.784/1999 estabelece que "as atividades de instrução destinadas a averiguar e comprovar os dados necessários à tomada de decisão realizam-se de ofício ou mediante impulsão do órgão responsável pelo processo, sem prejuízo do direito dos interessados de propor atuações probatórias"6. Este dispositivo impõe ao INSS o dever de instrução de ofício, ou seja, a obrigação de buscar ativamente as informações e provas necessárias para a correta análise dos requerimentos, não podendo transferir integralmente este ônus aos segurados.
O § 2º do art. 29 complementa esta obrigação ao determinar que "os atos de instrução que exijam a atuação dos interessados devem realizar-se do modo menos oneroso para estes"6. Este princípio da menor onerosidade é fundamental para a compreensão do dever de orientação, pois implica que o INSS deve não apenas informar aos segurados sobre os documentos necessários, mas também orientá-los sobre as formas menos custosas e mais eficientes de obtê-los.
O art. 39 da lei 9.784/1999 estabelece outro princípio fundamental: "quando for necessária a prestação de informações ou a apresentação de provas pelos interessados ou terceiros, serão expedidas intimações para esse fim, mencionando-se data, prazo, forma e condições de atendimento"6. Este dispositivo consagra o princípio da não surpresa no processo administrativo, vedando decisões que não tenham sido precedidas de oportunidade de manifestação do interessado.
A violação destes princípios pelo INSS é sistemática e bem documentada. Relatórios da CGU demonstram que a autarquia frequentemente indefere requerimentos sem realizar as diligências necessárias, sem intimar os segurados para esclarecimentos ou complementação de documentos, e sem orientá-los adequadamente sobre os procedimentos7. Esta prática viola simultaneamente o dever específico de orientação (art. 88 da lei 8.213/1991) e os princípios gerais do processo administrativo (lei 9.784/1999).
A articulação entre estes dois conjuntos normativos revela que o dever de orientação do INSS possui múltiplas dimensões: uma dimensão substantiva, relacionada ao conteúdo dos direitos previdenciários; uma dimensão procedimental, relacionada aos meios de exercício destes direitos; e uma dimensão garantística, relacionada à proteção dos segurados contra decisões arbitrárias ou inadequadamente fundamentadas. A violação de qualquer uma destas dimensões compromete a efetividade do sistema previdenciário e contribui para a judicialização excessiva das demandas.
Leia o artigo na íntegra.
_______
1 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça homologou mais de meio milhão de acordos previdenciários até outubro de 2024. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/justica-homologou-mais-de-meio-milhao-de-acordos-previdenciarios-ate-outubro-de-2024/. Acesso em: 17 jul. 2025.
2 BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm. Acesso em: 17 jul. 2025.
3 BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Art. 88. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm. Acesso em: 17 jul. 2025.
4 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 194. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 17 jul. 2025.
5 JESUS, Selma Ribeiro de. O Serviço Social na previdência posto à prova: desafios ao projeto profissional. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 147, p. 1-25, 2024. Disponível em: https://www.scielo.br/j/sssoc/a/7yhqfzQWRDFkhQd6QQy4wGS/. Acesso em: 17 jul. 2025.
6 BRASIL. Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999. Regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9784.htm. Acesso em: 17 jul. 2025.
7 CONTROLADORIA GERAL DA UNIÃO. Estudo sobre indeferimentos automáticos de requerimentos previdenciários. Brasília: CGU, 2023. Disponível em: https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202311/controladoria-geral-da-uniao-aponta-fragilidades-em-processo-de-prova-de-vida-e-de-automacao-de-beneficios-no-inss-1 . Acesso em 17 jul. 2025.