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Instituição do regime de cotas nas empresas públicas, sociedades de economia mista e companhias abertas

Lei 15.177/25 cria cotas nos conselhos de empresas estatais e companhias abertas, reservando 30% das vagas a mulheres negras ou com deficiência.

29/7/2025

A lei 15.177 de 23/7/25 instituiu o sistema de cotas nas: I - empresas públicas, sociedades de economia mista, suas subsidiárias e controladas e outras companhias em que a União, o Estado, o Distrito Federal ou o município, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto; e II - companhias abertas, facultada sua adesão à reserva de vagas, estabelecida em 30% (trinta por cento), no mínimo, das vagas de membros titulares dos seus conselhos de administração, de acordo com os critérios temporais progressivos mencionado no art. 3°. O controle correspondente será feito pelos órgãos próprios, internos e externos das sociedades objeto dessa lei e, no que diz respeito às estatais, aplicável o art. 85 da lei 13.303/16 (Lei de responsabilidade das estatais).

Do quantitativo acima citado, pelo menos 30% (trinta por cento) deverá ser preenchidos por mulheres negras ou com deficiência.

Observe-se, em uma primeira crítica, que essa lei peca por falta de técnica legislativa, uma vez que as empresas públicas e as sociedades de economia mista não podem ser consideradas como empresárias, qualificação reservada àquelas de direito privado indicadas no art. 982 do CC.

Uma observação oportuna está relacionada à tutela jurídica das estatais, especificamente quanto à sua a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários, nos termos do art. 173, II da CF, que orientará as nossas considerações, à guisa de introdução ao tema.

Quanto às companhias abertas, é facultativa a sua adesão ao regime de vagas estabelecido pela lei sob exame, conforme está estabelecido no inciso II do art. 2° dessa lei. Mas pode-se entrever que haverá pressão social em tal sentido.

1. Do sistema de cotas raciais em geral e o caso particular

A adoção do sistema de cotas raciais em geral faz parte das políticas de ação afirmativa, consagrado pelo STF desde o julgamento da ADPF 186/DF, em 2012, que reconheceu a concretização do princípio da isonomia constitucional, na forma de igualdade material. Em contraponto, a segundo a igualdade formal, devem ser todos tratados de forma idêntica. Cuida-se de uma maneira de inclusão social e de natureza transitória - devendo ser avaliado o sistema quanto à sua eficácia - até o que o fim colimado (igualdade) seja alcançado.

No caso particular, portanto, passaram a ser objeto de inclusão social nas entidades indicadas na lei as mulheres, parte das quais devem ser negras ou com deficiência.

Um dos marcos importantes do sistema de cotas foi a lei 12.711/12, que determinou a reserva de vagas em universidades federais e institutos federais para estudantes de escolas públicas, negros, pardos e indígenas. Esse exemplo veio a ser seguido pelas demais universidades no país e por muitas entidades públicas de toda a natureza.

Tratando-se de inclusão, portanto, a segunda crítica que se faz a essa lei foi a sua omissão em nela incluir pardos e indígenas - e até quilombolas - como tem sido a prática na política de igualdade afirmativa. Se a lei é igual para todos sob o aspecto material, não haveria como fugir na extensão da proteção em causa.

2. A proteção dos deficientes em geral

Essa proteção se deu por meio do art. 93, da lei 8.213, de 24.07.1991, onde se estabeleceu que a empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, parte da Subseção II, relativa à habilitação e reabilitação profissional. O texto legal não define o que seja deficiência. Veja-se que a lei em questão dispõe sobre os benefícios da previdência social colocando-se, portanto, no plano do direito privado.

A lei de cotas acima citada foi regulamentada pelo dec. 2.398/1999, no qual está definida a deficiência como qualquer perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gera uma incapacidade para o trabalho, dentro do que é considerado o padrão normal para o ser humano. Para o fim estrito da lei de cotas o art. 3° da norma referida define as deficiências que nela podem ser enquadradas:

(I) Deficiência física: é uma alteração parcial ou total de algum segmento do corpo que comprometa funções físicas. No entanto, deformidades estéticas que não interferem na capacidade de trabalho não são consideradas deficiência.

(II) Deficiência auditiva: refere-se à perda auditiva parcial ou total (unilateral ou bilateral) de 41 decibéis (dB) ou mais.

(II) Deficiência visual: é classificada como cegueira ou baixa visão severa, onde a pessoa não consegue identificar formas ou contornos, mesmo com o uso da melhor correção ótica disponível (como óculos ou lentes).

(IV) Deficiência intelectual: significa um funcionamento intelectual significativamente inferior à média, manifestado antes dos 18 anos, que limita a pessoa em ao menos duas áreas, como: comunicação, habilidades sociais, autocuidado, saúde e segurança, atividades acadêmicas, entre outras.

(V) Associação de deficiências: ocorre quando a pessoa possui mais de uma deficiência ao mesmo tempo, como uma deficiência auditiva combinada com uma deficiência visual.

3. A indicação de deficientes para o atendimento da lei 15.177/25

Na inexistência de dispositivo legal expresso, podemos utilizar a classificação acima, por analogia, para a sua aplicação aos deficientes que poderiam ser designados como membros dos conselhos de administração das entidades que são seu objeto, entendendo-se que não podem corresponder aos deficientes intelectuais, pois não teriam condição de exercerem essa função. Vejamos quais as condições necessárias.

(a) Deficientes físicos - necessidade de equipamentos e facilidades de acessibilidade.

(b) Deficientes auditivos - presença obrigatória de tradutor em libras nas reuniões de conselho de administração e em todas as circunstâncias nas quais o conselheiro precisar falar com alguém. Uma pergunta que se coloca é se a linguagem em libras seria capaz de traduzir em gestos os termos técnicos utilizados pelos participantes de reuniões.

(c) Deficientes visuais - elaboração em braile de todos os documentos que necessitarão examinar;

(d) Deficiências associadas - tudo o que for necessário para que os indicados exerçam o seu papel com eficiência.

É evidente que o legislador não pensou nessas circunstâncias em todas as outras que possam se revelar para a sua efetividade, as quais acrescerão substancialmente o custo do funcionamento dos conselhos de administração dos quais venham a fazer parte os deficientes.

4. O cabedal técnico e jurídico dos indicados aos conselhos de administração

Uma observação preliminar é aquela que diz respeito ao fato notório de que significativa parte dos cargos de administração das estatais, é preenchida por critérios políticos de conveniência. Basta ver a relação dos nomes dos diretores e conselheiros que as integram e o seu currículo, para se perceber que nada ou quase nada conhecem do negócio exercido. O receio é que esses mesmos critérios sejam utilizados no caso da lei de que se trata, de maneira a que tais as conselheiros assim escolhidas não passem de tapa buracos para o fim do atendimento das proporções estabelecidas, tão somente homologando as decisões tomadas naqueles órgãos.

A complexidade da tarefa dos conselheiros de administração está presente no rol constante do art. 142 da lei 6.404, denotando-se no inciso I a competência para fixar a orientação dos negócios da companhia o que exige, evidentemente que eles conheçam profundidade o seu objeto. Outro exemplo está no inciso VI, que diz respeito à manifestação prévia sobre atos e contratos sob a responsabilidade do órgão, quando assim for determinado pelo estatuto social. 

Um conselheiro de empresas públicas e de sociedades de economia mista precisará frequentemente ser fluente na língua inglesa - a língua geral dos negócios nacionais e internacionais - ser capaz de analisar um balanço; de entender de câmbio e de operações internacionais; de ter uma visão geoeconômica e geopolítica; de saber operar nos programas mais complexo de computador, não ficando somente no word e em outros básicos; ser dotado especialmente de discernimento. Não vejo que haja no momento ou sequer em prazo médio um celeiro de talentos com essa capacidade múltipla, com conhecimento e eficiência, sob pena de responsabilidade como veremos em seguida.

E não adianta que no exercício de suas funções que sejam auxiliados por profissionais das áreas diversas de atuação da entidade da qual sejam conselheiros, porque, na prática, seguirão as suas orientações dos assessores - já que não são capazes de avaliarem o seu mérito – assumindo o seu papel de fachada, e, como veremos em seguida, mesmo assim serão responsabilizados.

5. A responsabilidade dos membros do conselho de administração na lei 15.177/25

Veja-se que, nos termos do art. 16, caput, da lei das estatais (13.303/16), os conselheiros de administração estão submetidos às normas previstas da lei das S/A (6.404/1976), o que inclui o plano da responsabilidade.

Combinados os arts. 145 e 158 da lei das S/A, verifica-se que os conselheiros de administração são responsáveis pelos prejuízos que causarem à sociedade quando procederem dentro das suas atribuições com culpa ou dolo ou pela violação da lei ou do estatuto. Essa responsabilidade é solidária com os demais pelos prejuízos causados em virtude do não cumprimento dos deveres impostos por lei para assegurar o funcionamento normal da companhia, ainda que pelo estatuto, tais deveres não caibam a todos eles.

Como se percebe, trata-se de uma responsabilidade que pode se revelar bastante vultosa quanto ao tamanho do prejuízo que for apurado, não havendo como dela escapar se estiverem presentes os seus pressupostos.

6. Um iceberg não identificado

O art. 5° da lei em consideração pode por o navio a pique, não tendo o legislador percebido o tamanho desse iceberg. Isto porque nele está escrito que será impedido de deliberar sobre qualquer matéria o conselho de administração da sociedade empresária referida no inciso I do caput do art. 2º que, por qualquer razão, infringir o disposto nesta lei.

Ora, as hipóteses do não cumprimento da lei poderão se verificar na casa de dezenas, sendo impossível a previsão de todas as possibilidades. Daí, sem poder funcionar, a nave irá ao fundo, não tendo sido criada uma válvula de escape, já que sem poder tomar as deliberações de sua competência, não foi previsto um caminho de saída. Veja-se que a lei já está em vigor e que os quóruns do seu atendimento, previstos no art. 3° não preveem margem de manobra, o que exigirá o seu atendimento a toque de caixa a partir da primeira eleição, contada da sua vigência.

7. Conclusão

As boas intenções precisam do devido respaldo para que se tornem viáveis e efetivas. Como se percebeu esses pressupostos não foram atendidos, ainda que a autora do projeto mereça todo o nosso respeito, tendo falhado na missão do atendimento da política de social de inclusão das mulheres no mercado de trabalho - se é que disso se trata quando o instrumento e o cargo de conselheiro em uma estatal, não considerado emprego - tendo apresentado algumas omissões.

Na verdade, as políticas de inclusão social têm tido a função de enxugar gelo, pois a demanda sempre aumenta, seja pela expansão demográfica dos grupos necessitados, seja pela perenidade dos programas, sem porta de saída. O grau necessário de educação para essa função de conselheiros está no topo da cadeia educativa, como foi visto, enquanto parte significativa da população não tem acesso sequer a saneamento básico, quanto mais de educação pública desde a instituição de creches até o final do ensino médio.

Como se percebe, na aplicação da lei em apreço fortes tempestades serão deflagradas sobre a sua aplicação.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

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