1. Introdução
O modelo tradicional de execução civil, fundado em uma separação estanque entre cognição e execução, tem sido crescentemente contestado pela doutrina contemporânea, que observa no CPC/15 um movimento de aproximação entre essas atividades jurisdicionais.
Tal aproximação se assenta não apenas em exigências de eficácia e efetividade da prestação jurisdicional, mas também no reconhecimento de que a dicotomia clássica entre cognição e execução é, por vezes, incapaz de garantir tutela adequada aos direitos em juízo.
A função do juiz contemporâneo não se restringe mais a homologar automaticamente os comandos derivados do título executivo, mas sim de controlar sua legitimidade e adequação ao caso concreto, sob a égide dos princípios da boa-fé processual, proporcionalidade e devido processo legal.
É nesse ambiente dogmático que ressurge com força o instituto da exceção de pré-executividade, cuja admissibilidade decorre do princípio da legalidade processual e da indisponibilidade das matérias de ordem pública, com respaldo inequívoco na jurisprudência consolidada do STJ.
2. Cognição judicial in executivis: do dogma da separação ao princípio da complementariedade
A tradição doutrinária fundada nos postulados de Chiovenda e Pontes de Miranda sustentava a autonomia funcional da execução, reduzindo o papel do juiz a executor de atos materiais vinculados à eficácia do título.
Essa compreensão, todavia, revelou-se insuficiente à luz das garantias constitucionais do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal (CF/1988, art. 5.º, LIV e LV). A evolução doutrinária e normativa indicou a necessidade de um modelo sincrético, em que a cognição judicial, embora sumária, esteja presente ao longo do iter executivo.
O advento da lei 11.232/05 e sua consolidação no CPC/15 institucionalizaram a possibilidade de discussão de mérito mesmo após o trânsito em julgado, desde que fundado em fatos supervenientes ou questões de ordem pública.
Em verdade, a execução não prescinde de cognição, mas sim a incorpora sob parâmetros específicos e delimitados.
3. Estruturação e fundamentos da exceção de pré-executividade
O reconhecimento jurisprudencial da exceção de pré-executividade como meio de defesa atípico remonta ao parecer de Pontes de Miranda no Caso Mannesmann, tendo sido sistematicamente consolidado por Galeno Lacerda.
Trata-se de instrumento que permite ao executado suscitar, por simples petição e sem garantia do juízo, questões de ordem pública cognoscíveis ex officio.
O leading case REsp 7.410/MT (STJ) fixou os dois requisitos cumulativos para seu cabimento: (i) a matéria deve ser suscetível de conhecimento de ofício pelo juiz e (ii) a prova deve estar documentalmente pré-constituída e apta a instruir a decisão de plano. Importa salientar que tal instrumento não substitui os embargos à execução nem se presta a alargar indevidamente os meios de defesa do devedor, mas sim a corrigir distorções processuais que comprometam a higidez do título ou a validade da execução.
4. A extensão da cognição judicial: da sumária à exauriente secundum eventum probationis
A jurisprudência contemporânea tem admitido que, desde que presentes os requisitos formais e materiais, a cognição judicial in executivis seja exercida de forma plena e exauriente, a depender do resultado da instrução documental.
Como decidido no EAREsp 1.321.377/SP, a rejeição da exceção por insuficiência probatória não configura julgamento de mérito, mas enseja preclusão pro iudicato, facultando ao excipiente a reapresentação da matéria em embargos à execução.
Por outro lado, o acolhimento da exceção com base em prova suficiente pode ensejar coisa julgada material sobre a questão decidida.
Tal formulação propicia um modelo dinâmico de cognição, em que a extensão da atividade judicial é definida a posteriori, segundo a densidade da prova documental carreadas aos autos.
Trata-se, portanto, de um modelo calibrado entre a economia processual e a exigência de tutela substancialmente adequada.
5. Hipóteses de admissibilidade: objeto e limitações da exceção
As matérias tradicionalmente reconhecidas como aptas a serem conhecidas via exceção de pré-executividade incluem: nulidade do título, ilegitimidade de parte, inexistência ou extinção da obrigação, prescrição, decadência, pagamento, compensação, transação e demais causas extintivas reconhecíveis de plano.
Tais alegações devem estar instruídas com documentos idôneos e inequívocos, não se admitindo dilatio probatoria.
A súm. 393 do STJ consagra essa linha interpretativa, especialmente no âmbito das execuções fiscais.
Ademais, tem sido reiterado o entendimento de que a exceção de pré-executividade não está sujeita a prazo preclusivo, podendo ser apresentada em qualquer fase do módulo executivo, desde que não se tenha operado a preclusão consumativa para matérias já apreciadas.
6. Considerações finais
O modelo clássico de separação entre cognição e execução vem sendo tensionado pela doutrina e jurisprudência contemporâneas. O CPC/15 consolida uma tendência de aproximação funcional entre esses momentos processuais, especialmente na fase executiva, onde a cognição judicial, ainda que sumária, se revela necessária à preservação da legalidade e dos direitos fundamentais do executado.
Neste cenário, destaca-se a exceção de pré-executividade, instrumento reconhecido pela jurisprudência do STJ, que permite ao devedor suscitar, sem garantia do juízo, matérias de ordem pública, desde que instruídas com prova documental pré-constituída. Fundada em precedentes como o REsp 7.410/MT e consolidada em decisões posteriores, a exceção visa preservar a integridade do processo executivo contra constrições abusivas ou ilegítimas.
A doutrina destaca, ainda, a possibilidade de cognição judicial exauriente secundum eventum probationis, admitida quando os documentos apresentados forem suficientes à formação do convencimento judicial, conforme reconhecido no EAREsp 1.321.377/SP. Nessa linha, a rejeição da exceção por ausência de prova não impede o uso de embargos à execução, enquanto seu acolhimento pode ensejar coisa julgada material.
São matérias tipicamente aceitas em sede de exceção: prescrição, ilegitimidade de parte, nulidade do título, pagamento e outras causas extintivas evidenciáveis de plano. Não se admite dilação probatória, tampouco a discussão de mérito contratual complexo. A súm. 393 do STJ reforça essa orientação no âmbito fiscal.
Conclui-se que a exceção de pré-executividade, embora atípica e informal, encontra sólido respaldo na legalidade processual e se legitima como importante técnica de contenção de abusos na execução. Seu uso, contudo, deve ser criterioso, limitado às hipóteses reconhecidas pela jurisprudência, com o objetivo de assegurar a coerência e estabilidade do sistema executivo.
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Referências
DINAMARCO, Cândido Rangel. Execução civil. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
GRECO, Leonardo. O processo de execução. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. v. 1.
MOREIRA, Alberto Camiña. Defesa sem embargos do executado: exceção de pré-executividade. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000.
STJ. AgInt no AREsp 1.934.511/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, 2.ª T., j. 24.11.2022, DJe 30/11/2022.
STJ. AgInt no REsp 1.815.608/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3.ª T., j. 18.05.2021, DJe 21/5/2021.
STJ. EAREsp 1.321.377/SP, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Corte Especial, j. 4/6/2023, DJe 22/6/2023.
STJ. REsp 7.410/MT, Rel. Min. Vicente Cernicchiaro, 3.ª T., j. 21/3/1990, DJ 2/4/1990.