Kayden Mancuso, sete anos. Aramazd “Piqui” Andressian Jr., cinco anos. Ambos foram assassinados por seus pais durante amargas disputas de guarda nos Estados Unidos. Em ambos os casos, as mães haviam alertado repetidamente sobre o perigo, e em ambos os casos, o sistema de justiça falhou em protegê-los. A raiz dessas falhas fatais, conforme identificado pelas leis que surgiram em resposta a essas tragédias, não foi apenas um erro de julgamento, mas um sintoma de um problema mais profundo e técnico: a atuação de “especialistas” que, na prática, careciam da expertise necessária para avaliar situações de abuso e violência doméstica.
Essas histórias não são dramas distantes; são o mais contundente alerta para a realidade dos tribunais de família no Brasil. Elas demonstram que a vida de uma criança pode depender diretamente da qualificação do psicólogo forense encarregado de avaliar sua família. A legislação brasileira é enfática ao exigir essa competência técnica: tanto o art. 465 do CPC, que determina a nomeação de “perito especializado no objeto da perícia”, quanto o art. 5º, § 2º, da lei da alienação parental (lei 12.318/10), que vai além e exige “aptidão comprovada por histórico profissional ou acadêmico para diagnosticar atos de alienação parental”. No entanto, uma lacuna perigosa separa a clareza do que a lei exige e o que a prática judicial aceita.
O grande risco que assombra os litígios de guarda hoje não é apenas a existência de laudos equivocados, mas a permissão para que profissionais sem a devida capacitação técnica e específica atuem em casos de altíssima complexidade e responsabilidade. Um diploma de psicologia e um registro no conselho de classe, embora essenciais, são insuficientes para habilitar alguém a decifrar as dinâmicas de violência, abuso e trauma. A especialização comprovada não é um luxo, mas uma condição indispensável para a proteção infantil. A questão que este artigo coloca é: por que o sistema de justiça continua a ignorar seus próprios requisitos, permitindo que a sorte, e não a ciência, dite o futuro de tantas crianças?
A legislação brasileira é surpreendentemente clara sobre a necessidade de qualificação. O CPC determina que o juiz nomeará “perito especializado no objeto da perícia”. De forma ainda mais específica, a lei da alienação parental (lei 12.318/10) exige que o profissional tenha “aptidão comprovada por histórico profissional ou acadêmico para diagnosticar atos de alienação parental”. A lei não pede um psicólogo genérico; ela exige um especialista. É justamente para permitir o controle dessa qualificação que a lei processual, em seu art. 465, § 2º, II, determina que o perito, ao ser nomeado, deve apresentar seu currículo com a comprovação de sua especialização.
Contudo, a realidade da prática forense revela uma “flagrante contradição”. Um estudo que analisou editais de credenciamento de tribunais brasileiros, como o do TJ/MG, apontou que as exigências para psicólogos se restringem, muitas vezes, ao diploma, ao registro profissional e, quando muito, a um certificado de especialização genérico. As ressalvas sobre a aptidão específica para atuar em casos de alienação parental, abuso ou violência relacional, como manda a lei, são frequentemente ignoradas1.
Essa omissão regulamentar cria um perigoso vácuo. Abre-se a porta para que profissionais sem a capacitação contínua e aprofundada em temas como violência doméstica, abuso infantil e atendimento baseado em trauma assumam a responsabilidade de emitir opiniões que selarão o destino de uma família. A ausência de uma exigência formal de especialização para atuar na interface com o Direito permite que o despreparo técnico se torne a norma, e não a exceção.
O resultado é um sistema que, por um lado, possui leis protetivas e exigentes e, por outro, falha em seu mecanismo mais básico de controle: garantir que o profissional nomeado para aplicar a ciência seja, de fato, competente para a tarefa. Essa falha sistêmica não é um mero detalhe processual; é a fundação sobre a qual se constroem decisões judiciais equivocadas e potencialmente devastadoras.
A falta de especialização comprovada não é um risco abstrato; ela se materializa em laudos periciais de baixa qualidade. Um profissional sem a devida profundidade técnica tende a buscar atalhos cognitivos para lidar com a enorme complexidade de um litígio familiar. O atalho mais comum é o reducionismo diagnóstico: em vez de conduzir uma investigação multifatorial, o perito se apega ao conceito de “alienação parental” como uma explicação genérica e superficial para toda e qualquer forma de rejeição da criança.
Essa simplificação é a marca do despreparo. Um perito verdadeiramente qualificado sabe que a rejeição é multideterminada, podendo ser causada por uma parentalidade disfuncional, negligência, violência ou pelo intenso conflito de lealdade a que a criança é submetida. O não especialista, contudo, por não dominar as ferramentas para essa investigação complexa, naturaliza o conflito como um mero “indício de alienação” e desconsidera as demais hipóteses, principalmente a de que a recusa da criança pode ser um legítimo mecanismo de autoproteção.
Essa atuação despreparada é a própria definição de iatrogenia processual: um dano causado pelo agente que deveria promover a cura. Pesquisadores como Brockhausen advertem para a responsabilidade dos profissionais pelos danos causados por uma “atuação inconsistente, despreparada ou equivocada”. A adoção de medidas padronizadas para lidar com a complexidade, segundo a autora, pode “encobrir o não-saber do profissional” e levar a “importantes enganos”2.
Portanto, a exigência de especialização não é um capricho. É a principal barreira contra a produção de laudos que, em vez de elucidar os fatos para o juiz, perpetuam vieses, silenciam crianças e podem validar a manutenção de um ambiente abusivo, traindo a própria finalidade protetiva da perícia.
Mas, afinal, o que define a verdadeira especialização? Ela vai muito além de um título de pós-graduação. Um perito qualificado para atuar em litígios de guarda de alta complexidade demonstra sua expertise através de sua metodologia.
Primeiramente, ele compreende que a lei brasileira exige uma investigação ampla. O art. 5º da lei 12.318/10 estabelece um conteúdo mínimo para o laudo, que inclui entrevistas, análise de documentos dos autos e do histórico do relacionamento, entre outros. Um profissional que se recusa a analisar documentos do processo, por exemplo, sob a alegação de que isso seria uma “prática de advogados”, demonstra um profundo desconhecimento da sua própria função. É precisamente nos autos que podem estar registros de violência doméstica ou abuso infantil, informações cruciais para um diagnóstico diferencial seguro. O uso de múltiplas fontes é a base de uma avaliação robusta, e não uma opção.
Em segundo lugar, a especialização se revela na abordagem intelectual do perito. Conforme descreve Artur Capes, o bom perito-cientista opera sob o “princípio da máxima inclusão”, que é o dever de considerar todas as hipóteses plausíveis para o fenômeno, em vez de se fixar em uma única ideia preconcebida3. Ele não presume a alienação; ele investiga a alienação, o abuso, a negligência, o conflito de lealdade e a parentalidade de ambos os genitores, buscando elementos que confirmem ou afastem cada uma dessas possibilidades.
Por fim, a qualificação é demonstrada pela capacidade de diferenciar nuances, como um comportamento genuinamente protetor de um pai ou mãe de uma conduta manipuladora. Requer formação continuada, supervisão e um profundo conhecimento teórico e prático. A “aptidão comprovada” não se resume a um currículo estático; é um conjunto de competências em constante atualização, alinhado à complexidade da natureza humana e dos conflitos familiares.
A conclusão é inadiável: o Brasil possui as leis necessárias para exigir a qualificação pericial, mas falha em sua aplicação. Para reverter esse quadro e alinhar a prática à norma, a responsabilidade deve ser compartilhada e a ação, imediata.
O primeiro passo é o reconhecimento de que a “aptidão comprovada” precisa de critérios mais objetivos. Não basta um título de doutorado se o profissional nunca atuou em casos de alienação parental; por outro lado, anos de experiência comprovada em varas de família, aliados a cursos específicos, podem habilitar substancialmente um perito. Os próprios profissionais podem requerer certidões que comprovem sua atuação prévia em casos semelhantes, oferecendo um parâmetro claro de sua experiência prática ao juízo.
Nesse cenário de fiscalização incipiente, o papel do advogado torna-se central. Ele deve ser o guardião da qualidade técnica, o “fiscal da qualificação” do perito nomeado pelo juiz. É seu dever ético e processual impugnar um currículo deficiente que não demonstre a especialização exigida pelo CPC e pela lei da alienação parental. Conhecer a metodologia correta e a abordagem multifatorial é o que permite ao advogado identificar um laudo reducionista e proteger seu cliente de conclusões equivocadas.
Por fim, cabe ao Poder Judiciário assumir sua responsabilidade. Os juízes devem exercer um controle mais rigoroso no ato da nomeação e abandonar a recepção acrítica dos laudos. Acolher 93% dos pareceres psicológicos4, mesmo diante de falhas técnicas evidentes, não é delegar, é abdicar da função de julgar com segurança.
As mortes de Kayden e Piqui nos deixaram uma lição trágica, mas clara: a segurança de uma criança em um tribunal não pode depender da sorte. Ela precisa estar alicerçada na ciência, na ética e na competência comprovada. O diploma, por si só, não basta. É hora de o Brasil levar a sério suas próprias leis e exigir que apenas os verdadeiramente especializados decidam o futuro de suas crianças.
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1 VEIGA, Carina; VIÉGAS, Lygia de Sousa; CARDOSO, Fernanda Schaefer. Alienação parental nas varas de família: avaliação psicológica em debate. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, v. 71, n. 1, p. 68-84, 2019.
2 BROCKHAUSEN, Tamara. SAP e Psicanálise no campo Psicojurídico: de um amor exaltado ao dom do amor. 2011. 274 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia. Área de Concentração: Psicologia Clínica) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.
3 CAPES, Artur. O que provar?: a admissibilidade e eficiência da justiça civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2025.
4 Dado obtido em: OLIVEIRA, Ricardo P.; WILLIAMS, Lúcia Cavalcanti de Albuquerque. Estudos Documentais sobre Alienação Parental: Uma Revisão Sistemática. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 41, p. 1-15, 2021. Disponível em: www.scielo.br/pcp.
BROCKHAUSEN, Tamara. SAP e Psicanálise no campo Psicojurídico: de um amor exaltado ao dom do amor. 2011. 274 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia. Área de Concentração: Psicologia Clínica) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011
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COLORADO. Title 14: Dissolution of Marriage - Parental Responsibilities. Section 14-10-127.5: Joint custody. In: Justia Law. 2022. Disponível em: https://law.justia.com/codes/colorado/title-14/dissolution-of-marriage-parental-responsibilities/article-10/section-14-10-127-5/. Acesso em: 9 ago. 2025.
LUCIANO, Lilia. A bittersweet victory in the fight for family court reform. ABC10, 24 ago. 2018. Disponível em: https://www.abc10.com/article/news/local/a-bittersweet-victory-in-the-fight-for-family-court-reform/103-587411779. Acesso em: 7 ago. 2025.
KELLY, Joan B.; JOHNSTON, Janet R. The alienated child: a reformulation of Parental Alienation Syndrome. Family Court Review, v. 39, n. 3, p. 249-266, jul. 2001.
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