1. Introdução
O fornecimento de energia elétrica, por sua natureza de serviço público essencial, integra o núcleo das prestações indispensáveis à efetivação da dignidade da pessoa humana e ao exercício de outros direitos fundamentais, como saúde, educação e trabalho. A Constituição da República, ao estabelecer no art. 5.º, XXXII, que o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor, e no art. 170, V, que a ordem econômica observará o princípio da defesa do consumidor, elevou a tutela do destinatário final de bens e serviços a patamar constitucional, vinculando tanto a atuação estatal quanto a conduta dos agentes econômicos privados.
Nesse contexto, o CDC, concebido como microssistema de ordem pública e interesse social, incide plenamente sobre as relações entre concessionárias de energia elétrica e usuários, ainda que estas sejam simultaneamente regidas por normas setoriais emanadas da ANEEL - Agência Nacional de Energia Elétrica. A convivência desses dois regimes normativos exige uma interpretação sistemática e teleológica, em que prevaleça sempre a norma mais favorável ao consumidor, especialmente diante de conflitos aparentes de regras.
As práticas de cobrança abusiva nesse setor - que vão desde o repasse indevido de perdas não técnicas até a revisão tarifária sem transparência - evidenciam a persistência de condutas incompatíveis com a boa-fé objetiva, a lealdade contratual e a função social do serviço público. Tais práticas, ao transferirem ao consumidor riscos e custos que não lhe competem, fragilizam o equilíbrio contratual e afrontam princípios constitucionais e legais que regem a prestação de serviços essenciais.
Este trabalho tem por objetivo examinar, à luz da legislação vigente e da doutrina especializada, as principais hipóteses de abusividade nas cobranças de energia elétrica e os parâmetros de controle judicial e administrativo aplicáveis. Busca-se, ainda, integrar a análise técnica da regulação setorial com a principiologia protetiva do Direito do Consumidor, em um exercício de diálogo de fontes que reforce a tutela jurisdicional e inibitória dessas condutas.
A investigação pauta-se na compreensão de que a efetividade dos direitos do consumidor no setor elétrico não se esgota na reparação individual de danos, mas demanda a construção de um ambiente regulatório e contratual transparente, proporcional e acessível ao usuário, de modo a compatibilizar a sustentabilidade econômico-financeira do serviço com a proteção integral do destinatário final. Nesse sentido, a atuação coordenada entre o Poder Judiciário, a Administração Pública e os órgãos de defesa do consumidor revela-se indispensável para assegurar que a promessa constitucional de defesa do consumidor se converta em realidade concreta no âmbito do fornecimento de energia elétrica.
2. Fundamentos jurídicos da proteção contra cobranças abusivas de energia elétrica
2.1. O CDC e a regulação setorial da ANEEL
A disciplina jurídica das relações entre concessionárias de energia elétrica e usuários finais, no ordenamento brasileiro, revela um diálogo necessário e, por vezes, tenso entre dois microssistemas normativos: de um lado, o CDC (lei 8.078/1990), concebido como lei de ordem pública e interesse social, destinado a assegurar a proteção do consumidor enquanto sujeito de direitos fundamentais; de outro, o conjunto de normas setoriais emanadas pela ANEEL - Agência Nacional de Energia Elétrica, especialmente as resoluções normativas que regulam medição, faturamento, cobrança e revisão tarifária no âmbito do serviço público de distribuição de energia.
Desde a ADIn 2.591, o STF consolidou a compreensão de que as instituições financeiras, e, por identidade de razão, todos os fornecedores de serviços públicos ou privados, estão submetidos ao regime jurídico protetivo do consumidor, reconhecendo-se a aplicação plena e cumulativa do CDC às atividades reguladas. A mesma lógica se estende às concessionárias de energia elétrica, que não se eximem de cumprir os deveres de transparência, informação adequada, lealdade contratual e observância da boa-fé objetiva, ainda que atuem sob regime de concessão e sujeitas à regulação técnica específica.
O art. 7º, caput e parágrafo único, do CDC consagra expressamente o diálogo de fontes: a disciplina protetiva não exclui a incidência de outras normas mais favoráveis, podendo conviver com a regulação setorial sempre que esta não afronte os direitos básicos do consumidor (art. 6º do CDC). Assim, em caso de conflito, prevalece a norma de cunho protetivo mais benéfica ao destinatário final, dada a natureza de ordem pública das disposições consumeristas.
A RN 414/10 da ANEEL (e sua posterior consolidação pela RN 1.000/21) estabelece parâmetros técnicos e procedimentais sobre faturamento, estimativa de consumo, cobrança de valores pretéritos, elaboração de TOI - Termos de Ocorrência de Irregularidade e repasse de perdas não técnicas. Contudo, tais regulamentos não podem reduzir o nível de proteção conferido pelo CDC, notadamente quanto à inversão do ônus da prova (art. 6.º, VIII), à vedação de práticas abusivas (art. 39) e à repetição do indébito em dobro (art. 42, parágrafo único).
Essa perspectiva impõe compreender que a regulação setorial tem função complementar e integrativa, jamais substitutiva ou restritiva, do microssistema consumerista. As normas da ANEEL podem estabelecer requisitos técnicos e formais, mas não se sobrepõem à principiologia protetiva, nem afastam a atuação do Poder Judiciário na tutela dos direitos do consumidor, especialmente diante de condutas que, sob o prisma técnico, possam ser justificadas, mas que, sob a ótica material do CDC, revelem-se desproporcionais, abusivas ou incompatíveis com a função social do serviço público essencial.
A harmonização entre o CDC e a regulação setorial exige, portanto, uma interpretação teleológica e conforme a Constituição, que reconheça no serviço de energia elétrica - essencial à dignidade humana e à cidadania - não apenas uma prestação técnica, mas também uma relação de consumo permeada por direitos fundamentais. Nesse cenário, a atuação jurisdicional e administrativa deve buscar o equilíbrio entre a segurança técnica e a proteção efetiva do consumidor, evitando que a especialidade regulatória se converta em escudo para a prática de abusos ou para a limitação indevida de garantias consagradas em lei Federal e na Constituição da República.
2.2. Prevalência das normas consumeristas frente a normas setoriais
A convivência entre o microssistema de proteção do consumidor e a regulação setorial específica, especialmente no campo da distribuição de energia elétrica, impõe o exame criterioso da hierarquia normativa e dos princípios constitucionais que orientam essa interação. O CDC (lei 8.078/1990) foi concebido como legislação especial e de ordem pública, com status reforçado pela CF/88 (art. 5.º, XXXII, e art. 170, V), a qual determinou expressamente a defesa do consumidor como princípio fundamental da ordem econômica e como direito fundamental do cidadão.
No caso brasileiro, essa supremacia decorre não apenas de uma escolha legislativa, mas de um mandamento constitucional que atribui ao CDC natureza inderrogável por atos normativos infralegais ou mesmo por leis setoriais posteriores que reduzam a proteção conferida. Havendo conflito entre a norma regulatória e a norma consumerista, deve prevalecer a solução mais protetiva ao consumidor, em observância ao caráter cogente e indisponível dos direitos previstos no CDC.
A ADIn 2.591 consolidou a compreensão de que, mesmo diante de setores regulados, o CDC mantém aplicabilidade plena, funcionando em regime de complementaridade e prevalência em caso de antinomia material. Essa leitura encontra respaldo no art. 7º, parágrafo único, do CDC, que consagra o diálogo de fontes e a aplicação simultânea de normas, desde que não haja redução do patamar de proteção.
No campo da energia elétrica, a RN 414/10 e a RN 1.000/21 da ANEEL disciplinam aspectos técnicos e procedimentais, como faturamento, cobrança por estimativa, apuração de irregularidades (TOI) e revisão tarifária. Contudo, quando tais atos administrativos colidem com garantias processuais e materiais asseguradas pelo CDC - como a inversão do ônus da prova (art. 6.º, VIII), a vedação de práticas abusivas (art. 39) e a repetição em dobro do indébito (art. 42, parágrafo único) - deve prevalecer a disciplina consumerista.
A função da regulação setorial, nessa perspectiva, é integrativa e não restritiva: as normas técnicas complementam o regime jurídico de consumo, mas não podem servir de escudo para práticas lesivas ou desproporcionais ao consumidor. A prevalência do CDC se impõe sempre que a norma setorial limitar direitos fundamentais do usuário, restringir o controle judicial sobre a prestação do serviço ou relativizar princípios como a transparência, a informação adequada e a boa-fé objetiva.
Assim, a interpretação teleológica e conforme à Constituição exige que, em caso de conflito, o julgador assegure a máxima efetividade da proteção ao consumidor, reconhecendo que a prestação do serviço de energia elétrica - por seu caráter essencial e vínculo direto com a dignidade da pessoa humana - está sujeita a um patamar normativo que não pode ser rebaixado por regulamentos administrativos, sob pena de ofensa direta à ordem constitucional e ao próprio núcleo essencial dos direitos consumeristas.
2.3. Direitos fundamentais do consumidor e eficácia horizontal nas relações privadas
O reconhecimento constitucional do consumidor como sujeito de direitos fundamentais, promovido pela CF/88 (art. 5.º, XXXII, e art. 170, V), inaugura uma perspectiva que transcende a proteção meramente legal para alçá-la ao patamar de garantia constitucional. Tal opção legislativa e política não apenas impõe ao Estado o dever de implementar políticas públicas protetivas, como também projeta efeitos diretos nas relações privadas, fenômeno identificado pela doutrina como eficácia horizontal dos direitos fundamentais (Drittwirkung).
A eficácia horizontal traduz-se na irradiação dos princípios constitucionais - em especial o da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, CF/1988) - para o âmbito das relações entre particulares, condicionando a liberdade contratual e limitando o exercício do poder econômico nas relações de consumo. Essa construção, fortemente influenciada pela doutrina alemã, parte da premissa de que direitos fundamentais não se exaurem na dimensão vertical, entre indivíduo e Estado, mas se projetam como vetores interpretativos e limitadores nas relações entre particulares, notadamente quando há assimetria de poder e vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica.
No microssistema do CDC, essa projeção se manifesta de modo explícito na previsão de normas de ordem pública e interesse social (art. 1º, CDC), na vedação de cláusulas abusivas (art. 51), na obrigação de informação adequada e clara (arts. 6º, III, e 31) e na imposição de deveres de transparência e boa-fé objetiva ao fornecedor. Tais disposições, por derivarem de mandamento constitucional, são inderrogáveis pela vontade das partes e não podem ser afastadas por normas setoriais menos protetivas.
No contexto do fornecimento de energia elétrica, a eficácia horizontal adquire relevância prática. A prestação de serviço público essencial, quando contratada sob regime de concessão, estabelece uma relação jurídica de consumo marcada por evidente desigualdade técnica e econômica. Nessa relação, a aplicação direta dos direitos fundamentais impõe ao fornecedor a observância de padrões que assegurem ao consumidor, entre outros, o direito ao contraditório na lavratura de TOI - Termos de Ocorrência de Irregularidade, a proibição de cortes arbitrários ou por débitos pretéritos, e a devolução em dobro de valores indevidamente cobrados, nos termos do art. 42, parágrafo único, do CDC.
Assim, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais no direito do consumidor concretiza-se como instrumento de reequilíbrio contratual, de limitação de abusos e de reforço do controle judicial sobre a prestação de serviços essenciais. Ela reafirma que a autonomia privada não se exerce no vácuo, mas sob a égide de um sistema jurídico que subordina a liberdade econômica à dignidade humana e à proteção dos vulneráveis, exigindo que, em cada caso concreto, a interpretação e aplicação das normas preservem o núcleo essencial dos direitos do consumidor enquanto titular de direitos fundamentais.
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