1. Introdução
O direito à educação, insculpido no art. 205 da Constituição da República, apresenta-se como fundamento essencial do Estado Democrático de Direito, cujo cumprimento exige do Poder Público não apenas a garantia formal de acesso, mas a efetivação de políticas concretas que assegurem igualdade material no ingresso e na permanência no ensino superior. Entre tais instrumentos, o FIES - Fundo de Financiamento Estudantil, instituído pela lei 10.260/01, ocupa posição de relevo ao viabilizar que estudantes de baixa renda ingressem em instituições privadas de ensino superior mediante condições financeiras diferenciadas.
No entanto, a complexidade social brasileira impôs que o FIES evoluísse de simples mecanismo de crédito educacional para se tornar política pública de múltipla função. Ao lado da democratização do ensino, a legislação passou a prever, no art. 6º-B, mecanismos de abatimento do saldo devedor vinculados à atuação de médicos, enfermeiros e professores em áreas de interesse estratégico para a coletividade. Nesse contexto, o abatimento de 1% ao mês assume significado que transcende a mera redução financeira, constituindo-se em instrumento de valorização profissional e de fortalecimento das políticas de saúde e educação públicas.
A jurisprudência recente dos Tribunais Regionais Federais, da Turma Nacional de Uniformização e, em menor medida, dos Tribunais de Justiça estaduais, consolidou o entendimento de que tal abatimento configura direito público subjetivo dos profissionais contemplados, não podendo ser restringido por omissões administrativas, falhas sistêmicas ou interpretações infralegais. Assim, a questão central não se resume a um debate sobre contratos de financiamento, mas envolve a realização efetiva de direitos fundamentais sociais e a concretização de políticas públicas indutoras.
O presente estudo propõe-se a analisar o abatimento de 1% ao mês da dívida do FIES como expressão normativa de direitos fundamentais, abordando sua base constitucional, sua evolução legislativa, a interpretação conferida pela jurisprudência recente (2023–2025) e os aportes doutrinários que elucidam sua natureza jurídica. Busca-se, assim, oferecer contribuição acadêmica e crítica à compreensão do instituto, destacando seus potenciais de inclusão social e seus riscos de retrocesso diante da instabilidade normativa que historicamente marcou o programa.
2. Marco normativo e fundamentos constitucionais do direito ao abatimento do FIES
2.1. A política pública do FIES como instrumento de concretização do direito fundamental à educação
O FIES - Fundo de Financiamento Estudantil constitui-se em política pública de inequívoca importância na consolidação do direito fundamental à educação, inscrito no art. 205 da Constituição da República de 1988. Trata-se de mecanismo estatal que busca viabilizar o acesso ao ensino superior para parcelas da população desprovidas de recursos econômicos suficientes, reduzindo, assim, desigualdades sociais e ampliando a efetividade do mandamento constitucional de universalização do ensino.
Conforme bem assinala a doutrina contemporânea, o FIES não pode ser compreendido apenas como um programa assistencial, mas sim como instrumento de efetivação de direitos humanos de segunda dimensão, ligados ao dever prestacional do Estado. Nas palavras de Silvana Santos Almeida, “o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), como política pública eficaz no objetivo de viabilizar o direito fundamental ao ensino superior, constitui o escopo desse trabalho. O reconhecimento da educação como direito humano aliado às previsões legais do ordenamento jurídico brasileiro está expressamente previsto na Carta Magna brasileira”.
A configuração do abatimento de 1% ao mês da dívida do FIES para médicos, professores e profissionais de saúde insere-se no bojo desse projeto de promoção social. A previsão legal contida no art. 6º-B da lei 10.260/01, alterada por legislações subsequentes, denota a preocupação do legislador em não apenas expandir o acesso à educação, mas também fomentar a fixação de profissionais em áreas de interesse estratégico para a coletividade, como saúde pública e educação básica. A política pública, portanto, transcende o âmbito individual do financiamento estudantil para atingir finalidades de ordem coletiva, vinculadas ao fortalecimento do SUS - Sistema Único de Saúde e à qualificação do ensino público.
Esse entrelaçamento entre educação e políticas públicas setoriais evidencia que o FIES assume dupla dimensão: de um lado, garante o acesso ao ensino superior; de outro, reforça a consecução de valores constitucionais como igualdade, solidariedade e Justiça social. Nesse sentido, observa Andrea Mara Vieira que “o direito público subjetivo atua como mecanismo jurídico à disposição do estudante-cidadão para garantia do cumprimento da obrigação por parte do Estado”, de modo que a negação ou restrição administrativa indevida ao benefício compromete não apenas direitos individuais, mas também a própria coerência das políticas públicas educacionais.
Portanto, a política do FIES deve ser compreendida como um compromisso estatal com a promoção de direitos fundamentais, cuja concretização não pode ser obstada por interpretações restritivas ou por falhas administrativas. O instituto revela-se, assim, um elo essencial entre o dever constitucional de assegurar educação a todos e a necessidade de fixação de profissionais em setores estratégicos da sociedade brasileira.
2.2. O art. 6º-B da lei 10.260/01 e a previsão legal do abatimento de 1% ao mês
A lei 10.260/01, que instituiu o FIES - Fundo de Financiamento Estudantil, sofreu sucessivas alterações legislativas voltadas à ampliação dos mecanismos de incentivo à permanência de profissionais em áreas consideradas estratégicas para a promoção de direitos sociais. Entre tais inovações, destaca-se a introdução do art. 6º-B, cujo conteúdo consagra o benefício de abatimento mensal de 1% (um por cento) do saldo devedor consolidado do financiamento, incluídos os juros incidentes, para determinadas categorias profissionais.
O dispositivo, em sua redação, contempla: (i) médicos que atuem em equipes de saúde da família oficialmente cadastradas em áreas de difícil provimento; (ii) professores efetivos da rede pública de educação básica; e (iii) médicos, enfermeiros e demais profissionais de saúde que tenham trabalhado no âmbito do SUS durante a vigência da emergência sanitária decorrente da pandemia da Covid-19. A ratio legis, portanto, é clara: vincular a política de financiamento estudantil ao fortalecimento de políticas públicas de saúde e educação, em consonância com a CF/88.
Não se trata, pois, de benefício discricionário, mas de direito subjetivo que se incorpora à esfera jurídica do beneficiário uma vez preenchidos os requisitos normativos. Nesse sentido, a jurisprudência recente tem afirmado que “a ausência de regulamentação específica, por omissão das autoridades competentes, não pode impedir os beneficiários de usufruir do abatimento, o qual representa concreto prejuízo financeiro aos estudantes”. O reconhecimento de que a norma institui verdadeiro direito público subjetivo - e não mera faculdade administrativa - traduz a importância de sua aplicação uniforme pelos órgãos judiciais.
Do ponto de vista teleológico, a previsão do art. 6º-B visa tanto à proteção do direito fundamental à educação quanto à concretização de políticas públicas voltadas à valorização profissional. Como sublinha João Carlos Pereira Silva, “a legislação vigente estabelece um amplo caminhar para que profissionais da saúde e educação possam se beneficiar dos incentivos do FIES, com destaque para a possibilidade de abatimento considerável em suas dívidas”.
Cumpre notar que a lei estabelece limites objetivos para a fruição do benefício, como o tempo mínimo de exercício profissional (um ano para médicos em equipes de saúde da família e professores; seis meses para profissionais atuantes no SUS durante a pandemia). Ainda assim, a interpretação sistemática conduz ao afastamento de restrições infralegais que pretendam restringir a eficácia da norma, pois tais condicionamentos violariam a supremacia da lei e o princípio da legalidade estrita em matéria de concessão de direitos.
Assim, o art. 6º-B deve ser lido como núcleo normativo vinculante, que conjuga a política de financiamento estudantil à promoção de políticas sociais de envergadura constitucional. Sua plena efetividade, portanto, não pode ser condicionada a regulamentos omissos ou a entraves administrativos, cabendo ao Poder Judiciário assegurar o exercício do Direito sempre que demonstrada a atuação profissional nos moldes previstos pela lei.
2.3. A natureza jurídica do benefício como direito subjetivo
A questão central em torno do abatimento de 1% ao mês no saldo devedor do FIES reside na sua natureza jurídica. Indaga-se se o instituto se caracteriza como prerrogativa discricionária da Administração Pública, sujeita à conveniência e oportunidade, ou se se constitui em verdadeiro direito subjetivo dos profissionais contemplados pela lei 10.260/01.
A resposta encontra-se na própria literalidade do art. 6º-B, que utiliza o verbo “poderá” em sua redação inicial. À primeira vista, tal expressão poderia sugerir mera faculdade administrativa. Contudo, a interpretação teleológica e sistemática do dispositivo conduz à conclusão diversa: uma vez preenchidos os requisitos legais, a Administração não dispõe de margem de escolha, mas de dever jurídico de conceder o benefício. O verbo modal “poderá” tem, nesse contexto, natureza vinculada, revelando-se como verdadeira obrigação legal.
A jurisprudência recente consolidou esse entendimento. A Turma Nacional de Uniformização firmou, no Tema 341, a tese de que “é ilegal qualquer restrição infralegal que limite o direito ao abatimento mensal de 1% previsto em lei”. Na mesma linha, o Tribunal Regional Federal da 3ª região reconheceu que “a ausência de regulamentação não pode impedir a fruição de direito subjetivo legalmente previsto”.
A doutrina também enfatiza o caráter cogente da norma. Ivo Nereu Campos sustenta que “o FIES, em sua concepção, é um mecanismo que visa a facilitar o acesso à educação superior, garantindo direitos que devem ser respeitados tanto na esfera administrativa quanto na judicial”. Em outras palavras, o benefício não configura liberalidade estatal, mas expressão da força normativa da Constituição no campo da educação.
A natureza jurídica do abatimento é, portanto, de direito público subjetivo, uma vez que confere ao beneficiário uma pretensão exigível perante o Estado e seus agentes financeiros. Negativas administrativas, mormente quando fundadas em ausência de regulamentação ou falhas sistêmicas (como as reiteradas inconsistências do FIESMED), não afastam o dever de cumprimento da lei. Cabe ao Poder Judiciário atuar como garantidor da eficácia plena da norma, corrigindo as omissões e ilegalidades administrativas que inviabilizam a concretização do direito fundamental à educação.
Essa concepção é reforçada pela interpretação conforme a Constituição: não se trata de mera vantagem patrimonial, mas de instrumento de efetividade dos arts. 6º e 205 da CF/88, que consagram a educação e a saúde como direitos sociais, exigindo do Estado prestações positivas. Logo, a negativa injustificada do abatimento representa não apenas ofensa à legalidade, mas também violação direta à Constituição, apta a justificar a tutela jurisdicional imediata.
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