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O reconhecimento constitucional do direito territorial das comunidades quilombolas

Análise do direito territorial quilombola à luz do art. 68 do ADCT, destacando propriedade fraternal, multiculturalismo e efetividade constitucional.

17/11/2025

1. Introdução

O reconhecimento dos direitos territoriais das comunidades quilombolas, positivado no art. 68 do ADCT - Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, constitui um dos marcos mais expressivos do constitucionalismo de 1988. Ao assegurar a essas comunidades a propriedade definitiva das terras que ocupam, o constituinte rompeu com séculos de invisibilidade jurídica e instaurou um paradigma de reparação histórica, que projeta a dignidade da pessoa humana e a diversidade cultural como valores centrais da ordem constitucional.

A temática se insere em um horizonte mais amplo, marcado pela evolução do constitucionalismo: do liberal, centrado na liberdade individual e na igualdade formal; ao social, que acrescentou a busca pela igualdade material; culminando no fraternal, que inaugura a proteção do direito à diferença. Nesse contexto, a propriedade quilombola não pode ser compreendida apenas como relação dominial, mas como instituto jurídico-cultural que assegura a reprodução social, econômica e simbólica dessas comunidades.

O art. 68 do ADCT articula-se intimamente com os arts. 215 e 216 da Constituição, que garantem o exercício dos direitos culturais e reconhecem como patrimônio cultural brasileiro os bens materiais e imateriais portadores de referência à identidade dos grupos formadores da sociedade. A titulação quilombola, portanto, não é mero ato administrativo, mas instrumento de preservação de valores constitucionais estruturantes, entre os quais se destacam a pluralidade cultural e a função social da propriedade.

A discussão contemporânea, ademais, não pode prescindir do diálogo com a teoria dos direitos humanos. O embate entre universalismo e relativismo cultural encontra no reconhecimento quilombola uma via superadora: a do multiculturalismo emancipatório, tal como formulado por Boaventura de Sousa Santos, que afirma a necessidade de diálogo intercultural e da hermenêutica diatópica como método de afirmação da dignidade pela diferença.

A jurisprudência dos tribunais brasileiros tem desempenhado papel decisivo na consolidação desse direito. O STF, na ADI 3239, declarou a constitucionalidade do decreto 4.887/03, consagrando a autoatribuição como critério legítimo de identificação. O Superior Tribunal de Justiça, em julgados recentes, afastou óbices formais como a caducidade dos decretos expropriatórios. E os Tribunais Regionais Federais vêm impondo prazos e sanções ao Executivo, diante da morosidade na titulação, reconhecendo a omissão estatal como inconstitucional.

O presente artigo tem, pois, como objetivo central demonstrar que a efetividade do art. 68 do ADCT depende da leitura conjugada dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da função social da propriedade e da preservação cultural, em diálogo com a Convenção 169 da OIT. Procura-se sustentar que a titulação quilombola é mais do que garantia possessória: é condição de existência e de reconhecimento da diferença como valor constitucional, cuja proteção traduz a própria essência do Estado Democrático de Direito de 1988.

2. Fundamentos constitucionais e infraconstitucionais do direito territorial quilombola

2.1. A evolução do constitucionalismo: Liberal, social e fraternal

A narrativa da evolução do constitucionalismo revela-se indispensável para a correta compreensão do estatuto jurídico dos direitos territoriais quilombolas. Três grandes paradigmas se sucedem na tradição ocidental - o liberal, o social e o fraternal -, cada qual portador de uma gramática própria de direitos e de uma concepção específica acerca do papel do Estado e da propriedade.

O constitucionalismo liberal, forjado no bojo das revoluções americana (1776) e francesa (1789), operou como ruptura com o absolutismo monárquico, firmando-se sobre os valores da liberdade individual, da igualdade formal e da propriedade privada concebida em sua feição absoluta. A célebre Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 já enunciava que a sociedade somente teria Constituição quando assegurados os direitos e estabelecida a separação dos poderes. O modelo liberal, porém, logo revelou sua insuficiência: a igualdade, entendida apenas em sentido formal, mascarava as desigualdades materiais e deixava intocado o quadro de opressões estruturais, inclusive a escravidão.

O constitucionalismo social, emergente no século XX e consolidado após a Revolução Industrial, buscou responder às demandas por justiça distributiva. A igualdade foi ressignificada em seu aspecto material, legitimando a intervenção estatal para corrigir distorções econômicas e assegurar prestações positivas aos hipossuficientes. Nesse contexto, o Estado passou a desempenhar funções ativas, seja mediante a criação de direitos sociais, seja por meio da limitação da propriedade privada em prol de sua função social. Contudo, ainda aqui, os direitos das minorias étnicas e culturais permaneciam invisibilizados, prevalecendo um viés integracionista que admitia a diferença apenas para assimilá-la ao padrão hegemônico.

É no constitucionalismo fraternal, que se consolida no final do século XX e encontra expressão paradigmática na Constituição de 1988, que se reconhece a diferença como valor em si, e não como anomalia a ser corrigida. Como sintetiza Carlos Ayres Britto, trata-se da fase em que a fraternidade se converte em vetor normativo, abrindo espaço às ações afirmativas e ao reconhecimento dos grupos historicamente marginalizados como sujeitos de direitos plenos. A fraternidade, nesse cenário, não é mero apelo ético, mas categoria jurídica que informa a interpretação dos direitos fundamentais, exigindo respeito às identidades culturais e étnicas como forma de realização da dignidade humana.

É precisamente nesse estágio que se insere o art. 68 do ADCT. O constituinte, atento ao passado de exclusão e à necessidade de reparação histórica, elevou à condição de norma fundamental o reconhecimento da propriedade definitiva das terras ocupadas por remanescentes quilombolas. Assim, a Constituição de 1988 não se limita a corrigir desigualdades econômicas, mas assegura a existência coletiva de grupos diferenciados, reconhecendo-lhes a diferença e protegendo-a contra práticas assimilacionistas.

Portanto, a trajetória que vai do liberal ao fraternal demonstra a transição de um paradigma de igualdade formal, para outro de igualdade material, culminando em uma concepção de igualdade inclusiva, que protege a diferença e legitima a pluralidade. É neste último horizonte que se inscrevem os direitos quilombolas, não como concessões, mas como expressão necessária da ordem constitucional inaugurada em 1988.

2.2. A propriedade fraternal e o direito à diferença

O paradigma do constitucionalismo fraternal, ao superar a visão integracionista do Estado social, introduz uma concepção renovada de propriedade: não mais vista apenas como instituto individual patrimonial, mas como instrumento de realização da justiça social e de afirmação identitária de grupos coletivos. A “propriedade fraternal” emerge, nesse sentido, como figura que incorpora a dimensão comunitária, cultural e simbólica da terra, especialmente quando se trata de minorias étnicas historicamente marginalizadas, como os quilombolas.

O direito à diferença, que constitui desdobramento lógico do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, CF/88), projeta-se sobre o regime jurídico da propriedade ao reconhecer que determinados grupos não podem ser tratados segundo padrões uniformizadores. A diversidade cultural, alçada a valor constitucional pelos arts. 215 e 216 da Constituição, reclama soluções próprias que assegurem a continuidade das formas singulares de existência. A titulação coletiva, imprescritível e pró-indiviso das terras quilombolas, como prevista no decreto 4.887/03, exprime com clareza esse redirecionamento: protege-se não a acumulação patrimonial, mas a permanência de práticas e modos de vida que integram o patrimônio cultural brasileiro.

Na lição de José Afonso da Silva, “o reconhecimento dos direitos territoriais das comunidades quilombolas representa um imperativo constitucional para a concretização da justiça social e a promoção da igualdade material, visando a reparar séculos de exclusão e discriminação”. Ao atribuir-lhes o domínio coletivo das terras ocupadas, o constituinte não apenas restituiu uma base material de subsistência, mas também afirmou o direito à diferença como categoria constitucional autônoma, que deve ser preservada frente a pressões homogeneizadoras.

A jurisprudência também tem consagrado tal entendimento. O TRF da 5ª região, no julgamento da Apelação 0800647-19.2022.4.05.8502 (j. 3/10/2023), reconheceu que a demora na titulação de terras quilombolas viola não apenas o direito à propriedade previsto no art. 68 do ADCT, mas igualmente o direito à preservação da identidade cultural, cuja proteção decorre diretamente dos arts. 215 e 216 da Constituição.

Assim, a propriedade fraternal - enquanto categoria normativa que conjuga função social e direito à diferença - constitui verdadeira realização da fraternidade constitucional, assegurando às comunidades quilombolas não apenas a posse de um território, mas sobretudo o reconhecimento de sua identidade e de sua dignidade.

2.3. Função social da propriedade e dignidade da pessoa humana

A cláusula da função social da propriedade, inscrita no art. 5.º, XXIII, e detalhada no art. 186 da Constituição, desloca o centro de gravidade do instituto da propriedade do interesse meramente individual para a realização de valores coletivos e comunitários. Em vez de assegurar poderes absolutos ao titular, impõe-lhe deveres orientados ao bem comum, à justiça social e à preservação ambiental. A norma não é periférica: integra o núcleo axiológico do constitucionalismo de 1988, servindo como instrumento de mediação entre a ordem econômica e a dignidade da pessoa humana, fundamento maior do Estado brasileiro (art. 1.º, III).

No caso das comunidades quilombolas, a função social adquire contornos próprios. A terra não é vista apenas como recurso econômico, mas como espaço de reprodução física, social e cultural, locus de memória coletiva e identidade étnica. É justamente esse vínculo singular que faz da titulação quilombola - coletiva, imprescritível e pró-indiviso - a expressão mais acabada da função social da propriedade, em diálogo direto com o direito fundamental à dignidade. Negar o território a essas comunidades significa negar-lhes a própria condição de sujeitos históricos e culturais.

O STF, na ADI 3239, reafirmou que o art. 68 do ADCT deve ser interpretado em harmonia com a função social da propriedade, pois a titulação quilombola não representa apenas um ato de transferência dominial, mas medida de proteção da diversidade cultural brasileira, em consonância com os arts. 215 e 216 da Carta de 1988.

A doutrina converge para esse ponto. Carmen Lúcia Antunes Rocha distingue entre direito de propriedade - regime jurídico que disciplina as faculdades do titular sobre o bem - e direito à propriedade, que consiste na possibilidade atribuída pelo ordenamento a certos grupos de virem a ser proprietários em razão de critérios jurídicos específicos. No plano quilombola, essa distinção é essencial: o constituinte reconheceu um direito à propriedade fundado na reparação histórica, que transcende o domínio privado individual para assumir função coletiva e cultural.

A jurisprudência contemporânea reforça essa leitura. O TRF da 6ª região, ao julgar o AI 6007893-91.2024.4.06.0000 (j. 10/4/2025), manteve a suspensão de empreendimento minerário em razão da ausência de consulta prévia a comunidade quilombola. O acórdão sublinhou que a função social da propriedade somente se cumpre quando respeita a integridade territorial e cultural das comunidades tradicionais, ligando a proteção da terra diretamente ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Portanto, dignidade e função social não são categorias autônomas ou paralelas: entrelaçam-se numa mesma lógica constitucional que, no âmbito das comunidades quilombolas, exige que o território seja preservado como condição de possibilidade da existência coletiva, cultural e histórica desse povo. A propriedade, aqui, revela sua dimensão fraternal, cuja razão última é a proteção da pessoa humana em sua concretude comunitária.

Leia o artigo na íntegra.

Paulo Vitor Faria da Encarnação
Mestre em Direito Processual. UFES. paulo@santosfaria.com.br. Advogado. OAB/ES 33.819. Santos Faria Sociedade de Advogados.

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