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Da desconsideração da personalidade jurídica à corresponsabilização: A necessária ampliação do incidente

O artigo expande o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, propondo corresponsabilização também de terceiros naturais usados para blindagem patrimonial.

20/8/2025
  1. – Introdução – a problemática

Em artigo escrito em homenagem ao professor Fábio Ulhoa Coelho, o processualista Cassio Scarpinella Bueno oferece uma ideia que merece a atenção da comunidade jurídica, escrevendo sobre o incidente de desconsideração da personalidade jurídica:

“Não vejo razão, a despeito do nome e remissões (indiretas) ao específico tipo de direito material feito pelo § 1º do art. 133 e pelo § 4º do art. 134 do CPC, que o incidente aqui examinado seja circunscrito a hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica ‘propriamente ditas’.”1

O jurista prossegue apontando ser correto “entender que outras causas de corresponsabilização de sócios, que não guardam relação ou que se confundam com a desconsideração da personalidade jurídica (...) também podem ser discutidas ao longo do processo, no incidente cognitivo disciplinado pelos arts. 133 a 137.”

Há uma multitude de argumentos sólidos amparando a conclusão do professor, mas nesse breve estudo pretendemos expor alguns que justifiquem a expansão de sua proposta para além da figura do sócio.

Para tanto, comecemos desenhando uma situação em que a interpretação restritiva do disposto no texto legal se revela insuficiente para coibir a lesão ao direito do credor.

Imaginemos uma execução movida contra César e Marcelo, devedores e únicos sócios da fictícia Serviços Genéricos Ltda.. No curso do processo, bens não são encontrados, tentativas de bloqueio de contas bancárias são infrutíferas

Você, credor, conclui pela plausibilidade da hipótese de confusão patrimonial: os devedores devem estar utilizando sua empresa como verdadeira carteira para o pagamento de suas despesas pessoais. Decide, então, instaurar o IDPJ na modalidade de desconsideração inversa e perseguir as provas necessárias durante a instrução.

Emprestemos um elemento fantástico à narrativa e digamos que foi deferida a análise de toda a contabilidade da pessoa jurídica, incluindo o exame de sua movimentação bancária, revelando uma pequena margem de lucro repassada aos sócios e nenhum valor a título de pró-labore.

O montante recebido repassado é incongruente com o volume de negócios e faturamento da Serviços Genéricos Ltda., mas insuficiente para concluir pela configuração das hipóteses previstas no art. 50 do Código Civil.

Examinando com cuidado o fluxo de caixa da desconsideranda, são identificadas duas operações recorrentes descritas como “consultoria empresarial” prestadas por César Júnior e Marcelo Filho. Os honorários fixados são significativos e correspondem ao que se esperaria que seus genitores recebessem à frente da empresa.

Relembrando que o art. 50 do Código Civil, com a redação dada pela lei 13.876 de 2019, prevê a desconsideração da personalidade jurídica “para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.”

Neste cenário, os aparentes prestadores de serviço não são sócios, nem de fato (sócios ocultos ou aparentes2), administradores ou pessoas jurídicas que poderiam ser incluídas no incidente pela formação de grupo econômico. Por sua vez, os devedores que seriam indiretamente beneficiados não mantêm patrimônio suficiente para satisfazer a obrigação exequenda.

Indaga-se, então, qual alternativa resta ao credor para superar essa engenharia de blindagem patrimonial? A resposta, entendemos, decorre naturalmente da ideia proposta pelo professor Cassio Scarpinella Bueno.

  1. – Quando o veículo da fraude é uma pessoa natural desvinculada do quadro societário

Como se infere, a interpretação literal dos dispositivos relativos à desconsideração da personalidade jurídica não oferece solução aparente para o entrave. O direito, contudo, não está limitado às respostas óbvias, nem restrito à leitura isolada de diplomas normativos.

Em nosso caso identificamos duas vias possíveis para a recuperação do crédito: a inclusão da Serviços Genéricos Ltda. no polo passivo da execução via desconsideração inversa ou dos filhos dos sócios, ostensivamente “consultores” sem vínculo direto com a pessoa jurídica.

Há um argumento sólido para que reputemos a contratação suspeita esteja inserta na classificação de “outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial”, conforme art. 50, § 2º, III do Código Civil.

A amplitude da linguagem legislativa reclama a busca por parâmetros aptos a traduzir o conceito de descumprimento vis-à-vis a multitude de técnicas diuturnamente desenvolvidas para garantir o sucesso da blindagem patrimonial.

Poder-se-ia arguir que as regras de conduta aplicáveis às sociedades anônimas, especificamente na forma dos arts. 117 e 245 da lei 6.404/1976 que impõem ao acionista controlador ou administrador o dever de observar condições razoáveis de mercado na condução dos negócios sob sua responsabilidade.

A norma reputa como sendo exercício abusivo de poder do controlador “contratar com a companhia, diretamente ou através de outrem, ou de sociedade na qual tenha interesse, em condições de favorecimento ou não equitativas” (art. 117, §1º, alínea f).

Ao administrador é vedado “em prejuízo da companhia, favorecer sociedade coligada, controladora ou controlada, cumprindo-lhes zelar para que as operações entre as sociedades, se houver, observem condições estritamente comutativas, ou com pagamento compensatório adequado” (art. 245).

Conquanto estas regras não sejam aplicáveis prima facie às sociedades limitadas, a mens legis ecoa orientação do art. 113, §1º, II do Código Civil que orienta a interpretação dos negócios jurídicos, impondo-se a atribuição do sentido que “corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio”.

Para tanto, incumbirá ao credor utilizar a fase instrutória do incidente de desconsideração da personalidade jurídica para avaliar a higidez daquelas contratações, assistindo-lhe nesta empreitada a previsão do art. 380 do CPC que imputa ao terceiro, em relação a qualquer causa: (i) informar ao juiz os fatos e as circunstâncias de que tenha conhecimento; e (ii) exibir coisa ou documento que esteja em seu poder.

O parágrafo único do dispositivo autoriza a determinação, pelo juiz, de medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias para compelir o cumprimento da ordem de prestação de informações ou exibição de documentos, além da imposição de multa.

Retomemos nosso caso hipotético: você, credor, suspeitando da higidez daquelas contratações, postula pela intimação de César Júnior e Marcelo Filho para que elucidem e comprovem a efetiva prestação de serviços.

Os elementos reunidos com as explicações oferecidas, então, deverão ser contrapostos às condições normais de mercado para a atividade em circunstâncias compatíveis.

Contudo, mesmo que reconhecida a violação da autonomia patrimonial da Serviços Genéricos Ltda., as pessoas utilizadas como vetores do desvio permanecem alheias à estrutura societária e intocadas pela desconsideração daquela personalidade jurídica.

É relevante observar que a modalidade expansiva da desconsideração não alcança o problema posto, porquanto, na lição de Otávio Joaquim Rodrigues Filho3:

“Contudo, em termos de responsabilização de terceiros, se estes forem absolutamente estranhos à sociedade e não se constituírem nem ao menos seus sócios ocultos ou sociedades do mesmo grupo (de fato ou de direito), a responsabilização deve ser obtida por outras formas, que, como veremos, não implicam a desconsideração da personalidade, porque, apesar da prática ilícita ter envolvido os membros da pessoa jurídica, os terceiros não se escondem atrás do aparato social, nem sequer se constituem seus sócios (ocultos ou não) ou administradores; as técnicas sancionatórias a serem empregadas devem ser outras, conforme a hipótese concreta.”

Neste artigo deixamos de indagar qual seria a via tradicionalmente vista como adequada neste caso para, ao invés disso, propor que o incidente de corresponsabilização defendido no artigo do professor Cassio deve abarcar também a hipótese de superação da arquitetura de blindagem que inclua terceiros não caracterizados como sócios ocultos ou de fato.

Dito de outro modo, colocado diante de situação evidenciada de simulação que resulte na transferência de ativos para terceiros completamente desvinculados da estrutura societária, deve o julgador privilegiar a eficácia da tutela jurisdicional mesmo que a corresponsabilização decorra da relação entre pessoas físicas.

Isso porque, em termos práticos, a autonomia patrimonial da pessoa natural não difere daquela atribuída por ficção às sociedades empresariais. Ou ainda, como sustentado por Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias, a personalidade jurídica não deve ser compreendida como atributo exclusivo de pessoas jurídicas:

“De maneira mais realista possível e próxima da influência dos direitos fundamentais constitucionais, é possível (aliás, é necessário) perceber uma nova ideia de personalidade jurídica. Com esteio em avançada visão civil-constitucional, a personalidade jurídica é o atributo reconhecido a uma pessoa (natural ou jurídica) para que possa atuar no plano jurídico (titularizando as mais diversas relações) e reclamar uma proteção jurídica mínimo, básica, reconhecida pelos direitos da personalidade”4.

Aliada tal interpretação à noção de um incidente de corresponsabilização, a problemática ganha novos contornos e dá ensejo à seguinte indagação: por qual motivo a solução processual para o abuso da autonomia patrimonial estaria restrito às pessoas jurídicas se identificada a exploração do mesmo atributo por pessoas naturais?

Todos os elementos autorizadores da corresponsabilização estão inseridos no incidente, destacadamente o respeito ao contraditório e ampla defesa via irrestrita fase instrutória, restando resguardada a garantia constitucional do devido processo legal.

Isto pois, da mesma maneira que uma pessoa jurídica, instrumento para segregar riscos pela separação das esferas patrimoniais dos sócios e sociedade, não pode ser utilizada para lesar credores ou para a prática de atos ilícitos, a autonomia patrimonial e capacidade jurídica da pessoa natural também não deve ser utilizada para tais finalidades, o que configura inequívoco abuso de direito.

Ademais, para instrumentalizar a responsabilização da pessoa natural por dívida de outra pessoa natural, a instauração de incidente próprio para tanto, garantindo o exercício do contraditório e ampla defesa, também se revela possível.

Afinal, consoante sugerido, a utilização abusiva das características inerentes à “personalidade jurídica”, como entendida por Rosenvald e Farias, da pessoa natural para a blindagem de bens de outra pessoa natural não difere em essência ou conteúdo dos atos coibidos pelo incidente regrado nos arts. 133 a 137 do CPC.

  1. Conclusão – Uma rosa por qualquer outro nome

Em derradeira análise, a porta aberta pelo texto do professor Cassio Scarpinella Bueno revela campo fértil e oportuno para que repensemos os limites processuais frente ao sempre inovador animus fraudandi.

A garantia de que nenhuma lesão ou ameaça de lesão a direito deixará de ser apreciada pelo Poder Judiciário é insuficiente para concretizar os ideais de justiça insculpidos no sistema processual contemporâneo. Uma vez que o instituto veículo do abuso é a autonomia patrimonial, pouco deve importar se seu titular é uma pessoa jurídica ou natural, porquanto o resultado danoso é rigorosamente o mesmo.

No exemplo destacado neste breve trabalho, vimos um contrato simulado inserido ostensivamente na regular atividade empresarial que justificaria a instauração inicial do incidente de desconsideração da personalidade jurídica que, fatalmente, pouco avançaria o propósito de retificar o dano ocasionado pelo desvio.

Havendo outras técnicas de blindagem patrimonial mais ou menos sofisticadas possam dispensar a etapa vinculada à empresa, torna-se premente a aplicação do conceito de incidente de corresponsabilização para coibir e enfrentar o uso abusivo de um traço comum às pessoas jurídicas e naturais.

_________

1 BUENO, Cassio Scarpinella. O Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica para além da desconsideração: uma homenagem ao professor Fabio Ulhoa Coelho. Direito Empresarial e suas Interfaces – Homenagem a Fábio Ulhoa Coelho – Vol. IV. São Paulo: Quartier Latin, 2022. Págs. 413/429.

2 Termo sugerido por Guilherme Setoguti J. Pereira e Daniel Magalhães: “Tal figura pode receber várias terminologias, como sócio oculto, sócio indireto ou sócio adjunto. Para o presente estudo, adotar-se-á o termo sócio de fato, por entendermos ser tal nomenclatura a mais adequada, considerando que o sócio de fato pode atuar tanto de forma aparente quanto oculta” (PEREIRA, Guilherme Setoguti J. e MAGALHÃES, Daniel. Desconsideração “Expansiva” da Personalidade Jurídica e Responsabilização dos Sócios de Fato. Desconsideração da Personalidade Jurídica – Pressupostos – Consequências – Casuística – Volume 1 – 1ª ed. – São Paulo: Quartier Latin, 2024, Págs. 295/321).

3 RODRIGUES FILHO, Otávio Joaquim. Desconsideração da Personalidade Jurídica e Processo, 2ª ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2023, p. 96.

4 ROSENVALD, Nelson e FARIAS, Cristiano Chaves de - Curso de direito civil: parte geral e LINDB – 15. Ed., ver., ampl. e atual. – Salvador. Ed. JusPodivm, 2017. Pág. 179.

Gregório Tomoyosi
Advogado da Mazzotini Advogados Associados.

Guilherme Barros
Advogado e pesquisador da Mazzotini Advogados Associados.

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