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Concurso público e medida protetiva: A presunção de inocência em debate

A exclusão de candidatos em concursos por medida protetiva afronta a presunção de inocência e exige equilíbrio entre moralidade e direitos fundamentais.

22/8/2025

O concurso público representa, para muitos brasileiros, a oportunidade de transformar a vida por meio do acesso a uma carreira estável, digna e respeitada. Esse processo seletivo, no entanto, vai muito além das provas objetivas e discursivas. Em várias carreiras, especialmente na área de segurança, há etapas voltadas à análise da vida pregressa do candidato. É nesse momento que surgem discussões delicadas, como a possibilidade de exclusão em razão de uma medida protetiva expedida no âmbito da lei Maria da Penha.

A medida protetiva é instrumento de natureza cautelar, cujo objetivo é resguardar a integridade física e psicológica da vítima em casos de violência doméstica. Ela pode impor restrições ao acusado, como afastamento do lar, proibição de contato ou suspensão de visitas. Não se trata, contudo, de condenação criminal, mas de providência imediata e preventiva, tomada muitas vezes de forma emergencial, sem ampla dilação probatória.

Ainda assim, bancas examinadoras, ao identificarem que um candidato responde a medida protetiva, frequentemente interpretam essa condição como incompatível com a moralidade exigida para o exercício do cargo. O resultado prático é a eliminação sumária, com base na ideia de que o candidato não teria idoneidade para ingressar no serviço público.

Essa postura, porém, suscita questionamentos importantes. A Constituição garante que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Isso significa que medidas provisórias ou processos em andamento não podem, por si só, servir de fundamento para restringir direitos. Excluir um candidato aprovado apenas porque responde a medida protetiva equivale a aplicar-lhe uma sanção sem condenação, em evidente afronta à presunção de inocência.

Outro princípio que deve ser observado é o da proporcionalidade. É razoável suprimir a chance de alguém ingressar em uma carreira pública por causa de uma decisão cautelar ainda não confirmada por sentença? O que se verifica, na prática, é que muitos candidatos sofrem danos irreparáveis, sendo afastados de concursos para os quais dedicaram anos de estudo, sem que haja decisão definitiva sobre sua responsabilidade.

É importante lembrar que a Administração tem o dever de proteger a moralidade dos quadros públicos. Entretanto, esse dever precisa ser exercido em equilíbrio com os direitos fundamentais. Uma investigação social rigorosa é legítima, mas não pode se transformar em juízo antecipado de culpa. O risco é transformar a etapa em verdadeiro tribunal paralelo, capaz de condenar o candidato por mera suspeita.

A jurisprudência tem apontado para a necessidade de se respeitar o devido processo legal. Diversas decisões já asseguraram que candidatos não podem ser eliminados unicamente em razão de medidas cautelares ou inquéritos sem condenação definitiva. Essa compreensão é a única compatível com a presunção de inocência e com a própria lógica do concurso público, que deve priorizar o mérito demonstrado nas provas.

Na prática, o candidato eliminado injustamente encontra no Judiciário a chance de recuperar seu direito. Muitos mandados de segurança têm sido concedidos para garantir a continuidade no certame, reafirmando que a medida protetiva não equivale a condenação. No entanto, essa judicialização excessiva revela um problema maior: a incapacidade das bancas de interpretar corretamente os limites constitucionais.

O caminho mais adequado é conciliar a proteção das vítimas com os direitos dos candidatos. Isso significa permitir que o concurso siga seu curso, preservando a vaga do candidato até que haja decisão definitiva. Caso sobrevenha condenação, aí sim a Administração poderá adotar medidas restritivas, mas jamais antes disso.

O concurso público deve ser instrumento de justiça, e não de exclusão arbitrária. O candidato que responde a medida protetiva pode e deve participar do certame. Se houver eliminação, o Judiciário tende a restabelecer sua posição, reafirmando o respeito à presunção de inocência, à proporcionalidade e à dignidade da pessoa humana.

Ricardo Fernandes
Professor, Escritor, Pesquisador, Palestrante, Policial Miltiar da Reserva. É Advogado Especialista em Concurso Público, Direito da PCD, Direito Internacional. Direito Processual Civil, Administrativo

Ana Paula Gouveia Leite Fernandes
Administradora e Advogada; Especialista em Concurso Público, Direito do Trabalho e Previdenciário.

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