Introdução
O sistema previdenciário brasileiro, estruturado sobre os pilares da solidariedade e da proteção social, encontra-se constantemente desafiado por interpretações restritivas que, não raro, comprometem a efetividade dos direitos fundamentais dos segurados. Uma dessas questões que merece especial atenção diz respeito à exigência de comprovação de atividade laborativa para contribuintes individuais, prática que tem gerado significativas controvérsias tanto na esfera administrativa quanto judicial.
A IN 128/22 do INSS estabelece que a autarquia pode exigir comprovação de atividade da pessoa que recolhe contribuições como contribuinte individual. Embora tal previsão normativa possa parecer, em uma análise superficial, razoável e necessária para a manutenção da higidez do sistema previdenciário, sua aplicação prática tem revelado distorções que merecem profunda reflexão jurídica.
O cerne da problemática reside no fato de que o INSS, em inúmeros casos, permanece inerte durante todo o período contributivo do segurado, não exercendo adequadamente sua função fiscalizatória, para então, de forma abrupta e tardia, exigir a comprovação de atividade laborativa apenas no momento em que o cidadão busca a concessão de seu benefício previdenciário. Tal postura revela-se não apenas contraditória, mas também violadora de princípios fundamentais que regem a Administração Pública e o próprio sistema de proteção social.
Esta situação torna-se ainda mais grave quando consideramos que, muitas vezes, o segurado já não dispõe mais dos documentos necessários para comprovar fatos pretéritos, especialmente quando se trata de atividades exercidas há décadas. A exigência tardia coloca o cidadão em situação de vulnerabilidade, comprometendo direitos adquiridos e ferindo a segurança jurídica que deve nortear as relações entre o Estado e os administrados.
O presente estudo propõe-se a analisar criticamente essa prática, demonstrando que a exigência de comprovação adicional de atividade para contribuintes individuais, quando já houve o regular recolhimento das contribuições previdenciárias, configura violação aos princípios constitucionais da razoabilidade, da proporcionalidade, da boa-fé e da segurança jurídica. Mais do que isso, pretende-se evidenciar que existe presunção relativa de que os recolhimentos previdenciários vinculam-se ao exercício de atividade laborativa, cabendo ao INSS, em razão de seu dever fiscalizatório, o ônus de comprovar eventual irregularidade.
A problemática da exigência tardia de comprovação: Uma análise crítica da postura do INSS
A prática administrativa do INSS de exigir comprovação de atividade laborativa apenas no momento da concessão do benefício revela uma contradição fundamental que merece ser analisada sob múltiplas perspectivas jurídicas. Durante anos, por vezes décadas, o Instituto recebe regularmente as contribuições previdenciárias do segurado, mantendo-se silente quanto à necessidade de qualquer comprovação adicional da atividade exercida. Contudo, no momento em que o cidadão busca exercer seu direito ao benefício previdenciário, surge repentinamente a exigência de documentação que comprove o exercício da atividade declarada.
Esta postura revela, com as devidas vênias, uma negligência instrutória que contraria frontalmente os comandos legais estabelecidos na lei 9.784/1999, que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal. O art. 29 da referida lei estabelece que "as atividades de instrução destinadas a averiguar e comprovar os dados necessários à tomada de decisão realizam-se de ofício ou mediante impulso do órgão responsável pelo processo, sem prejuízo do direito dos interessados de propor atuações probatórias".
A negligência do INSS em exercer adequadamente sua função instrutória durante o período contributivo configura violação ao princípio da oficialidade, que impõe à Administração Pública o dever de impulsionar o processo administrativo e buscar a verdade material. Mais grave ainda é o fato de que, mesmo quando deveria proceder à abertura de diligência para oitiva de testemunhas e outras medidas probatórias no âmbito da justificação administrativa, o Instituto frequentemente se omite, transferindo indevidamente ao segurado o ônus de comprovar fatos que poderiam ter sido verificados tempestivamente.
Esta conduta administrativa revela, em última análise, uma postura que beira a má-fé institucional. O INSS aceita passivamente as contribuições durante todo o período laborativo, beneficiando-se dos recursos financeiros aportados pelo segurado, mas posteriormente questiona a legitimidade dessas mesmas contribuições quando chamado a cumprir sua contraprestação. Tal comportamento contraria não apenas os princípios da boa-fé objetiva e da confiança legítima, mas também compromete a segurança jurídica que deve permear as relações previdenciárias.
A situação torna-se ainda mais problemática quando analisamos as consequências práticas dessa postura. O segurado, que durante anos ou décadas contribuiu regularmente para o sistema previdenciário, confiando na legitimidade de seus recolhimentos e na futura concessão de seu benefício, vê-se surpreendido por exigências que, muitas vezes, são impossíveis de serem atendidas. Documentos foram perdidos, empresas fecharam, testemunhas faleceram ou mudaram-se para locais desconhecidos. O tempo, que deveria ser aliado na construção do direito previdenciário, transforma-se em obstáculo intransponível.
É importante destacar que essa prática não se limita aos casos de contribuições contemporâneas ao exercício da atividade. Mesmo nas situações em que o segurado procedeu ao recolhimento extemporâneo de contribuições, o que já demonstra sua boa-fé e o reconhecimento da obrigação previdenciária, o INSS , em determinadas circunstâncias, exige comprovação adicional da atividade. Ora, se o próprio sistema normativo presume a continuidade da atividade até que haja comunicação formal de seu encerramento, não se justifica a exigência de comprovação adicional para períodos em que houve recolhimento, ainda que extemporâneo.
A jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais tem reconhecido essa problemática e oferecido respostas mais adequadas à proteção dos direitos dos segurados. O TRF da 4ª região, em decisão paradigmática, estabeleceu que "se a própria normativa administrativa presume a continuidade da atividade até que haja comunicação do seu encerramento, podendo, inclusive, ser considerado em débito o contribuinte individual no período, não se afigura razoável a exigência do INSS, de comprovação da atividade durante o período de trabalho sobre o qual o segurado recolheu extemporaneamente contribuições" (TRF-4 - AG: 50051842820224040000 RS, Rel: TAÍS SCHILLING FERRAZ, DJ: 15/6/2022, 6ª turma).
Esta posição jurisprudencial evidencia a contradição inerente à postura do INSS: por um lado, a autarquia considera o contribuinte individual em débito quando não há recolhimento, presumindo a continuidade da atividade; por outro lado, quando há o recolhimento, ainda que extemporâneo, exige comprovação adicional da mesma atividade cuja continuidade presumia. Tal contradição revela não apenas inconsistência lógica, mas também violação aos princípios da isonomia e da razoabilidade.
A análise dessa problemática sob a ótica dos direitos sociais fundamentais revela ainda outras violações. O direito à previdência social, consagrado no art. 6º da Constituição Federal como direito social fundamental, não pode ser esvaziado por exigências desproporcionais e tardias. A segurança jurídica, princípio implícito decorrente do Estado de Direito, impõe que as regras do jogo sejam claras e estáveis, não podendo o Estado alterar unilateralmente as condições de exercício de direitos já consolidados.
Ademais, a exigência tardia de comprovação viola o princípio da confiança legítima, que protege as expectativas legítimas criadas pela conduta da Administração Pública. Quando o INSS aceita regularmente as contribuições previdenciárias durante anos sem qualquer questionamento, cria no segurado a legítima expectativa de que tais contribuições são válidas e suficientes para a futura concessão do benefício. Quebrar essa expectativa no momento da concessão configura violação à boa-fé objetiva que deve nortear as relações entre a Administração e os administrados.
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