A inconstitucionalidade da alteração introduzida pela EC 103/19 no cálculo da renda mensal inicial da aposentadoria por invalidez: Violação aos princípios da razoabilidade, seletividade, irredutibilidade e isonomia
1. Introdução
A reforma previdenciária promovida pela EC 103, de 12/11/19, representou uma das mais profundas transformações no sistema previdenciário brasileiro desde a promulgação da CF/88. Entre as diversas alterações implementadas, destaca-se a modificação substancial na forma de cálculo da renda mensal inicial dos benefícios previdenciários, particularmente no que se refere à aposentadoria por invalidez, atualmente denominada aposentadoria por incapacidade permanente.
A alteração introduzida pelo art. 26, §§ 2º e 5º, da EC 103/19 estabeleceu que a renda mensal inicial da aposentadoria por invalidez não acidentária corresponderá a 60% da média aritmética simples dos salários de contribuição contidos no período de apuração, com acréscimo de 2% para cada ano de contribuição que exceder o tempo de 20 anos de contribuição para os homens ou 15 anos de contribuição para as mulheres. Esta modificação representa uma redução significativa em relação ao regime anterior, que garantia 100% do salário de benefício.
A problemática central que se apresenta reside na aparente incompatibilidade desta alteração com os princípios constitucionais que regem a seguridade social brasileira. A CF/88, em seu art. 194, estabelece que a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social, devendo ser organizada com base em objetivos específicos, entre os quais se destacam a irredutibilidade do valor dos benefícios e a seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços.
O presente estudo tem por objetivo demonstrar que a alteração promovida pela EC 103/19 no cálculo da renda mensal inicial da aposentadoria por invalidez viola princípios constitucionais fundamentais, configurando-se como inconstitucional. Para tanto, será realizada uma análise sistemática dos princípios constitucionais afetados, bem como dos precedentes jurisprudenciais que já reconheceram tal inconstitucionalidade, evidenciando a necessidade de preservação da proteção constitucional aos segurados em situação de maior vulnerabilidade social.
A relevância do tema transcende a esfera meramente acadêmica, uma vez que a questão afeta diretamente milhares de segurados que se encontram em situação de incapacidade permanente para o trabalho, representando uma das situações de maior vulnerabilidade no âmbito da proteção previdenciária. A análise da constitucionalidade das alterações promovidas pela reforma previdenciária constitui, portanto, questão de fundamental importância para a preservação dos direitos sociais e da dignidade da pessoa humana.
2. A reforma previdenciária e as alterações no cálculo dos benefícios
A EC 103/19 promoveu alterações estruturais no sistema previdenciário brasileiro, modificando substancialmente as regras de concessão e cálculo dos benefícios previdenciários. O contexto que precedeu a reforma foi marcado por intensos debates sobre a sustentabilidade fiscal do sistema previdenciário, com argumentos centrados na necessidade de adequação das regras previdenciárias às transformações demográficas e econômicas do país.
No que se refere especificamente à aposentadoria por invalidez, a EC 103/19 introduziu modificações significativas através do art. 26, que estabeleceu novas regras de transição e cálculo para os benefícios previdenciários. O parágrafo 2º do referido artigo determinou que, até que lei posterior disponha de forma diversa, a renda mensal inicial dos benefícios de aposentadoria e pensão será calculada de acordo com critérios específicos para cada modalidade de benefício.
Para a aposentadoria por invalidez não acidentária, o inciso III do § 2º do art. 26 estabeleceu que a renda mensal inicial corresponderá a "60% (sessenta por cento) da média aritmética simples dos salários de contribuição contidos no período de apuração, com acréscimo de 2% (dois por cento) para cada ano de contribuição que exceder o tempo de 20 (vinte) anos de contribuição para os homens ou 15 (quinze) anos de contribuição para as mulheres".
Esta alteração representa uma ruptura significativa com o regime anterior, estabelecido pela lei 8.213/91, que garantia ao segurado aposentado por invalidez uma renda mensal inicial correspondente a 100% do salário de benefício. A mudança implica, na prática, uma redução substancial no valor do benefício, especialmente para segurados com menor tempo de contribuição.
É importante destacar que a EC 103/19 manteve inalterada a regra para a aposentadoria por invalidez acidentária, que continua sendo calculada com base em 100% da média dos salários de contribuição. Esta diferenciação entre benefícios acidentários e não acidentários, sem justificativa objetiva plausível, constitui um dos pontos centrais da discussão sobre a constitucionalidade da alteração.
Outro aspecto relevante é que a reforma não alterou as regras do auxílio-doença, que continua sendo regido pelo art. 61 da lei 8.213/91, com renda mensal inicial correspondente a 91% do salário de benefício. Esta manutenção criou uma situação paradoxal, na qual um benefício por incapacidade temporária (auxílio-doença) pode ter valor superior a um benefício por incapacidade permanente (aposentadoria por invalidez), contrariando a lógica da proteção previdenciária.
A análise das alterações promovidas pela EC 103/19 revela, portanto, uma modificação substancial no paradigma de proteção previdenciária, com impactos diretos sobre os segurados em situação de maior vulnerabilidade. A redução do coeficiente de cálculo da aposentadoria por invalidez representa não apenas uma diminuição quantitativa do valor do benefício, mas também uma alteração qualitativa na concepção de proteção social, que tradicionalmente priorizava a manutenção da renda dos segurados incapacitados para o trabalho.
As implicações desta alteração transcendem a esfera individual, afetando a própria concepção constitucional de seguridade social como sistema de proteção abrangente e efetivo. A análise da constitucionalidade destas modificações torna-se, assim, fundamental para a preservação dos direitos sociais e da coerência do sistema de proteção previdenciária brasileiro.
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