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Mitigação da teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica nos grupos societários? Sinais do julgamento do STJ no REsp 2.215.861/DF

TJ/DFT e STJ reforçam que a desconsideração da personalidade jurídica exige nexo real, não bastando só sócios em comum.

26/8/2025

A desconsideração da personalidade jurídica encontra limites particularmente sensíveis quando se alega a existência de um grupo econômico informal (de fato) entre as sociedades. Decisões judiciais recentes têm reiterado que a mera identidade de sócios ou a participação em um conglomerado, por si só, não autorizam a extensão irrestrita de responsabilidades patrimoniais. Em especial, o acórdão da 1ª turma Cível do TJ/DFT (AI 0744323-77.2023.8.07.0000) e o julgamento do STJ no REsp 2.215.861/DF de relatoria do min. Moura Ribeiro da 3ª turma, fixaram balizas importantes ao rechaçar tentativas de se atingir o patrimônio de sociedades coligadas apenas com base em sócios comuns, o que reforça a necessidade de critérios mais substanciais para configuração de grupo econômico de fato e para autorizar a desconsideração do véu da personalidade jurídica.

No caso concreto examinado pelo TJ/DFT, um consumidor buscava redirecionar a execução de um título judicial contra diversas sociedades empresárias que compartilhavam sócios com a devedora original, em razão de atraso na entrega de unidades imobiliárias. Em virtude da insuficiência de bens penhoráveis das devedoras, o consumidor buscou a desconsideração da personalidade jurídica para incluir no polo passivo outras sociedades supostamente pertencentes ao mesmo grupo econômico.

O juízo de primeira instância deferiu o incidente de desconsideração da personalidade jurídica com fundamento na chamada teoria menor (art. 28, §5º do CDC), incluindo no polo passivo outras sociedades supostamente vinculadas ao devedor principal, justamente pelo fato de integrarem um conglomerado comum. Em sede recursal, entretanto, essa decisão foi reformada.

O acórdão do TJ/DFT, sob a relatoria do desembargador Teófilo Caetano, consignou que a mera identidade de sócios, embora conste como indício, não é suficiente para configurar um grupo econômico de fato.

Conforme consignado na ementa do acórdão, o reconhecimento de grupo econômico exige a “existência de conjunto de empresas com afinidade de objetos sociais, comunhão de interesses e atuação conjunta, sobressaindo uma das empresas como controladora das demais, de sorte a restar evidenciada a subordinação das controladas ou, ao mínimo, relação de interdependência entre elas, não se prestando a essa resolução a subsistência de identidade do quadro societário das pessoas jurídicas, conquanto sirva como elemento indiciário da subsistência do grupo”.

Outro fundamento crucial adotado pelo TJ/DFT foi a necessidade de comprovação de abuso da personalidade jurídica, materializado em confusão patrimonial ou desvio de finalidade, para legitimar a desconsideração. No caso, não se evidenciou que as sociedades tivessem misturado seus patrimônios ou agido com intuito de fraudar credores; ao contrário, cada qual mantinha aparente autonomia em sua gestão e contabilidade.

Diante disso, a corte concluiu ser inviável alcançar, por meio da execução forçada, o patrimônio de pessoa jurídica estranha ao processo, ausente prova de que as sociedades, apesar do quadro societário similar, incorreram em confusão de bens ou cometeram abuso para frustrar credores. Esse entendimento dialoga diretamente com o art. 50 do CC, que consagra a chamada teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, condicionando-a à demonstração de atos abusivos, seja pelo desvio de finalidade, seja pela confusão patrimonial.

O STJ, ao julgar o REsp 2.215.861/DF em agosto de 2025, manteve a linha restritiva sobre a desconsideração. O credor alegava tratar-se de relação de consumo e invocava a teoria menor do CDC, que dispensaria a prova de abuso.

O Tribunal, contudo, afastou a pretensão: além do óbice da súmula 7, que impede reexame fático-probatório, destacou-se que mesmo a teoria menor exige um nexo fático-jurídico mínimo entre a sociedade devedora e aquelas que se busca atingir. Sem essa conexão, a responsabilização solidária viola o devido processo legal e a lógica da separação patrimonial. Assim, o STJ deixou claro que a teoria menor não é licença para alcançar indiscriminadamente sociedades apenas por terem sócios em comum, mas requer algum elemento concreto de ligação que justifique a quebra do véu corporativo.

A interpretação dada pelo STJ harmoniza a teoria menor com garantias fundamentais do ordenamento, o que deixa claro que não equivale mais a uma carta branca para ignorar por completo a separação das personalidades jurídicas: exige-se, no mínimo, algum elemento de conexão ou coordenação que justifique a desconsideração.

Desta forma, foram fixados os seguintes critérios: i) afinidade de objetos sociais; ii) comunhão de interesses; iii) atuação conjunta; e iv) subordinação ou interdependência.

Assim, a responsabilização de terceiros exige a existência de um nexo fático-jurídico mínimo entre a pessoa jurídica devedora e as empresas ou pessoas físicas que se pretende atingir. A decisão rechaçou a ideia de uma "responsabilização automática" ou uma "responsabilidade objetiva universal" por mera frustração da execução.

A aplicação irrestrita da teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica implica uma transferência indevida de riscos do empreendimento para os sócios e investidores, desvirtuando a lógica que justifica a própria autonomia patrimonial. Essa postura fragiliza a segurança jurídica e mina um dos fundamentos essenciais do sistema empresarial, desestimulando a assunção de riscos e afastando investimentos necessários ao desenvolvimento econômico. A autonomia da pessoa jurídica não é um privilégio artificial, mas condição indispensável para o exercício da atividade empresarial; ignorá-la sob o pretexto de coibir abusos equivale a comprometer a base de todo o regime societário. Assim, embora o uso abusivo da pessoa jurídica deva ser coibido, não se pode sacrificar a autonomia patrimonial, que permanece como pilar inegociável da vida econômica.

A decisão do STJ marca um ponto de inflexão ao mitigar os excessos da teoria menor e aproximá-la da lógica da teoria maior, exigindo nexo fático-jurídico mínimo para responsabilização. Com isso, preserva a autonomia patrimonial, reforça a segurança jurídica e inaugura um novo direcionamento jurisprudencial, oferecendo maior previsibilidade às relações empresariais.

Marlon Tomazette
Advogado no escritório Tomazette, Franca e Cobucci Advogados.

Yago Rocha de Almeida
Mestrando e Estagiário do Tomazette, Franca & Cobucci Advogados Associados.

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