Uma crítica ao princípio da unicidade de benefícios previdenciários: Análise constitucional garantista da seguridade social como direito fundamental.
Apresentação
O presente estudo surgiu, em grande medida, por instigação da juíza Federal aposentada e eminente doutrinadora Maria Helena Carreira Alvim Ribeiro, a quem tive a honra de assessorar há alguns anos.
Movida por inquietação prática, consistente na constatação de que segurados que exercem atividades laborais simultâneas, com contribuições oriundas de duas fontes distintas para o mesmo regime previdenciário, ao se afastarem por incapacidade laborativa relativa a ambas as ocupações, percebem apenas um único benefício, com acentuada redução de sua capacidade econômica, questionou-me a respeito da legitimidade de tal cenário.
Na ocasião, ainda que compartilhando de seu incômodo quanto à iniquidade da situação, expliquei que havia, de fato, um entendimento consolidado no sentido da inacumulabilidade dos benefícios por incapacidade temporária, mesmo nos casos em que o segurado exerce múltiplos vínculos empregatícios, desde que todos vinculados ao mesmo regime geral de previdência social.
Diante da minha resposta, ponderou a ilustre magistrada que tal resultado não se compatibilizava com os princípios de justiça e equidade, instando-me a produzir uma reflexão mais aprofundada sobre o tema. Como sempre fui obediente, pus-me a redigir este ensaio, reunindo os fundamentos que me pareceram mais adequados à defesa de uma tese alternativa, comprometida com a proteção integral do segurado multiprofissional.
Naturalmente, a crítica permanece aberta e será sempre bem-vinda, especialmente se contribuir para o amadurecimento do debate. Contudo, caso um dia o legislador, consciente de sua função social e imbuído de espírito progressista, decida reformular o texto legal com vistas à sua compatibilização com os direitos fundamentais sociais, ou ainda, caso o Poder Judiciário, em gesto de superação jurisprudencial (overruling), compreenda ser possível uma inflexão hermenêutica no sentido de reconhecer a possibilidade de cumulação proporcional de benefícios por incapacidade nos casos de múltiplas fontes contributivas, aqui estarão lançadas algumas premissas e argumentos que, talvez, possam servir de alicerce a essa construção normativa ou interpretativa.
Introdução
A Seguridade Social brasileira, estabelecida pela CF/88, representa uma das mais importantes conquistas na proteção dos direitos sociais em nossa história republicana. Mais do que um simples sistema de proteção, ela constitui um pilar fundamental do Estado social brasileiro, intrinsecamente ligada à garantia da dignidade humana. No Título VIII da Carta Magna, dedicado à ordem social, encontramos um conjunto integrado de ações dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar direitos essenciais relacionados à saúde, previdência e assistência social.
Dentro desse sistema, a Previdência Social ocupa posição de destaque. O constituinte de 1988 estabeleceu um regime contributivo obrigatório que busca assegurar aos beneficiários meios indispensáveis de manutenção em situações de vulnerabilidade: incapacidade, desemprego involuntário, idade avançada, tempo de serviço, encargos familiares e morte daqueles de quem dependiam economicamente. A lei 8.213/91 regulamentou esse sistema, incorporando princípios e diretrizes que devem ser interpretados sempre à luz dos fundamentos constitucionais da República, especialmente a dignidade humana e os valores sociais do trabalho.
Entretanto, a aplicação prática desses direitos tem enfrentado desafios interpretativos consideráveis. Um dos mais complexos refere-se ao princípio da unicidade de benefícios previdenciários, estabelecido no art. 124 da lei 8.213/91. Este dispositivo, que veda a acumulação de determinados benefícios previdenciários, tem sido objeto de interpretação cada vez mais restritiva pela Administração Pública. O ápice dessa tendência materializou-se na edição do art. 337 da IN INSS/PRES 128/22, que estende as vedações legais muito além do que a lei expressamente prevê.
A questão central que nos motiva neste estudo emerge de uma tensão fundamental: de um lado, temos a interpretação literal e restritiva das normas infraconstitucionais; de outro, os princípios constitucionais garantistas que devem orientar a aplicação dos direitos previdenciários. Quando um trabalhador exerce múltiplas atividades laborais, contribuindo para diferentes fontes de custeio da Previdência Social, e se encontra incapacitado para o trabalho, surge um dilema prático e jurídico: deve-se conceder apenas um benefício, conforme determina a interpretação administrativa atual, ou múltiplos benefícios correspondentes a cada atividade e fonte de custeio, respeitando o princípio da máxima proteção social?
Esta questão transcende amplamente o debate técnico-jurídico, alcançando dimensões constitucionais fundamentais. A interpretação restritiva que impede a concessão de múltiplos benefícios por incapacidade, mesmo quando existem diferentes vínculos laborais e fontes contributivas, pode configurar violação grave aos princípios constitucionais da dignidade humana, da máxima efetividade dos direitos fundamentais e da vedação ao retrocesso social. Além disso, tal interpretação contraria frontalmente a regra hermenêutica clássica segundo a qual "onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir".
Nosso objetivo neste trabalho é analisar criticamente essa problemática sob a ótica constitucional garantista, examinando os fundamentos doutrinários, jurisprudenciais e normativos que sustentam ou refutam a interpretação restritiva atualmente adotada. Para alcançar esse objetivo, percorreremos um caminho investigativo que abrange: a análise dos fundamentos constitucionais da Seguridade Social como direito fundamental; o exame do princípio da máxima proteção social e sua aplicação na interpretação dos direitos previdenciários; a investigação crítica do art. 124 da lei 8.213/91 e suas vedações expressas; a análise da problemática criada pelo art. 337 da IN 128/22; o estudo da jurisprudência dos tribunais superiores; e a proposição de uma hermenêutica constitucional garantista.
A relevância deste estudo justifica-se não apenas pela importância prática da questão para milhões de segurados da Previdência Social brasileira, mas também pela necessidade urgente de estabelecer marcos teóricos sólidos para a interpretação dos direitos previdenciários em conformidade com os princípios constitucionais. Vivemos um momento de crescente judicialização das questões previdenciárias e de constantes reformas no sistema de proteção social. Nesse contexto, torna-se imperativo que a aplicação das normas previdenciárias seja orientada por uma hermenêutica que privilegie a máxima efetividade dos direitos fundamentais, sem descuidar dos limites impostos pela legalidade estrita.
Nossa metodologia baseia-se na pesquisa bibliográfica, com análise crítica da doutrina especializada, da jurisprudência dos tribunais superiores e da legislação pertinente. Adotamos uma abordagem qualitativa, de natureza exploratória e descritiva, que busca compreender os fundamentos teóricos e práticos da questão investigada, propondo soluções interpretativas que harmonizem a aplicação das normas infraconstitucionais com os princípios constitucionais da Seguridade Social.
2. A seguridade social como Direito Fundamental na CF/88
A CF/88 marcou um momento histórico na consolidação dos direitos sociais no ordenamento jurídico brasileiro. Ela estabeleceu a Seguridade Social como um direito fundamental de segunda geração, intrinsecamente vinculado à dignidade humana e à construção de uma sociedade justa e solidária. Embora a Seguridade Social esteja inserida no Título VIII da Carta Magna, dedicado à ordem social, isso não diminui sua natureza jusfundamental. Pelo contrário, contextualiza-a dentro de um projeto constitucional mais amplo de transformação social e redução das desigualdades.
O art. 194 da CF/88 estabelece que "a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social". Esta definição revela a natureza sistêmica e integrada da proteção social constitucional. Não se trata de uma mera prestação assistencial do Estado, mas de um verdadeiro direito subjetivo público, oponível ao Estado e dotado de eficácia jurídica imediata.
A fundamentalidade da Seguridade Social decorre não apenas de sua previsão constitucional expressa, mas também de sua íntima conexão com o princípio da dignidade humana, fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III, CF/88). Como bem observa Ingo Wolfgang Sarlet, reconhecido constitucionalista brasileiro, "a dignidade da pessoa humana constitui não apenas um dos fundamentos do nosso Estado Democrático de Direito, mas também um dos princípios constitucionais de maior relevância, que serve de parâmetro para a aplicação, interpretação e integração de todo o ordenamento jurídico". Neste contexto, a Seguridade Social funciona como instrumento essencial de concretização da dignidade humana, assegurando condições mínimas de subsistência e proteção social aos indivíduos em situação de vulnerabilidade.
A doutrina constitucional contemporânea tem reconhecido de forma crescente a jusfundamentalidade dos direitos previdenciários. Diversos estudos acadêmicos sustentam que o direito à previdência social constitui um direito fundamental e um direito especial de personalidade, impondo ao Estado um conjunto de obrigações para com o indivíduo. Esta perspectiva alinha-se com a compreensão de que os direitos previdenciários não constituem meras liberalidades estatais, mas verdadeiros direitos subjetivos decorrentes da contribuição social e da necessidade de proteção contra os riscos sociais.
O caráter fundamental dos direitos previdenciários manifesta-se também através do princípio da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, previsto no § 1º do art. 5º da CF/88. Embora este dispositivo esteja topograficamente localizado no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos, a doutrina majoritária reconhece sua aplicação aos direitos sociais, incluindo os direitos previdenciários. Como leciona José Afonso da Silva, "os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos".
A interpretação evolutiva dos direitos fundamentais sociais, fortemente recomendada pelo direito internacional e pela jurisprudência de organismos internacionais, encontra particular relevância na aplicação dos direitos previdenciários. Estudos especializados destacam que um dos mais importantes princípios de interpretação dos direitos fundamentais sociais está positivado no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais: o princípio da implementação progressiva. Este princípio impõe ao Estado não apenas a obrigação de não retroceder na proteção social já alcançada, mas também o dever de progressivamente ampliar e aperfeiçoar os mecanismos de proteção social.
A CF/88 estabelece, em seu art. 195, que "a seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos desta Constituição e da lei". Este dispositivo revela a natureza contributiva e solidária do sistema de seguridade social brasileiro, fundado no princípio da solidariedade intergeracional e na repartição dos riscos sociais entre todos os membros da sociedade. A contribuição social, portanto, não constitui mero tributo, mas representa a contrapartida necessária para a aquisição e manutenção dos direitos previdenciários, estabelecendo uma relação jurídica de natureza sinalagmática entre o segurado e o sistema de proteção social.
O princípio da solidariedade, que fundamenta todo o sistema de seguridade social, encontra-se intrinsecamente vinculado aos objetivos fundamentais da República, especialmente à construção de uma sociedade livre, justa e solidária e à erradicação da pobreza e da marginalização (art. 3º, I e III, CF/88). A solidariedade social constitui o fundamento ético-jurídico da seguridade social, justificando a contribuição compulsória e a redistribuição de renda através dos benefícios e serviços.
A estrutura constitucional da Seguridade Social exige que o sistema de proteção social implemente a justiça distributiva que permita maior amparo social aos mais necessitados. Esta exigência constitucional impõe uma interpretação garantista dos direitos previdenciários, que privilegie a máxima efetividade da proteção social e a ampliação, sempre que possível, do âmbito de cobertura dos benefícios e serviços.
Neste contexto, a interpretação restritiva dos direitos previdenciários, que limite ou reduza a proteção social além do estritamente necessário, configura violação aos princípios constitucionais da Seguridade Social. A aplicação do art. 124 da lei 8.213/91 e do art. 337 da IN 128/22 deve, portanto, ser orientada pelos princípios constitucionais da máxima efetividade dos direitos fundamentais, da dignidade humana e da vedação ao retrocesso social, evitando interpretações que restrinjam direitos além do expressamente previsto na lei.
A jurisprudência constitucional tem reconhecido de forma crescente a necessidade de interpretação garantista dos direitos previdenciários. O STF, em diversas oportunidades, tem afirmado que a interpretação dos direitos previdenciários deve privilegiar a máxima efetividade da proteção social. Esta orientação jurisprudencial reforça a compreensão de que os direitos previdenciários constituem direitos fundamentais dotados de eficácia jurídica imediata e que devem ser interpretados de forma a ampliar, e não restringir, a proteção social dos segurados.
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