Introdução
A segurança jurídica constitui um dos pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito, exigindo que as decisões judiciais sejam previsíveis e uniformes, especialmente quando se trata de direitos fundamentais sociais. No entanto, uma das maiores mazelas que aflige o Poder Judiciário brasileiro reside precisamente na falta dessa segurança jurídica, manifestando-se de forma particularmente grave no âmbito do direito previdenciário rural.
Mesmo quando matérias outrora divergentes no primeiro e segundo graus de jurisdição são pacificadas pelos tribunais superiores - STJ, STF e TNU - Turma Nacional de Uniformização, persiste uma resistência injustificável por parte de magistrados de instâncias inferiores em aplicar o entendimento consolidado. Essa postura não apenas viola o princípio da hierarquia jurisdicional, mas também compromete a efetivação de direitos fundamentais de uma das classes mais vulneráveis da sociedade brasileira: os trabalhadores rurais.
O problema torna-se ainda mais grave quando se constata que essa resistência hermenêutica incide sobre questões já definitivamente sedimentadas pela jurisprudência superior, como é o caso da comprovação da qualidade de segurado especial para fins de concessão de benefícios previdenciários rurais. A interpretação restritiva que muitos juízes de primeiro e segundo graus conferem às exigências probatórias contraria não apenas a letra da lei, mas sobretudo o espírito constitucional que informa todo o sistema de proteção social.
A questão central que se apresenta é de natureza eminentemente constitucional e hermenêutica: qual o fundamento jurídico que justificaria exigir do trabalhador rural, que possui notoriamente menores condições de produzir provas materiais, um padrão probatório mais rigoroso do que aquele exigido do trabalhador urbano? Em outras palavras, onde reside o fator discriminem razoável, na precisa terminologia de Celso Antônio Bandeira de Mello, que legitimaria tal diferenciação em desfavor do segurado especial?
A resposta a essa indagação revela a inconsistência lógica e constitucional das interpretações restritivas. Enquanto para a aposentadoria por idade urbana o legislador ordinário não estabeleceu qualquer exigência de que os 180 meses de carência sejam comprovados através de contribuições em período imediatamente anterior ao requerimento administrativo, alguns magistrados insistem em exigir do trabalhador rural uma contemporaneidade absoluta entre a prova material e o período que se pretende comprovar.
Essa disparidade de tratamento não encontra respaldo nem na Constituição Federal, nem na legislação infraconstitucional, nem tampouco na jurisprudência dos tribunais superiores. Ao contrário, revela uma incompreensão fundamental acerca do conceito de “início” ou “indício” de prova material, conceito este que foi desenvolvido precisamente para atender às peculiaridades e dificuldades inerentes ao trabalho rural.
O presente estudo tem por objetivo demonstrar que a ampliação ou extensão da eficácia temporal probatória do início de prova material, seja de forma prospectiva ou retrospectiva, não apenas é juridicamente possível, como constitui imperativo constitucional decorrente dos princípios da igualdade material, da dignidade da pessoa humana e da função social da previdência. Para tanto, será necessário examinar os fundamentos constitucionais e legais da proteção previdenciária rural, analisar criticamente a jurisprudência consolidada dos tribunais superiores e demonstrar como as interpretações restritivas violam princípios fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro.
A relevância do tema transcende o âmbito meramente acadêmico, uma vez que suas implicações práticas afetam diretamente milhões de trabalhadores rurais que dependem da previdência social para garantir sua subsistência na velhice. A uniformização da jurisprudência em torno de uma interpretação constitucionalmente adequada não apenas promoverá a segurança jurídica, mas também assegurará a efetivação de direitos fundamentais de uma parcela significativa da população brasileira.
1. Fundamentos constitucionais e legais da proteção previdenciária rural
1.1. A previdência social na Constituição Federal de 1988
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu um sistema abrangente de seguridade social, do qual a previdência constitui um dos pilares fundamentais. O art. 201 da Carta Magna dispõe que “a previdência social será organizada sob a forma do Regime Geral de Previdência Social, de caráter contributivo e de filiação obrigatória”, estabelecendo os parâmetros gerais do sistema previdenciário brasileiro.
Embora o texto constitucional enfatize o caráter contributivo da previdência, é fundamental compreender que essa contributividade não se manifesta de forma idêntica para todas as categorias de segurados. O próprio constituinte reconheceu as especificidades do trabalho rural ao estabelecer, no art. 201, §7º, que “é assegurada aposentadoria no regime geral de previdência social, nos termos da lei, obedecidas as seguintes condições: I - trinta e cinco anos de contribuição, se homem, e trinta anos de contribuição, se mulher; II - sessenta e cinco anos de idade, se homem, e sessenta anos de idade, se mulher, reduzido em cinco anos o limite para os trabalhadores rurais de ambos os sexos e para os que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, nestes incluídos o produtor rural, o garimpeiro e o pescador artesanal”.
A redução etária de cinco anos para os trabalhadores rurais não constitui mera liberalidade do constituinte, mas sim reconhecimento expresso das condições peculiares e mais gravosas do trabalho no campo. Essa diferenciação encontra fundamento nos princípios constitucionais da igualdade material e da dignidade da pessoa humana, que exigem tratamento desigual para situações desiguais, na medida de suas desigualdades.
1.2. O regime especial dos segurados especiais na lei 8.213/1991
A legislação infraconstitucional, especificamente a lei 8.213/1991, regulamentou o regime previdenciário dos trabalhadores rurais através da figura do segurado especial. O art. 39, inciso I, da referida lei estabelece que para os segurados especiais fica garantida a concessão “de aposentadoria por idade ou por invalidez, de auxílio-doença, de auxílio-reclusão ou de pensão, no valor de 1 (um) salário mínimo, e de auxílio-acidente, conforme disposto no art. 86, desde que comprove o exercício de atividade rural, ainda que de forma descontínua, no período, imediatamente anterior ao requerimento do benefício, igual ao número de meses correspondentes à carência do benefício requerido” (grifou-se).
A análise cuidadosa desse dispositivo revela elementos fundamentais para a compreensão da questão probatória. Primeiro, a lei expressamente admite o exercício da atividade rural “ainda que de forma descontínua”, reconhecendo a sazonalidade e as peculiaridades do trabalho agrícola. Segundo, a exigência de comprovação refere-se ao “exercício de atividade rural”, não especificamente à apresentação de documentos contemporâneos a todo o período pretendido.
A expressão “período, imediatamente anterior ao requerimento do benefício” tem sido objeto de interpretação jurisprudencial consolidada, que não a compreende de forma literal ou restritiva. Como será demonstrado adiante, a jurisprudência dos tribunais superiores firmou entendimento no sentido de que essa expressão deve ser interpretada em consonância com as dificuldades probatórias específicas do trabalhador rural, permitindo a ampliação temporal da eficácia probatória através de prova testemunhal idônea.
1.3. O art. 55, §3º, da lei 8.213/1991 e o conceito de início de prova material
O art.55, §3º, da lei 8.213/1991 estabelece que “A comprovação do tempo de serviço para os fins desta lei, inclusive mediante justificativa administrativa ou judicial, observado o disposto no art. 108 desta lei, só produzirá efeito quando for baseada em início de prova material contemporânea dos fatos, não admitida a prova exclusivamente testemunhal, exceto na ocorrência de motivo de força maior ou caso fortuito, na forma prevista no regulamento., não sendo admitida prova exclusivamente testemunhal, salvo na ocorrência de motivo de força maior ou caso fortuito”.
O conceito de início de prova material muitas vezes se confunde com o de “indício de prova material”. Esta questão terminológica, entretanto, não altera substancialmente o conceito, apenas traduz o entendimento já consolidado de que não se exige prova plena ou exauriente da atividade rural, mas apenas um elemento documental mínimo que possa conferir credibilidade à prova testemunhal.
A compreensão adequada desse conceito é fundamental para a solução da controvérsia. O termo “indício”, etimologicamente, significa vestígio, probabilidade de existência de algo, sinal ou sintoma. Já o termo “início” refere-se àquilo que começa em primeiro lugar ou princípio. Ambos os conceitos convergem para a ideia de “pouca coisa”, de ser apenas “um cheiro” ou algo palpável e documental que possa dar maior crédito à prova testemunhal.
2.0. Princípios constitucionais aplicáveis na interpretação das normas previdenciárias
A interpretação das normas previdenciárias rurais deve ser orientada pelos princípios constitucionais fundamentais, especialmente aqueles que informam o sistema de proteção social.
2.1. Princípio da dignidade da pessoa humana
O princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no art. 1º, inciso III, da Constituição Federal como fundamento da República, exige que o sistema previdenciário assegure condições mínimas de subsistência aos trabalhadores. No contexto rural, esse princípio ganha especial relevância, considerando que o trabalho no campo frequentemente se inicia na infância e é caracterizado por condições extenuantes que aceleram o desgaste físico e mental do trabalhador.
A aposentadoria rural não constitui apenas um benefício previdenciário, mas instrumento de efetivação da dignidade humana, garantindo ao trabalhador do campo uma velhice digna após décadas de contribuição para a economia nacional através da produção de alimentos. Interpretações restritivas que inviabilizam o acesso a esse direito violam frontalmente esse princípio fundamental.
2.2. Princípio da igualdade material
O princípio da igualdade, consagrado no caput do art. 5º da Constituição Federal, não se limita à igualdade formal perante a lei, mas exige a promoção da igualdade material através de tratamento diferenciado para situações desiguais. Como ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da igualdade interdita tratamento desuniforme às pessoas, mas permite e até exige diferenciações quando há fator discriminem razoável que justifique o tratamento diferenciado.
No caso dos trabalhadores rurais, o fator discriminem reside nas dificuldades específicas de produção de provas materiais, decorrentes da informalidade característica das relações de trabalho no campo, do isolamento geográfico, das condições socioeconômicas desfavoráveis e da tradição cultural baseada na oralidade. Exigir do trabalhador rural o mesmo padrão probatório do trabalhador urbano constituiria violação ao princípio da igualdade material, uma vez que desconsideraria essas diferenças objetivas.
2.3. Princípio da função social da previdência
A previdência social possui função eminentemente social, destinando-se à proteção dos trabalhadores contra os riscos sociais da velhice, invalidez e morte. Essa função social impõe uma interpretação teleológica das normas previdenciárias, orientada pela finalidade de inclusão e proteção social.
No âmbito rural, a função social da previdência ganha contornos ainda mais evidentes, considerando que o trabalhador do campo, além de contribuir para sua própria subsistência, desempenha papel fundamental na segurança alimentar da nação. A interpretação restritiva das normas probatórias frustra essa função social, excluindo do sistema previdenciário justamente aqueles que mais necessitam de proteção.
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