1. Introdução: O palco de Balzac e os espelhos digitais
Lucien de Rubempré. Esse nome ainda ressoa? Um jovem poeta tentando conquistar Paris, posando nos salões como - e aqui Balzac (2007, p. 23) é impiedoso - “mantinha-se na pose graciosa encontrada pelos escultores para o Baco indiano”. Patético? Talvez. Mas olhe ao redor. Veja o seu feed. Não somos todos Lucien agora, posando para uma audiência invisível, acumulando likes como ele acumulava convites para jantares? Mudaram os palcos, não a peça.
Instagram, LinkedIn, Facebook - cada um com seu script particular, suas convenções tácitas, suas formas específicas de aplauso (curtidas, compartilhamentos, aquele comentário “Arrasou!” que não sinaliza nada, mas significa tudo). A busca por reconhecimento que movia Lucien pelos salões parisienses agora incide pelos feeds infinitos. A diferença - e não se cuida de progresso - é que agora performa-se 24 horas por dia, ininterruptamente.
Este artigo, que prefere o tom ensaístico ao estritamente técnico, recorre a Goffman e Bourdieu como lentes para iluminar esse teatro contemporâneo. Goffman (2014) mostrou como gerenciamos impressões e construímos fachadas. Bourdieu (2013) revelou as lutas de poder invisíveis que atravessam cada gesto aparentemente inocente. Juntos - e aqui está a aposta teórica - eles ajudam a compreender não apenas como performamos online, mas por que performamos. E qual o preço disso. (Spoiler: é alto.)
2. Fundamentação teórica: As lentes de Goffman e Bourdieu
2.1. Erving Goffman e a dramaturgia social
Em A representação do eu na vida cotidiana (2014), Goffman nos legou uma intuição perturbadora: vivemos em permanente encenação, quiçá com um ator emulando o outro1. Cada interação é uma performance, cada encontro uma cena, cada indivíduo um ator em busca de reconhecimento - ou, no mínimo, tentando evitar a humilhação.
Há o palco (front stage), onde sorrimos e seguimos as falas esperadas. Há os bastidores (back stage), onde caem as máscaras. Entre ambos, a fachada (personal front): roupas, gestos, entonações, a pose estudada. O inquietante é que essas fachadas, como observou Goffman (2014, p. 32), tornam-se “fatos sociais por direito próprio”. Não escolhemos nossas máscaras; vestimos as que o guarda-roupa social nos oferece.
O truque, e Goffman adorava truques, é que todos sabem que todos estão fingindo - mas todos fingem não saber. É um pacto silencioso. Quando alguém comete uma gafe, a coletividade se mobiliza para restaurar a ilusão. Porque, se a ilusão cai, resta o quê?
2.2. Pierre Bourdieu e a luta simbólica
Bourdieu foi um cartógrafo das estruturas invisíveis. Filho de carteiro que se tornou catedrático em Paris, sabia que o jogo social é viciado, mas buscava compreender como e por que continuamos a jogá-lo.
Sua virada conceitual foi mostrar que capital não é apenas dinheiro. Há capital cultural (diplomas, gostos, modos de falar), capital social (redes de relações) e capital simbólico: o prestígio, a honra, a capacidade de impor a própria visão do mundo. Lutamos por esse capital simbólico com a mesma ferocidade com que nossos ancestrais lutavam por alimento.
O habitus, disposições incorporadas ao longo da trajetória, confere a sensação de naturalidade às práticas. O gosto pela ópera ou pelo futebol parece espontâneo, mas é história feita corpo. A violência simbólica, por sua vez, é quando a dominação é aceita como legítima. O pobre que se sente “sem cultura”, a mulher que se percebe “menos feminina” - eis a dominação internalizada.
2.3. Do micro ao macro: Um diálogo necessário
Goffman e Bourdieu raramente se cruzaram em vida, mas suas análises se iluminam mutuamente. Goffman descreveu a performance no micro da interação; Bourdieu situou as posições no macro dos campos sociais. O palco goffmaniano ganha densidade quando se considera o capital em disputa; a luta bourdieusiana se concretiza nas fachadas dramatúrgicas do cotidiano. Ou, em síntese: Goffman nos mostra o “como”, Bourdieu nos mostra o “para quê”. Juntos, revelam o jogo inteiro.
3. As redes sociais como teatros especializados
- Instagram: O império da estética. Não são fotos, mas narrativas visuais de sucesso. Até a “autenticidade” tornou-se performance (Hogan, 2010).
- LinkedIn: O teatro corporativo. Currículos (alguns com maquiagem pesada) disfarçados de postagens, elogios recíprocos, liderança encenada.
- Facebook: O campo de batalha. Audiências múltiplas, tensões identitárias e a métrica implacável dos likes. Van Dijck (2013) mostra a ginástica mental necessária para sustentar tantas personas simultâneas. Cada plataforma exige um script. Confundir roteiros é fracassar na cena.
4. Big data e os novos indicadores objetivos
Enquanto performamos sob os holofotes digitais, algoritmos colecionam cada clique. O big data é herdeiro ampliado dos “indicadores objetivos” que preocupavam Bourdieu (2011). Mas aqui a escala é outra: “notas de crédito”2, rankings de influência, probabilidades de consumo, risco de doença ou de crime.
O’Neil (2016) chamou de “armas de destruição matemática”. Noble (2018) mostrou como algoritmos reforçam desigualdades de raça, classe e gênero. Eubanks (2018) resumiu com lucidez: “a pobreza é digitalizada antes de ser aliviada”.
5. Fake news e a disputa pela realidade
As fake news não são apenas mentiras: são armas em guerra pela definição do real. Bourdieu identificou o poder de nomear e classificar como forma de dominação simbólica. Hoje, essa disputa transborda das instituições para grupos de WhatsApp e bolhas digitais.
Sunstein (2017) fala em “câmaras de eco”; talvez sejam melhor descritas como “bunkers epistemológicos”, onde cada tribo3 constrói sua própria versão da realidade - e a defende como questão de sobrevivência.
6. Direito e regulação: Um atraso estrutural
LGPD, GDPR, marco civil: tentativas meritórias, mas insuficientes. O “consentimento” é frequentemente fictício; a neutralidade da rede colide com a lógica algorítmica de curadoria. No campo penal, definir juridicamente “fake news” é um labirinto perigoso. No constitucional, velhas tensões - liberdade de expressão versus honra, privacidade versus segurança - ressurgem em chave digital.
O direito chega atrasado4. E cansado.
7. Conclusão
Começamos com Lucien nos salões de Paris. Terminamos com bilhões de Luciens em palcos digitais. Aprendemos que Goffman estava certo: somos atores incessantes. Que Bourdieu também estava certo: lutamos por capital simbólico, agora medido em likes e métricas. Aceitamos, passivamente, nossos papéis5.
As redes sociais industrializaram a apresentação de si. O big data transformou a classificação social em pseudociência de aparência exata. A banalização das fake news majoraram a fragmentação da realidade. E os fatores reais do poder6, quando lhes é interessante, lançam mão do Direito para tentar regular o “irregulável”, no exercício de seu papel de dominação7.
Lucien tinha um público restrito e podia retirar a máscara ao voltar para casa. Nós dormimos com ela.
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1 “Ou seja, todas as crianças são geniais. Mas depois, quando a criança parecer com os outros, procura a mediocridade, e consegue em quase todos os casos. Eu acredito que isso é verdade” BORGES, Jorge Luis & FERRARI, Osvaldo. Sobre os sonhos e outros diálogos. Traduzido por John O'Kuinghttons. São Paulo: Editora Hedra ltda, 2009, p. 59.
2 Sobre o tema, permita-se remissão a BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Notas de Crédito e Direito de Autor. Revista Brasileira de Direito Civil, volume 27, n. 1, 2021, disponível em https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/698.
3 GREENE Joshua. Tribos Morais. A tragédia da Moralidade do Senso Comum. Rio de Janeiro: Record, 2018, p. 20.
4 Sobre os riscos de os Poderes Públicos regularem o ambiente privado na internet, permita-se remissão a BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. E-stabelecimento. 2ª Edição, São Paulo: Quartier Latin, 2024, p. 361.
5 “Os homens nascidos sob o jugo, alimentados e criados na condição de escravos, com os olhos voltados para o chão, contentam-se em viver como nasceram” BOÉTIE, Etienne de La. Discurso da Servidão Voluntária. Tradução e apresentação: Gabriel Perissé. São Paulo: Editora Nós, 2016, p. 35.
6 LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 12.
7 SGARBI, Adrian. Introdução à Teoria do Direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013, p. 29.
8 BALZAC, Honoré de. Ilusões Perdidas. São Paulo: Estação Liberdade, 2007.
9 BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. E-stabelecimento. 2ª Edição, São Paulo: Quartier Latin, 2024.
10 _________. Notas de Crédito e Direito de Autor. Revista Brasileira de Direito Civil, volume 27, n. 1, 2021, disponível em https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/698.
11 BOÉTIE, Etienne de La. Discurso da Servidão Voluntária. Tradução e apresentação: Gabriel Perissé. São Paulo: Editora Nós, 2016.
12 BORGES, Jorge Luis & FERRARI, Osvaldo. Sobre os sonhos e outros diálogos. Traduzido por John O'Kuinghttons. São Paulo: Editora Hedra ltda, 2009.
13 BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2013.
14 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.
15 EUBANKS, Virginia. Automating inequality: How high-tech tools profile, police, and punish the poor. New York: St. Martin's Press, 2018.
16 GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
17 GREENE Joshua. Tribos Morais. A tragédia da Moralidade do Senso Comum. Rio de Janeiro: Record, 2018.
18 HOGAN, Bernie. The presentation of self in the age of social media: Distinguishing performances and exhibitions online. Bulletin of Science, Technology & Society, v. 30, n. 6, p. 377-386, 2010.
19 LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
20 NOBLE, Safiya Umoja. Algorithms of oppression: How search engines reinforce racism. New York: New York University Press, 2018.
21 O'NEIL, Cathy. Weapons of math destruction: How big data increases inequality and threatens democracy. New York: Crown, 2016.
22 SGARBI, Adrian. Introdução à Teoria do Direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013.
23 SUNSTEIN, Cass R. #Republic: Divided democracy in the age of social media. Princeton: Princeton University Press, 2017.
24 VAN DIJCK, José. 'You have one identity': performing the self on Facebook and LinkedIn. Media, Culture & Society, v. 35, n. 2, p. 199-215, 2013.