Introdução
A internacionalização de fluxos financeiros levou à complexificação da atividade de apuração, constituição e cobrança de tributos. Se a atividade tributária sempre foi, por excelência, um dos marcos da soberania nacional e da separação rígida das fronteiras, o desenvolvimento econômico e a integração internacional exigiram dos Estados uma capacidade de se articular para preservar sua capacidade arrecadatória nesse novo contexto. Do contrário, a movimentação internacional de capitais levaria à frustração da arrecadação e constituiria fácil opção para a evasão tributária.
A cooperação internacional para fins tributários toma, dentre outros instrumentos, a forma de convenções e tratados bilaterais que permitem às autoridades tributárias dos respectivos Estados um intercâmbio célere e eficiente de informações fiscais e bancárias. No que interessa para o presente tema, há instrumentos específicos de cooperação destinados ao intercâmbio de informações sobre ativos e renda auferidos no exterior.
Há, nesses procedimentos, uma dupla finalidade: prevenir a bitributação, permitindo a verificação correta do montante devido e qual o Estado com legitimidade para arrecadação; prevenir a evasão fiscal, buscando evitar que um cidadão de determinado país busque mecanismos de fluxo internacional de capitais para se evadir do correto cumprimento de suas obrigações tributárias.
Há, no entanto, uma maior complexidade quando tais informações são utilizadas para fins que não os estritamente tributários. Afinal, a evasão fiscal pode possuir repercussões penais; impondo-se, portanto, questionar se a cooperação para fins fiscais legitima o uso dessas informações para fins penais.
O compartilhamento direto de informações bancárias e fiscais pela Receita Federal aos órgãos de persecução penal
No Brasil, apesar da máxima da independência das instâncias, há uma vinculação entre o encerramento da esfera administrativa de constituição e lançamento dos tributos e a esfera penal de processamento e julgamento pela prática de crimes materiais contra a ordem tributária. Tanto a redação do art. 1º da lei 8.137/1990 quanto a súmula vinculante 24 do STF exigem a constituição definitiva do crédito tributário para que se possa falar em crime material contra a ordem tributária.
Há, portanto, uma precedência dos procedimentos administrativos fiscais que vão apurar e constituir os tributos, bem como impor multas, em relação à persecução penal por crimes materiais contra a ordem tributária. Apenas após esse procedimento ser concluído, no caso de haver ilícitos tributários que podem configurar ilícitos penais, é que haverá a deflagração da persecução penal.
No âmbito da Receita Federal, a comunicação de possíveis crimes verificados no curso administrativo - especialmente os relacionados à sonegação fiscal - toma a forma da representação fiscal para fins penais ao Ministério Público Federal, disciplinada pela portaria RFB 1.750/18, que é acompanhada da documentação pertinente para a apuração do ilícito.
O STF enfrentou a matéria sobre o intercâmbio direto de informações da Receita Federal às autoridades de persecução penal no julgamento do RE 1.055.941 (Tema 990 da repercussão geral). Entre outras deliberações, o STF validou, na ocasião, o intercâmbio direto para os órgãos de persecução penal, referindo-se especificamente à íntegra do procedimento fiscalizatório. No entanto, impôs limites relevantes.
No que toca especificamente às informações fiscais e bancárias acobertadas por sigilo, o então relator, ministro Dias Toffoli, fez consignar em seu voto que não haveria autorização para o intercâmbio indiscriminado de dados sigilosos, tais como a íntegra de extratos bancários ou declarações de imposto de renda, mas somente para o envio de “informações detalhadas, ligadas com o fato suspeito ou configurador, em tese, do delito”. Ou seja, vedou-se o encaminhamento direto da íntegra de documentos sigilosos, cuja obtenção depende de autorização judicial, permitindo-se somente o encaminhamento de informações pertinentes à apuração do possível delito, incluindo menções a dados bancários sigilosos obtidos no curso fiscalizatório1.
Tal precedente não tratou, no entanto, da hipótese objeto deste estudo. O procedimento de compartilhamento internacional de informações entre autoridades fiscais, tendo por base legal os instrumentos de direito internacional mencionados, não se confunde com o procedimento fiscalizatório regularmente empregado pela Receita Federal.
Se, por um lado, fica evidente que o compartilhamento direto de extratos bancários ou a íntegra de declarações de imposto de renda é ilegal, seja a sua fonte interna ou estrangeira, não é possível depreender do precedente do STF se as “informações detalhadas” ligadas ao potencial delito e que tenham sido obtidas mediante cooperação internacional podem ser livremente compartilhadas com o MPF, ante os princípios da legalidade estrita e especialidade dos tratados internacionais.
Diante desse cenário, deve se examinar se a solução dada pelo STF se aplica também ao compartilhamento direto de informações obtidas mediante cooperação internacional.
O princípio da especialidade e a sua incidência na cooperação jurídica internacional para fins fiscais
Para chegar à resposta adequada ao questionamento posto, deve se examinar a incidência do princípio da especialidade na cooperação internacional.
Tal princípio dita que “as provas obtidas por meio de cooperação jurídica internacional somente poderão ser utilizadas no procedimento que ensejou o pedido”2; sendo, portanto, vedada a “divulgação do conteúdo de documentos, e tampouco o seu repasse a qualquer outro processo ou investigação”3.
A função aqui é dúplice: por um lado, são evitadas possíveis violações à soberania do Estado que fornece as provas; por outro, protege-se o indivíduo cujos dados serão fornecidos.
No tema aqui tratado, a questão é saber se a incidência do princípio da especialidade na cooperação internacional para fins fiscais veda o uso dos mesmos dados e informações para fins penais. Afinal, se o fato que motivou a cooperação - potencial evasão fiscal - pode gerar repercussões tanto administrativas quanto penais, não seria natural que as informações oriundas da cooperação fiscal fossem empregadas para fins penais?
Entendemos que não, com base em dois fundamentos: (i) a diferença material entre ilícitos tributários e ilícitos penais, tanto nos requisitos para sua configuração quanto nas consequências jurídicas; (ii) a diferença processual entre o processo administrativo fiscal e o processo penal.
No aspecto material, há de se entender que a consequência penal da evasão fiscal não é automática. Ao contrário, o ilícito tributário pode se dar com o mero não recolhimento do imposto devido, havendo descumprimento da obrigação tributária pelo sujeito passivo.
No caso de esse não recolhimento ser consequência de uma omissão de declaração de renda, por exemplo, o principal do tributo devido é acrescido de uma sanção administrativa, na forma da multa tributária. Caso haja apenas falta de pagamento ou recolhimento, falta de declaração ou declaração inexata, a multa incidente será de 75% (art. 44, I, da lei 9.430/1996). Já nos casos de sonegação dolosa, fraude ou conluio, a multa é de 100% para infratores primários e de 150% para infratores reincidentes (art. 44, §1º, VI e VII da mesma lei).
Por outro lado, a existência de ilícito penal está sujeita à verificação da tipicidade objetiva e subjetiva dos delitos. No caso dos crimes materiais contra a ordem tributária, para além da efetiva redução ou supressão do tributo, há que se verificar a existência de algumas das condutas listadas nos incisos I a V do art. 1º da lei 8.137/1990 - todas as quais pressupõem alguma forma de fraude ou ardil. Ademais, há de se precisar, em nível individual e da pessoa física, a autoria e o dolo.
Ou seja, é plenamente possível que haja infrações tributárias que não geram repercussões penais. Isso se dá tanto no caso de mera declaração inexata ou não recolhimento, quando não se verificar dolo, ou mesmo em casos de fraude em que não for possível precisar individualmente a autoria ou o dolo.
A diferença entre os ilícitos também é visível pelo tipo de sanção imposta. Do ponto de vista administrativo, haverá somente a constituição do crédito tributário, consistindo no principal devido acrescido de juros e multa, quando cabível. Já quanto a um crime contra a ordem tributária, há a previsão de imposição de pena privativa de liberdade, além de uma multa penal.
Tudo isso leva à segunda diferença mencionada, de cunho processual. A infração tributária é apurada por um processo administrativo conduzido no próprio âmbito fiscal, com garantias mitigadas de ampla defesa e conduzido pela própria autoridade tributária. Já a apuração de infração penal se dá no âmbito de processo inquisitorial ou judicial, mas com a incidência reforçada das garantias do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, e perante um terceiro imparcial investido de jurisdição. Ou seja, a apuração de crime contra a ordem tributária está longe de ser uma consequência automática da existência do ilícito tributário, exigindo um devido processo com todas as garantias correlatas.
Esse contexto leva a uma interpretação necessariamente restritiva do princípio da especialidade.
Em outras palavras, uma autorização de compartilhamento internacional de dados sigilosos em um procedimento fiscal não autoriza automaticamente o compartilhamento dessas mesmas informações às autoridades de persecução penal. Ao contrário, será necessária uma nova cooperação internacional que tenha por objetivo a instrução de persecução penal, com fundamento em base legal que consagre essa espécie de cooperação. De modo a evitar possíveis violações à soberania do estado que está a compartilhar tais informações, assim como proteger o indivíduo de arbítrios.
De modo a reforçar o raciocínio acima exposto, deve se levar em consideração o fato de que o congresso promulgou a EC 115/22, que inclui o direito à proteção no rol dos direitos fundamentais previstos no art. 5º da CF/88.
O direito à proteção de dados traz consigo compreensões absolutamente relevantes, que devem ser consideradas sempre que órgãos públicos e privados estiverem diante de dados pessoais. Nesse particular, destacam-se os princípios enunciados ao teor do art. 6º, da Lei Geral de Proteção de Dados, o qual dispõe que o tratamento de dados está condicionado à adequação e à necessidade dessa atividade, que deve guardar estrita observância com a finalidade que ensejou a coleta dessas informações.
É dizer, a coleta dos dados deve buscar o mínimo de informações pessoais necessárias à consecução de um objetivo previamente determinado, sendo que a utilização desses dados para fins diversos daqueles originalmente previstos torna o tratamento de dados uma atividade ilegal.
O sigilo é a garantia que assegura a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, de modo que a sua flexibilização está restrita a hipóteses excepcionais e está condicionada, no caso objeto de estudo, à observância do critério da especialidade.
O texto das Convenções e a limitação de uso para fins exclusivamente fiscais
Embora a conclusão acima externada seja válida para quaisquer situações em que o pedido de cooperação tenha sido baseado no uso exclusivamente fiscal das informações assim obtidas, um exame do texto de algumas das convenções empregadas para combater a evasão fiscal em matéria de renda a corrobora. Ou seja: as bases normativas para a cooperação entre autoridades fiscais sequer possibilitariam um pedido de cooperação para fins penais.
Apenas a título de exemplo, menciona-se a Convenção entre Brasil e Portugal para evitar a dupla tributação e a prevenir a evasão fiscal em matéria de impostos sobre o rendimento (decreto 4.012/00). Todo o texto normativo trata exclusivamente de cooperação para fins fiscais, sem uma única menção à possibilidade de compartilhamento com autoridades de persecução penal ou para fins penais. Inclusive, há uma vedação expressa ao compartilhamento com outros entes estatais que não aqueles envolvidos na atividade tributária. Mesmo havendo a menção a “procedimentos punitivos” no art. 26 da Convenção, uma interpretação sistemática e restritiva como a ora exposta impõe a necessária conclusão de que os “procedimentos punitivos” mencionados são somente aqueles relativos à possível imposição de multas na esfera administrativo-tributária, e não os de cunho penal.
Outras convenções são ainda mais restritivas. Nesse sentido, cita-se a Convenção entre Brasil e Argentina, destinada a evitar a dupla tributação e prevenir a evasão fiscal em matéria de impostos sobre a renda (decreto 87.976/1982), que limita a revelação das informações apenas “a pessoas ou autoridades (incluindo tribunais judiciais ou administrativos competentes) vinculadas à liquidação ou ao recolhimento dos impostos objeto da presente Convenção”, nos termos do art. XXVI. No mesmo sentido, caminha o acordo entre Brasil e China com o mesmo tema (decreto 762/1993), que possui disposição que igualmente cita apenas autoridades relacionadas aos tributos mencionados “conforme suas respectivas competências para efetuar o lançamento e a cobrança, aplicar a legislação ou decidir sobre controvérsias”, conforme redação do art. 26.
Em realidade, os únicos textos dessa espécie que parecem mencionar expressamente a possibilidade de uso penal dessas informações é o da Convenção entre Brasil e Hungria (decreto 53/1991), que menciona a possibilidade de troca de informações para “instauração de processos sobre delitos relativos a esses impostos”, e o da Convenção entre Brasil e a antiga Tchecoslováquia (decreto 43/1991) e continua vigente para a República Tcheca e a Eslováquia, que adota redação semelhante. Ou seja, nesses casos, poderia haver o uso das informações para fins penais, desde que isso tenha sido expressamente mencionado e motivado a cooperação. Quanto aos demais textos examinados, fica claro que a limitação para uso impossibilita o aproveitamento de informações fiscais para fins penais, incluindo para a formalização de representação fiscal para fins penais.
Isso não significa que o uso dessas mesmas informações seja impossível na esfera penal, mas somente que deverão ser alvo de procedimento de cooperação jurídica internacional próprio para essa finalidade. Para isso, o procedimento a ser seguido é aquele previsto nos tratados de cooperação para fins penais, como aqueles que regem a expedição e o processamento de MLATs. Nesse cenário, o Estado rogado poderá exercer novo controle de legalidade para o fornecimento (ou não) desses dados, incluindo controles sobre dupla incriminação, respeito a direitos fundamentais, entre outros.
Conclusão
Por todo o exame realizado, chega-se à conclusão de que a cooperação internacional para fins tributários, não obstante seja de vital importância para a administração e cobrança de tributos e para o sancionamento de condutas ilícitas, não pode ser livremente estendida para fins penais. Seja pelo diferente estatuto processual que rege a atividade de persecução penal, seja pela diferença estrutural entre os ilícitos e as sanções cominadas, há de se impor uma interpretação restritiva do princípio da especialidade. Do contrário, estar-se-ia sancionando um livre intercâmbio interno de dados e informações sigilosas obtidas internacionalmente que pode, simultaneamente, representar uma ameaça à soberania de cada Estado e uma violação aos direitos fundamentais do indivíduo. Dessa forma, o meio adequado de balizar a necessária cooperação internacional para fins penais com os direitos fundamentais é o de resguardar a finalidade estrita de cada pedido de cooperação.
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1 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, RE 1.055.941, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, j. 04/12/2019, DJe 06/10/2020.
2 Cartilha cooperação jurídica internacional em matéria penal / Secretaria Nacional de Justiça; elaboração e organização: Ricardo Andrade Saadi, Camila Colares Bezerra. -- Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Justiça (SNJ), Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI), 2012, p. 15.
3 Idem, ibidem.