O recente julgamento do REsp 2.218.453, pela 3ª turma do STJ, reacendeu o debate sobre os limites da atuação do juízo da recuperação judicial em face da autonomia contratual, especialmente quanto à possibilidade de intervenção em contratos privados. Na oportunidade, discutiu-se se caberia ao juízo recuperacional determinar, nos próprios autos da recuperação, a renovação compulsória do contrato de afiliação firmado entre a TV Gazeta de Alagoas e a Rede Globo, relativo à retransmissão do sinal no Estado, por mais cinco anos. O vínculo foi considerado essencial à sobrevivência da empresa em crise, e o pedido, deferido pelo juízo da recuperação, acabou sendo mantido pelo Tribunal de Justiça de Alagoas, que reconheceu a medida como necessária para a preservação de empregos e para a proteção dos interesses dos credores.
Em recurso ao STJ, a Globo sustentou, entre outros pontos, que o juízo da recuperação seria incompetente para decidir sobre a renovação compulsória do contrato, sobretudo diante da cláusula expressa de eleição de foro. Argumentou ainda que a medida não encontrava respaldo na lei 11.101/05, representando extrapolação do princípio da preservação da empresa e violação à autonomia contratual.
A decisão da Corte Superior, por maioria, manteve o acórdão do Tribunal de Justiça de Alagoas que havia autorizado a prorrogação contratual. Para a corrente vencedora, capitaneada pelo ministro Humberto Martins, a intervenção judicial encontrou fundamento no art. 47 da lei 11.101/05, que consagra o princípio da preservação da empresa e a necessidade de manutenção da atividade econômica, dos empregos e da função social.
O relator, ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, apresentou voto divergente, sustentando que a competência do juízo recuperacional não é ilimitada e que a intervenção deveria se restringir a atos de constrição patrimonial e bens de capital em sentido estrito. Para ele, o contrato discutido não poderia ser equiparado a bem essencial, sobretudo diante do seu prazo determinado e da ausência de menção ao vínculo no plano de recuperação. Essa visão, acompanhada pela ministra Nancy Andrighi, re?etiu a preocupação em resguardar a segurança jurídica e a autonomia contratual, pilares do Direito Privado.
Embora a lei 11.101/05 não preveja expressamente a possibilidade de o magistrado impor a prorrogação de contratos, a maioria dos ministros entendeu que, em situações excepcionais, o juízo da recuperação pode exercer sua competência como “juízo universal” para adotar medidas atípicas indispensáveis à preservação da empresa. Tal compreensão amplia o conceito de essencialidade, permitindo que contratos estratégicos e ativos incorpóreos sejam reconhecidos como fundamentais à reestruturação e legitimando, em caráter pontual, a intervenção judicial, ainda que isso implique relativizar a autonomia da vontade ou a interpretação literal da lei.
A discussão é particularmente relevante no cenário econômico atual, marcado por crises globais, tensões comerciais e instabilidade no crédito, que aumentam as dificuldades para empresas em situação de insolvência. Nesse contexto, surgem questionamentos sobre até que ponto a rigidez contratual deve prevalecer quando está em jogo a viabilidade de grupos empresariais que desempenham papel econômico e social significativo. A decisão do STJ pode ser interpretada como uma priorização da preservação da empresa em relação a formalismos processuais, especialmente quando a interrupção de um contrato essencial pode significar falência imediata e perda irreversível de valor econômico e social.
No caso concreto, o STJ levou em consideração que o contrato discutido representava cerca de 70% do faturamento da TV Gazeta de Alagoas, de modo que sua suspensão poderia inviabilizar a continuidade do processo de recuperação judicial e levar à demissão de aproximadamente duzentos empregados. Tal circunstância foi determinante para a conclusão de que a renovação compulsória constituía medida necessária à preservação da atividade empresarial.
Trata-se, portanto, de um exemplo paradigmático da função teleológica do direito da insolvência, em que o objetivo maior de preservação da empresa, previsto expressamente na legislação, prevalece sobre a estrita leitura de competências ou sobre a lógica puramente contratual. A medida não representa, é certo, a criação de um precedente de intervenção ilimitada: ela se ancora na excepcionalidade do caso, na relevância econômica do contrato e na correlação entre sua manutenção e a viabilidade do processo recuperacional.
O julgamento do REsp 2.218.453, nesse sentido, conduz a uma re?exão inevitável: até que ponto o juízo da recuperação pode (e deve) intervir em relações privadas para garantir a sobrevivência da empresa? Embora a doutrina majoritária alerte para os riscos da excessiva intervenção judicial, a decisão indica que, em cenários de crise empresarial, a aplicação estrita da lei pode não ser suficiente para alcançar o objetivo de preservação da empresa previsto na legislação. E é nesse espaço de tensão que a hermenêutica judicial desempenha papel crucial, ora aproximando o direito das necessidades concretas da economia e da sociedade.