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Deepfake e IA generativa: Ainda dá para separar o ovo da galinha?

A possibilidade de criar conteúdos falsos do zero traz uma nova e mais desafiadora preocupação para as eleições de 2026.

17/9/2025

Nos últimos anos, vimos surgir uma avalanche de conteúdos criados por IA - inteligência artificial que imitam rostos, vozes, trejeitos e até sentimentos humanos. Popularmente conhecidos como deepfakes, esses conteúdos evoluíram a passos largos, saindo da fase experimental para se tornarem um desafio real - especialmente para o Direito Eleitoral.

O que era deepfake e o que virou?

No início, só se chamava deepfake aquilo que partia de um conteúdo pré-existente: uma imagem, um vídeo ou um áudio reais serviam de base para gerar algo novo e modificado. A lógica era: pegar um material original e, com a ajuda da IA, transformá-lo - mudando o rosto de alguém, sincronizando lábios com falas diferentes ou manipulando expressões corporais.

Mas o cenário mudou. Hoje, com a IA generativa, já é possível criar conteúdos falsos do zero, sem a necessidade de um material base específico. Basta treinar um sistema com diversos dados públicos - como vídeos no YouTube, entrevistas ou falas em redes sociais - e ele pode “reconstruir” uma imagem ou voz, criando o que chamamos de mídia sintética totalmente artificial (FSM - Fully Synthetic Media).

A metáfora do “ovo e da galinha” ilustra bem essa transformação: se antes era preciso o “ovo” para gerar a “galinha”, agora já temos galinhas aparecendo do nada, formadas por dados dispersos, códigos e redes neurais. E essas galinhas - bem treinadas - podem cacarejar verdades ou mentiras com a mesma aparência de realidade.

Como o Direito Eleitoral lida com isso?

A legislação eleitoral brasileira se apressou em tentar responder a essa novidade, especialmente com a inclusão dos arts. 9º-B e 9º-C na resolução de propaganda eleitoral, que tratam diretamente do uso de conteúdos criados por IA na propaganda eleitoral.

Segundo o art. 9º-B, qualquer uso de IA para criar, alterar ou mesclar sons e imagens em campanhas eleitorais deve ser explicitamente informado. A regra é clara: o público precisa saber que aquele conteúdo foi manipulado por tecnologia. Já o art. 9º-C vai além e proíbe o uso de conteúdos falsos ou descontextualizados que possam desequilibrar a disputa ou afetar a integridade do processo eleitoral.

Em resumo, o foco está no risco de enganar o eleitor e criar vantagens artificiais para alguns candidatos.

Definir ou julgar: O que é, afinal, uma deepfake?

Esse debate nos leva a outro ponto importante: como devemos definir “deepfake”? 

Há duas possibilidades. A primeira, considera qualquer conteúdo sintético gerado por IA como deepfake, sem se preocupar com o uso que se faz dele. A segunda, define deepfake como o uso malicioso da IA - ou seja, apenas quando a tecnologia é usada para enganar, manipular ou prejudicar.

A segunda definição tem suas vantagens: ajuda a proteger os bons usos da tecnologia (como vídeos educativos, sátiras e homenagens), evita o alarmismo e reforça o princípio da intervenção mínima do Direito - especialmente no campo penal e sancionador. 

No entanto, o TSE - Tribunal Superior Eleitoral preferiu adotar, ao menos por enquanto, uma abordagem mais cautelosa.

Essa escolha faz sentido. Estamos falando de uma tecnologia com alto potencial de desequilíbrio, cujo acesso ainda é limitado a quem tem mais recursos e conhecimento técnico. Proteger a igualdade de oportunidades entre os candidatos e prevenir a confusão do eleitor são preocupações legítimas - mesmo que, no futuro, o caminho ideal seja afunilar o conceito e regular apenas os usos danosos.

Conclusão

O avanço das deepfakes e da IA generativa muda não só a forma como consumimos informação, mas também como pensamos o direito à imagem, à verdade e à igualdade em disputas eleitorais. A tecnologia não é, por si só, boa ou má - o que importa é como a usamos e com quais efeitos.

Se a galinha já nasce sem ovo, o Direito precisa, ao menos, garantir que ela não bote mentiras travestidas de verdades no ninho da democracia.

Marina Morais
Sócia do APMS Advogados. Mestra em Ciência Política pela Universidade Federal de Goiás. Especialista em Direito Eleitoral. Autora do livro "Introdução ao Direito Eleitoral" (Lumen Juris, 2024). Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - ABRADEP.

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