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PLP 108/24: A caixa de Pandora da base de cálculo do ITCMD em holdings familiares

O PLP 108/24 substitui critérios objetivos do ITCMD por conceitos subjetivos como "fundo de comércio", criando insegurança jurídica no planejamento sucessório de holdings familiares.

23/9/2025

A mitologia grega narra que Zeus, irritado com Prometeu por ter roubado o fogo dos deuses, enviou Pandora à Terra portando uma caixa misteriosa. Advertida para jamais abri-la, a curiosidade prevaleceu. Quando o lacre foi rompido, todos os males escaparam: doenças, guerras, discórdia. Apenas a esperança permaneceu no fundo, oferecendo consolo diante das desgraças liberadas.

O PLP 108/24, tal como a caixa de Pandora, promete solucionar problemas do ITCMD, mas pode liberar incertezas que abalariam a segurança jurídica do planejamento sucessório. Aprovado pela CCJ do Senado em 17/9/25, o projeto propõe alterar fundamentalmente a base de cálculo do ITCMD para transmissões de quotas não negociadas em bolsa.

A mudança proposta substituiria a objetividade do valor patrimonial pela subjetividade do "valor de mercado acrescido do fundo de comércio". Analisemos, portanto, os aspectos técnicos e jurídicos desta transformação que promete desordenar o (já conflituoso) direito tributário sucessório brasileiro.

O PLP 108/24

O projeto originalmente aprovado pela Câmara dos Deputados continha aberração técnica inaceitável: a utilização de "projeção de fluxos futuros de renda" como base de cálculo do ITCMD em holdings familiares. Esta previsão significaria tributar patrimônio inexistente.

Imagine-se holding que administra imóveis devendo pagar ITCMD sobre aluguéis futuros não realizados. O absurdo é evidente: tributar-se-ia expectativa, não realidade patrimonial.

O senador Eduardo Braga suprimiu esta distorção, reafirmando o patrimônio líquido como ponto de partida.

Não obstante essa correção necessária, o texto atualmente em tramitação introduz nova complexidade problemática que demanda análise cuidadosa. Agora se prevê como base de cálculo do ITCMD na transmissão de quotas ou ações que não são negociadas na bolsa de valores seja calculada com base no valor de mercado dos bens que compõem o patrimônio líquido da empresa, acrescido do valor de mercado do fundo de comércio, conforme estabelecido na legislação do ente tributante.

Esta redação aparentemente técnica esconderia três problemas fundamentais que comprometeriam a segurança jurídica tributária.

1. A indefinição de critérios objetivos conferiria margem ilimitada para majorar a base de cálculo. Trata-se de potencial violação frontal ao princípio da legalidade tributária, que exige definição precisa dos elementos essenciais do tributo. Se a lei estabelece apenas o piso, qual seria o teto? A discricionariedade administrativa tornar-se-ia absoluta, permitindo que autoridades fiscais arbitrem valores sem limitação legal. Esta abertura interpretativa comprometeria a previsibilidade essencial ao planejamento tributário.

2. O conceito "valor de mercado do fundo de comércio" carece de definição técnica precisa na legislação tributária brasileira. Tradicionalmente, fundo de comércio representa sobrevalor empresarial decorrente de elementos intangíveis: clientela consolidada, marca reconhecida, know-how específico, expectativa de lucros futuros. Em holdings familiares, cuja atividade limita-se estritamente à administração patrimonial, a existência de fundo de comércio significativo é tecnicamente questionável. Considere-se holding familiar que detém exclusivamente imóveis residenciais: qual seria seu fundo de comércio? A relação com inquilinos? O conhecimento do mercado imobiliário local? A subjetividade é manifesta e a arbitrariedade seria inevitável.

3. A delegação aos Estados para estabelecer critérios de avaliação multiplicaria exponencialmente as possibilidades interpretativas. Criar-se-iam, potencialmente, 27 critérios diferentes para conceito tecnicamente indefinido. A mesma holding familiar poderia enfrentar tributação muito diferente conforme a localização geográfica. Esta disparidade violaria a isonomia constitucional e comprometeria qualquer possibilidade de planejamento sucessório nacional consistente.

Impactos na jurisprudência: O mosaico interpretativo

Sinais preocupantes emergem da jurisprudência do STJ. A 2ª turma, no REsp 2.139.412/MT, decidiu que o ITCMD deve ser calculado com base no valor de mercado dos bens integralizados, não pelo valor patrimonial das quotas. O ministro Francisco Falcão fundamentou a decisão nos arts. 38 e 148 do CTN.

Segundo este entendimento, a autoridade administrativa pode arbitrar a base quando os valores declarados não refletem a realidade econômica. Reforçando a relevância desta discussão, o STJ, em 12/8/25, afetou ao rito dos recursos repetitivos a controvérsia sobre se a prerrogativa do fisco de arbitrar a base de cálculo do ITCMD decorre diretamente do CTN ou está sujeita às normas específicas da Unidade da Federação (REsp 2.175.094/SP). Esta decisão sinaliza possível convergência jurisprudencial com a proposta legislativa, o que amplificaria dramaticamente a incerteza interpretativa.

A magnitude do problema interpretativo evidencia-se nas primeiras análises doutrinárias sobre o texto em tramitação. Enquanto alguns especialistas interpretam as mudanças como retorno ao valor patrimonial objetivo, outros identificam a manutenção de elementos subjetivos problemáticos.

Esta divergência inicial entre juristas sobre o mesmo dispositivo legal confirma a potencial abertura da "caixa de Pandora" interpretativa. Tal cenário muito provavelmente caracterizaria a aplicação prática da referida norma, caso aprovada, multiplicando as incertezas no planejamento sucessório.

A inclusão do "fundo de comércio" na base de cálculo agravaria exponencialmente esta fragmentação interpretativa. A fragmentação já foi diagnosticada na jurisprudência nacional sobre arbitramento do ITCMD.

Se atualmente Estados como São Paulo aplicam critérios restritivos baseados em legislação específica, enquanto outros adotam interpretação expansiva do art. 148 do CTN, a eventual aprovação da nova legislação multiplicaria estas divergências por conceito tecnicamente indefinido.

Violações constitucionais e seus impactos

A redação proposta no PLP 108/24 violaria simultaneamente três princípios constitucionais fundamentais do sistema tributário nacional. O princípio da legalidade tributária exige que elementos essenciais do tributo sejam definidos em lei, não delegados à regulamentação administrativa discricionária.

1. A expressão "conforme estabelecido na legislação do ente tributante" transferiria aos Estados a definição de critérios essenciais para mensuração do fundo de comércio. Esta delegação esvaziaria o conteúdo normativo da lei complementar, permitindo que cada unidade federativa crie metodologia própria para conceito central da tributação.

2. O princípio da capacidade contributiva seria violado quando a tributação incidisse sobre valores especulativos que podem exceder dramaticamente a capacidade efetiva de pagamento. Holdings familiares frequentemente concentram patrimônio em ativos de baixa liquidez: imóveis, participações societárias, aplicações de longo prazo. Estes ativos não geram fluxo de caixa suficiente para suportar tributação baseada em avaliações especulativas de elementos intangíveis. A inclusão do fundo de comércio poderia resultar em ITCMD superior ao patrimônio líquido disponível. O contribuinte seria forçado à liquidação de ativos para pagamento de tributo sobre valor que pode ser meramente especulativo.

3. O princípio da segurança jurídica seria comprometido pela impossibilidade de antecipar com precisão o tratamento tributário de operações sucessórias. Contribuintes em situações patrimoniais idênticas enfrentariam tributação diferenciada conforme a interpretação administrativa local sobre conceitos indefinidos. Este cenário criaria ambiente de imprevisibilidade incompatível com planejamentos de longo prazo que caracterizam a estruturação sucessória familiar. A segurança jurídica, valor fundamental do Estado de Direito, restaria comprometida pela subjetividade legislativa.

Os impactos práticos na estruturação societária seriam imediatos e profundos. Holdings constituídas exclusivamente para organizar patrimônio familiar enfrentariam dificuldade conceitual insuperável: como definir fundo de comércio significativo quando a atividade de administração patrimonial não gera, por definição, elementos intangíveis que justifiquem sobrevalor empresarial?

Holdings que detêm quotas de outras sociedades enfrentariam complexidade adicional. Como calcular o fundo de comércio da atividade de "participação societária"? Trata-se de conceito de difícil definição prática e mensuração objetiva.

A insegurança jurídica resultante comprometeria a utilização legítima de holdings familiares como instrumento de organização sucessória. Famílias poderiam ser desencorajadas a utilizar estruturas societárias eficientes, prejudicando o planejamento patrimonial de longo prazo.

Estratégias defensivas para holdings familiares

Diante da possível aprovação da nova legislação, holdings familiares devem adotar estratégias defensivas rigorosas para mitigar os riscos interpretativos que poderiam surgir.

Estratégias defensivas deveriam ser constantemente ajustadas conforme a consolidação de entendimentos jurisprudenciais sobre os conceitos indefinidos que seriam introduzidos pela nova legislação.

Conclusão: A esperança no fundo (bem no fundo) da caixa

Como na narrativa mitológica de Pandora, a proposta de substituição de critérios objetivos consolidados por conceitos tecnicamente indefinidos liberaria incertezas que comprometeriam fundamentalmente a segurança jurídica tributária.

A eventual inclusão do "valor de mercado do fundo de comércio" na base de cálculo do ITCMD representaria retrocesso significativo na evolução do direito tributário brasileiro. A mudança abandonaria décadas de construção jurisprudencial que privilegiou critérios verificáveis e objetivos.

A possível aprovação da nova legislação agravaria exponencialmente a fragmentação interpretativa já diagnosticada na jurisprudência nacional. As divergências estaduais sobre critérios de tributação multiplicar-se-iam, criando ambiente de imprevisibilidade incompatível com planejamentos sucessórios de longo prazo.

As primeiras divergências doutrinárias sobre o alcance das mudanças propostas confirmam a potencial abertura da "caixa de Pandora" interpretativa. Esta abertura comprometeria a aplicação uniforme da norma em território nacional.

Holdings familiares constituem estruturas legítimas de organização patrimonial e sucessória. Contudo, tornar-se-iam reféns de interpretações administrativas imprevisíveis sobre conceitos que carecem de definição técnica precisa.

O planejamento sucessório perderia a previsibilidade necessária para seu adequado desenvolvimento. Esta perda comprometeria a continuidade empresarial e a organização familiar estruturada, valores fundamentais da sociedade brasileira.

Contudo, como na parábola grega, a esperança (que é a última que morre) permanece (bem) no fundo da caixa.

_________

BRASIL. Projeto de Lei Complementar nº 108, de 2024. Relatório da CCJ do Senado Federal. Brasília, DF, 17 set. 2024.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 2.139.412/MT. 2ª Turma. Relator: Min. Francisco Falcão. Julgado em 2024.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 2.175.094/SP. 1ª Seção. Relatora: Min. Maria Thereza de Assis Moura. Afetado aos recursos repetitivos em 12 ago. 2025.

CARRAZZA, Roque Antonio. ITCMD: Aspectos Constitucionais. São Paulo: Saraiva, 2013.

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2019.

COSTA, Regina Helena. Imunidades Tributárias: Teoria e Análise da Jurisprudência do STF. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2015.

Jose Marcello Monteiro Gurgel
Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Sócio do Marins Bertoldi Advogados.

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