1. Introdução
A possibilidade de perpetuação da imagem de personalidades falecidas para fins comerciais tem sido amplamente debatida no campo jurídico e ético, especialmente com os avanços da IA - inteligência artificial. Artistas falecidos, por meio de suas criações, continuam a gerar impacto cultural e econômico, mas o uso de tecnologias como deepfake1 intensificou a discussão sobre os limites do uso da imagem post mortem.
Casos emblemáticos ilustram esta nova realidade. Em 2023, uma música inédita dos Beatles foi lançada com a ajuda de IA para recriar a voz de John Lennon, falecido em 19802. O debate, porém, não é novo. Espetáculos com hologramas, como os de Tupac Shakur (2012)3, Cazuza (2013)4, Renato Russo (2013) e Michael Jackson em 20145, já levantavam questionamentos sobre o respeito à memória do artista e os direitos de exploração de sua imagem, de modo a antecipar as discussões que hoje ganham força com a IA.
A utilização da imagem de um artista após sua morte por meio de IA levanta questões jurídicas complexas, especialmente diante da ausência de regulamentação sobre o tema.
2. O direito à imagem e à voz: Proteção e continuidade após a morte
A CF/88, em seu art. 5º, inciso X6, protege direitos fundamentais como a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. Esses direitos, conhecidos como direitos da personalidade, são definidos por Maria Helena Diniz como garantias que asseguram a dignidade, a individualidade e a proteção contra interferências externas. Por sua natureza extrapatrimonial e caráter personalíssimo, são inalienáveis, imprescritíveis, intransferíveis e, via de regra, vitalícios7. No entanto, em alguns casos, sua proteção pode ser estendida aos herdeiros, de modo a garantir a preservação da memória do falecido.
A consolidação desses direitos reflete evolução histórica que fortaleceu garantias fundamentais, expressas na própria CF/88, que consagra a dignidade da pessoa humana como princípio basilar (art. 1º, III) 8, e no CC, que resguarda os direitos da personalidade (arts. 11 a 21).
Entre esses direitos, destaca-se o direito à imagem, direito autônomo, que confere ao indivíduo controle sobre como sua imagem é divulgada, especialmente no que tange à sua vida privada. Por isso, a utilização da imagem de alguém, salvo exceções previstas em lei, exige consentimento expresso9.
Além da imagem, a voz também é protegida juridicamente. O art. 20 do CC10 garante a preservação da palavra falada e a divulgação de escritos e fatos, bem como a voz humana como parte dos direitos da personalidade. A CF/88, em seu art. 5º, XXVIII, “a” 11, reforça essa proteção.
Nesse contexto, o art. 12 do CC12 estabelece que, em caso de violação dos direitos da personalidade, é possível exigir a cessação da ameaça ou a reparação do dano, inclusive por parte dos herdeiros, que atuam como lesados indiretos. Com a morte, extingue-se a personalidade jurídica do indivíduo e, em regra, seus direitos de personalidade também se encerram. No entanto, a imagem e a honra do falecido continuam protegidas, e seus herdeiros podem intervir para evitar usos indevidos ou explorações comerciais sem autorização. Isso não apenas resguarda a memória do falecido, mas também previne distorções que possam afetar sua reputação.13
Segundo o STJ, o direito à imagem tem dois aspectos: um moral, por ser um direito de personalidade, e outro patrimonial, pois ninguém pode lucrar indevidamente às custas de outra pessoa.14
Assim, os herdeiros, que assumem o espólio do falecido, podem experimentar prejuízo patrimonial direto, uma vez que a exploração indevida da imagem afeta um bem jurídico do qual são legítimos sucessores. Dessa forma, o STJ reconhece que a imagem de uma celebridade mantém efeitos econômicos mesmo após sua morte, de modo a conferir aos herdeiros o direito de buscar indenização, tanto por danos morais quanto materiais15.
3. Deepfake e a exploração econômica da imagem post mortem
Embora o direito à imagem seja um direito da personalidade e, portanto, de natureza extrapatrimonial, sua exploração econômica cria uma interseção com os direitos patrimoniais. Por ser personalíssimo, o direito à imagem é intransmissível, irrenunciável e, em regra, vitalício, de modo que os herdeiros não podem dispor dele como um bem patrimonial, mas apenas zelar por sua proteção, de modo a atuar em defesa da honra do falecido, conforme o preconizado art. 20 do CC.
Nesse contexto, surge a discussão sobre a possibilidade de recriação digital da imagem de pessoas falecidas, especialmente quando há interesses comerciais envolvidos.
A decisão sobre a recriação digital da imagem de uma pessoa falecida deve ficar apenas nas mãos dos herdeiros? Ou há limites jurídicos que protegem a dignidade do falecido e impõem restrições a essa autorização?
Nos Estados Unidos, algumas legislações, como a "California Celebrity Rights Act"16, estabelecem proteção contra o uso não autorizado de réplicas digitais de personalidades falecidas para fins comerciais. A norma permite a utilização dessas réplicas em contextos jornalísticos, documentais, paródicos ou biográficos, desde que não induzam o público a erro ao criar a falsa impressão de que a pessoa falecida participou diretamente da obra. No Brasil, a falta de regulamentação específica gera insegurança jurídica, o que torna urgente a criação de um marco normativo sobre o tema.
4. PL 3.608/23 e a necessidade de regulamentação
Para preencher essa lacuna, foi proposto o PL 3.608/2317, que pretende regular o uso responsável da tecnologia deepfake em relação a pessoas falecidas. No entanto, a proposta não resolve completamente a questão, pois exige que o próprio falecido tenha autorizado previamente a recriação de sua imagem digital, além de requerer a anuência dos herdeiros para sua exploração econômica.
Na prática, essa exigência pode tornar a lei pouco aplicável, já que muitos artistas não anteciparam essa situação em vida. Assim, os herdeiros continuam a ser os responsáveis por decidir se a imagem do falecido pode ou não ser utilizada, o que reforça a necessidade de diretrizes claras sobre o tema.
Nesse sentido, ainda que os sucessores possam autorizar ou restringir seu uso, essa autorização deveria, em tese, respeitar a autonomia privada do falecido, princípio fundamental que lhe conferia, em vida, o poder de praticar ou abster-se de certos atos conforme sua própria decisão18. Desta maneira, a exploração da imagem após a morte não deveria ocorrer sem que houvesse, previamente, um consentimento expresso do titular, o que impediria distorções de sua identidade e asseguraria que sua memória seja preservada de acordo com sua vontade.
No entanto, reconhece-se que a obtenção dessa autorização é impossível em todos os casos, especialmente diante da ausência de regulação para situações em que a pessoa faleceu sem manifestar consentimento sobre essa temática. Nessas circunstâncias, caberia à legislação estabelecer diretrizes para regulamentar o uso da imagem post mortem, de modo que sua representação respeite os atributos cultivados pelo indivíduo em vida e reconhecidos pela sociedade.
A doutrina estrangeira também alerta para os riscos de reduzir os direitos de imagem pós-morte a meros ativos econômicos. Jennifer Rothman, em sua obra sobre o right of publicity19, sustenta que tais direitos, na hipótese de serem manejados apenas para fins patrimoniais, podem desvirtuar a identidade do falecido e permitir que herdeiros ou empresas explorem sua memória de maneira contrária à sua trajetória de vida.
Essa reflexão demonstra que a regulação do tema não se deve limitar a legitimar a autorização dos sucessores, mas requer parâmetros que garantam a preservação da dignidade e da vontade presumida do titular, em sintonia com a tradição brasileira de proteção dos direitos da personalidade.
5. Considerações finais
O avanço da tecnologia deepfake levanta debates complexos sobre o respeito aos direitos da personalidade e a vontade do titular da imagem. Alguns artistas querem garantir que sua imagem e/ou obra sejam perpetuadas digitalmente, enquanto outros preferem que sua trajetória se encerre com sua morte.
Casos famosos evidenciam essa preocupação. A cantora Madonna20, por exemplo, já declarou ser contra o uso de hologramas para representá-la no futuro. Por outro lado, a recriação digital de Elis Regina em um comercial da Volkswagen foi uma decisão dos herdeiros, que recentemente recusaram o uso de holograma em apresentações ao vivo21.
Esses exemplos mostram a importância de cada indivíduo expressar sua vontade de forma documentada, seja por meio de testamento ou outro instrumento jurídico válido. Dessa forma, evitam-se incertezas e garante-se que a memória do falecido seja preservada conforme seus próprios desejos. A regulamentação desse tema precisa equilibrar inovação tecnológica, direitos dos envolvidos e o respeito à memória daqueles que partiram.
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1 Em suma, o Artigo 2º, I, do Projeto de Lei nº 3.608, de 2023, define deepfake como: I - Deepfake: técnica de manipulação digital de dados visuais ou auditivos, para criar conteúdo que simule a aparência ou a voz de uma pessoa, incluindo aquelas que já faleceram;
2 EXAME. Como os Beatles lançaram uma nova música com ajuda da inteligência artificial; ouça. Publicado em: 02 nov. 2023. Disponível em: https://exame.com/inteligencia-artificial/como-os-beatles-lancaram-uma-nova-musica-com-ajuda-da-inteligencia-artificial-ouca . Acesso em: 26 mar. 2025.
3 EXAME. Tecnologia 'ressuscita' rapper Tupac Shakur em show nos EUA. Publicado em: 05 dez. 2023. Disponível em: https://exame.com/tecnologia/tecnologia-ressuscita-rapper-tupac-shakur-em-show-nos-eua Acesso em: 26 mar. 2025.
4 VEJA SÃO PAULO. Cazuza volta aos palcos em forma de holograma. Publicado em: 19 mar 2013. Disponível em: https://vejasp.abril.com.br/cultura-lazer/cazuza-holograma . Acesso em: 26 mar. 2025.
5 EXAME. Michael Jackson ressuscita na forma de holograma. Disponível em: . Acesso em: 26 mar. 2025.
6 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
7 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria Geral do Direito Civil - v. 1. 40. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023, 120-122 pág.
8 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III-a dignidade da pessoa humana;
9 DINIZ, Curso de Direito Civil, 2023, 136-146 pág.
10 Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
11 XXVIII - são assegurados, nos termos da lei:
a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas;
12 “Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.”
13 DINIZ, Curso de Direito Civil, 2023, 146-151 pág.
14 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 74.473/RJ, Quarta Turma, julgado em 23 de fevereiro de 1999, publicado no Diário da Justiça em 21 de junho de 1999
15 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 521.697/RJ, Relator Ministro César Asfor Rocha, Quarta Turma, julgado em 16 de fevereiro de 2006, publicado no Diário da Justiça em 20 de março de 2006,. EMENTA: CIVIL. DANOS MORAIS E MATERIAIS. DIREITO À IMAGEM E À HONRA DE PAI FALECIDO. [...] Ademais, a imagem de pessoa famosa projeta efeitos econômicos para além de sua morte, pelo que os seus sucessores passam a ter, por direito próprio, legitimidade para postularem indenização em juízo, seja por dano moral, seja por dano material. Primeiro recurso especial das autoras parcialmente conhecido e, nessa parte, parcialmente provido. Segundo recurso especial das autoras não conhecido. Recurso da ré conhecido pelo dissídio, mas improvido.
16 CALIFORNIA CIVIL CODE. Section 3344.1. Disponível em: https://leginfo.legislature.ca.gov/faces/codes_displaySection.xhtml?sectionNum=3344.1.&nodeTreePath=9.1.2.2.3&lawCode=CIV . Acesso em:01/04/2025
17 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 3.608, de 2023. Estabelece diretrizes para o uso de deepfakes pós-morte. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2374333 Acesso em: 03/04/2025
18 DINIZ, Curso de Direito Civil, 2023, 146-151 pág.
19 ROTHMAN, Jennifer E. The Right of Publicity: Privacy Reimagined for a Public World. Cambridge: Harvard University Press, 2018. Disponível em: https://scholarship.law.upenn.edu/faculty_scholarship/3082/?utm_source=chatgpt.com
20 REZENDE, M. Hologramas, direitos autorais e herança: o que a Madonna exige após sua morte. Exame, 2023. Disponível em: https://exame.com/pop/hologramas-direitos-autorais-e-heranca-o-que-a-madonna-exige-apos-sua-morte Acesso em: 03/04/2025
21 GOMES, I. "Nunca vamos usar", diz filho de Elis Regina sobre holograma em show. CNN Brasil, 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/nunca-vamos-usar-diz-filho-de-elis-regina-sobre-holograma-em-show Acesso em:01/04/2025