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Kompetenz-Kompetenz: a necessária (re)afirmação contínua

Dimensões do Kompetenz-Kompetenz: análise do caso "Estaleiro Rio Tietê Ltda. e a Petrobras Transporte S.A. – Transpetro", julgado pelo TJ/RJ.

2/10/2025

Em recentíssima decisão, aos 21/8/25, o TJ/RJ, em acórdão relatado pelo desembargador Humberto Dalla Bernardina de Pinho, julgado na 5ª Câmara de Direito Privado, reafirmou a centralidade do princípio da competência-competência (Kompetenz-Kompetenz), produzindo acórdão lapidar e que servirá de orientação jurisprudencial para litígios futuros.  

No que tange à arbitragem, o colegiado do TJ/RJ teve a oportunidade de analisar um litígio de alta complexidade, que teve origem em contrato firmado entre o Estaleiro Rio Tietê Ltda. e a Petrobras Transporte S.A. – Transpetro, após procedimento licitatório que resultou na contratação para a construção de vinte comboios fluviais, compostos por empurradores e barcaças, destinados ao transporte de etanol pela hidrovia Tietê–Paraná.

Durante a execução contratual, sobreveio a crise hídrica de 2015, considerada pela autora como fato imprevisível e inevitável, que teria comprometido o cronograma de entrega das embarcações e, por consequência, alterado as condições financeiras ajustadas. O Estaleiro alegou ter suportado prejuízos significativos, mesmo após esforços para mitigar os efeitos do evento fortuito, e apontou a postura da Transpetro como abusiva ao promover a resilição unilateral do contrato.

A partir desse quadro, o Estaleiro ajuizou ação de responsabilidade civil perante o Judiciário, postulando indenização por danos emergentes e lucros cessantes que, somados, alcançaram a expressiva cifra de R$ 342.650 milhões. Em contrapartida, a Transpetro invocou, em sede de preliminar, a existência de cláusula compromissória arbitral constante do contrato, sustentando a incompetência absoluta da Justiça estatal para apreciar a demanda, valendo-se da exceção de arbitragem, prevista no art. 337, X do CPC. 

O caso merece atenção por contar com cláusula de resolução de litígios com redação não convencional, estabelecendo que apenas as “disputas técnicas” decorrentes da execução contratual seriam submetidas à arbitragem. Essa limitação textual, em um primeiro olhar, poderia ensejar dúvidas acerca da abrangência da convenção arbitral e da sua aptidão para gerar os efeitos típicos previstos na lei de arbitragem.

Assim, a questão posta em litígio, no que tange à exceção de arbitragem, pode ser reconduzida a um ponto central: um clausulado que prevê a submissão de “disputas técnicas” à arbitragem é suficiente para produzir o efeito negativo e positivo da convenção arbitral, afastando a jurisdição do Poder Judiciário e permitindo a instauração da arbitragem?

O efeito negativo e positivo da convenção de arbitragem são verso e anverso da mesma moeda. Pelo primeiro, impede-se que determinada questão seja apreciada pela jurisdição estatal. Pelo segundo, confere-se à jurisdição arbitral o poder de emitir pronunciamento de mérito sobre essa mesma questão. Assim, os efeitos negativo e positivo operam no âmbito jurisdicional: o primeiro fechando a possibilidade de manifestação pelo Poder Judiciário, e o segundo abrindo as portas da via arbitral. 

A convenção de arbitragem exerce, precipuamente, função constitutiva da jurisdição. Cria-se, originalmente, a jurisdição arbitral, na medida em que permite a constituição do tribunal arbitral. Nesse sentido, o efeito positivo da convenção de arbitragem diz respeito à possibilidade de as partes provocarem a tutela jurisdicional satisfativa a ser prestada pelo tribunal arbitral. 

O direito de ação representa a prerrogativa de procurar a jurisdição como forma de obter a efetivação, no plano material, dos direitos. O indivíduo, por meio da ação, retira a jurisdição da inércia, pleiteando determinada tutela jurisdicional. Caso não se opte pela via arbitral, o direito de ação será exercido perante o Poder Judiciário, provocando a jurisdição do Estado. Diversamente, por meio da pactuação da convenção de arbitragem, as partes poderão passar a exercer a ação em face da jurisdição arbitral.

Essa perspectiva sobre a convenção de arbitragem já era vislumbrada no Direito brasileiro mesmo antes da edição da lei de arbitragem. Nesse sentido, explicava Clóvis do Couto e Silva: “o compromisso não é um ato produtor de direitos e obrigações tão somente. Ele detém uma categoria maior; é considerado como um ato de organização jurídica, porquanto dele se origina o juízo arbitral”.

O âmbito do efeito positivo corresponde ao âmbito da convenção de arbitragem. Todas as disputas inseridas no seu núcleo objetivo e subjetivo estão sujeitas a serem dirimidas perante a jurisdição arbitral, podendo ser coativamente exigidas pelas partes da convenção de arbitragem. Por essa razão, percebe-se que os limites da jurisdição do tribunal arbitral correspondem aos próprios limites da convenção de arbitragem. Já o efeito negativo da convenção de arbitragem está intimamente relacionado com a irretratabilidade dos contratos. Uma vez pactuado, ambas as partes podem tanto (i) demandar o cumprimento específico da avença quanto (ii) se opor a tentativa de não cumprimento nos estritos termos ajustados. Trata-se de prerrogativas que assistem às partes, quando optam pela via arbitral, como forma de propiciar a plena utilidade desse método de solução de litígios.  

O efeito negativo da convenção de arbitragem opera, somente, quanto à possibilidade de haver pronunciamento jurisdicional definitivo quanto ao mérito da causa pelo Poder Judiciário. Assim, justifica-se o Kompetenz-Kompetenz, consagrado no art. 8º, parágrafo único, e art. 19 da lei de arbitragem. Notadamente, dispõe o art. 8º dispõe que “caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória”.

Eis a regra geral, a qual somente poderá ser afastada em casos nos quais o vício é manifesto, identificável prima facie - como são as hipóteses consagradas jurisprudencialmente de cláusula compromissória em contrato de consumo ou em contrato de adesão sem negrito ou visto apartado - incumbe ao tribunal arbitral analisar a convenção de arbitragem, identificando seus elemento de existência, requisitos de validade e fatores de eficácia. Foi este o compromisso internacional assumido pelo país quanto a arbitragem, por meio da internalização da Convenção de Nova York. Esta, em seu art. II (3), prevê que “o tribunal de um Estado signatário, quando de posse de ação sobre matéria com relação à qual as partes tenham estabelecido acordo nos termos do presente artigo, a pedido de uma delas, encaminhará as partes à arbitragem, a menos que constate que tal acordo é nulo e sem efeitos, inoperante ou inexequível”.

Ora, no caso analisado pelo TJ/RJ, lapidarmente decidido, os elementos de existência da convenção de arbitragem estão presentes: há disposição quanto à submissão do litígio à jurisdição arbitral. O efeito negativo é consequência imediata da vinculabilidade dos contratos. Todo e qualquer fato jurídico produzirá um efeito mínimo. Conforme Pontes de Miranda, “demasiado atentos às categorias de obrigação, de posição passiva na ação e de posição passiva na exceção, os juristas descuraram o estudo do efeito mínimo, isto é, o efeito que seria o único. Se algum ato jurídico tem um efeito, já não é êle totalmente ineficaz. A vinculação aparece, como o efeito mínimo, tratando-se de ato humano que entra no mundo jurídico e é eficaz, mas a oferta revogável é eficaz enquanto não se revoga e se teria de dilatar o conceito de vinculação”. 

Assim, o TJ/RJ, em voto conduzido pelo desembargador Humberto Dalla de Pinho, adotou a postura compatível com o compromisso internacional assumido por meio da Convenção de Nova York: reconhecer que incumbe ao tribunal arbitral interpretar o significado da expressão “disputas técnicas”, e definir - a partir daí - os limites da própria jurisdição. No momento processual em questão, diante da inexistência de vício cognoscível sine oculi, e da não configuração de patologia patente e manifesta, a postura devida pelo Poder Judiciário - neste momento - é a de contenção. 

Posteriormente, com a instituição da arbitragem, deverá o tribunal arbitral analisar, à luz dos arts. 112 e 113 do CC, e do princípio favor arbitrandum, verificar o delineamento da jurisdição arbitral, no caso concreto, e identificar se a disputa em questão está ou não inserida no escopo objetivo da convenção de arbitragem. 

Conforme sustentado em outra oportunidade, aspectos atrelados à identificação do consentimento em relação à convenção de arbitragem poderão ser analisados à luz dos arts. 112 e 113 do CC, enquanto elementos do objeto material da convenção de arbitragem deverão ser vistos sob as luzes do art. 114 - análise da extensão horizontal e vertical da convenção de arbitragem. A razão para a distinção é simples: tendo-se dúvida sobre a existência da manifestação da vontade das partes, é possível adotar a postura pró-arbitragem (favor arbitrandum), analisando tais questões a partir dos arts. 112 e 113 do CC. Contudo, se a questão se refere à extensão - objeto - da renúncia feita pelas partes às prerrogativas processuais inerentes ao Poder Judiciário, está-se diante da situação prevista no art. 114 do CC, que exige interpretação restritiva. 

Assim, há uma possibilidade teórica de que o tribunal arbitral, ao interpretar a cláusula em questão, compreenda que a disputa concreta não está sob sua jurisdição e a decline. Desta forma, caberá à parte que alega o inadimplemento, reiniciar a demanda perante o Poder Judiciário. Contudo, pela sistemática da lei de arbitragem e da Convenção de Nova York, essa conclusão (i) deve ser tomada pelo tribunal arbitral, após análise exauriente de todos os elementos de prova e (ii) o Poder Judiciário poderá se manifestar novamente sobre o tema após a análise jurisdicional do tribunal arbitral - seja (a) em processo de conhecimento após eventual constatação de disputa fora do escopo da convenção de arbitragem ou (b) em sede de ação anulatória - momento processual oportuno para que o Poder Judiciário analise em cognição exauriente o escopo da convenção de arbitragem.

Diante da incompatibilidade das anti-suit injunctions com o Direito brasileiro, e com o modelo de Kompetenz-Kompetenz adotado no país, por meio da lei de arbitragem e Convenção de Nova York, o TJ/RJ adotou a postura correta ao restringir, neste momento, a análise da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem a vícios óbvios e manifestos - inequivocamente ausentes no caso - e declinou para que tribunal arbitral constituído verifique o sentido da previsão de que “disputas técnicas” deverão ser submetidas à arbitragem. 

Eventual irresignação da contraparte quanto à jurisdição arbitral deverá ser efetuada no primeiro momento da fase escrita, após a constituição do tribunal arbitral, alegando, possivelmente, que a interpretação restritiva da expressão “disputa técnica”, à luz do art. 114 do CC, não permite que, in casu, a disputa seja decidida por arbitragem; ao revés, a parte que deseja arbitrar, poderá trazer elementos que indiquem a compatibilidade da lide concreta aos termos da convenção de arbitragem. Em suma, somente em cognição exauriente e com todos os elementos de prova que esta decisão poderá ser tomada pelos árbitros. E, corretamente, reconhecido à perfeição pelo TJ/RJ. 

José Antonio Fichtner
José Antonio Fichtner se destaca como advogado, escritor, mediador, árbitro e professor, sendo reconhecido e listado nas principais instituições jurídicas arbitrais brasileiras.

Rodrigo Salton
Mestrando em Direito Civil (UERJ). Bacharel em Direito pela UFRGS. Especialização em Direito Civil e Processo Civil na FMP. LLM em Advocacia Corporativa na FMP. Advogado. Sócio de Fichtner Advogados.

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