Migalhas de Peso

Comitê Gestor do IBS e o quarto poder

A criação do Comitê Gestor representa o nascimento de um novo e sui generis poder, que concorrerá com a autonomia dos entes subnacionais e o equilíbrio federativo estabelecido pela Constituição.

1/10/2025

De acordo com o texto aprovado na EC 132/23, o Comitê Gestor será uma entidade pública de regime especial e terá independência técnica, administrativa, orçamentária e financeira. Até que a segunda lei complementar da reforma tributária seja sancionada, espera-se que o legislador atue com a devida cautela respeitando os princípios do pacto federativo, considerando que a gestão da arrecadação do IBS, incluindo a operacionalização do sistema de crédito e débito e a devolução dos saldos credores aos seus respectivos titulares, será de competência exclusiva do Comitê Gestor, assim como a interpretação da legislação tributária referente ao imposto.

O constituinte derivado também atribuiu ao Comitê Gestor competências de grande importância, conferindo à sua atuação não apenas um caráter técnico, mas também político, o qual abarca mais de 25 competências administrativas, assim previstas nos incisos do parágrafo 1º do art. 2º do PL 108/24.

Desta forma, os entes estaduais, distrital e municipais delegarão ao Comitê Gestor as suas competências para editar regulamentos, uniformizar a interpretação e aplicar a legislação relativa ao IBS.

À primeira vista, a extinção do ICMS e do ISS poderia sugerir uma supressão de competências dos entes subnacionais, mas considerando que estes entes continuarão a exercer atribuições fundamentais, incluindo a edição de regulamentos, a uniformização da interpretação e aplicação da legislação, bem como a arrecadação por meio do Comitê Gestor, no qual possuem representatividade garantida, essa percepção inicial não se confirma.

Na verdade, a criação do Comitê Gestor parece ser a solução encontrada para simplificar e unificar a arrecadação do ICMS e ISS. Por outro lado, retira dos entes subnacionais a sua participação na gestão do imposto que virá em substituição.

Nessa toada, já há um intenso debate se o Comitê Gestor não passaria a figurar como uma espécie de “quarto poder”. Essa discussão opera em duas dimensões: (i) uma constitucional, que questiona sua validade à luz da forma federativa de Estado, e (ii) outra administrativa, relacionada à estrutura e operacionalização das suas competências.

Um dos pontos que mais chama a atenção é a previsão expressa da competência do Comitê para decidir o contencioso administrativo (art. 156-B, III, da CRFB/88).

Por meio da disposição constitucional é possível concluir que o Comitê Gestor foi discretamente alçado à condição de “Carf” do IBS, o que enseja os mais variados questionamentos. Até mesmo porque a atuação do Comitê não estará adstrita a qualquer vinculação, tutela ou subordinação hierárquica a qualquer órgão da Administração Pública, o que torna essa entidade pública ainda mais sui generis.

Apesar dos benefícios trazidos pela reforma tributária, as modificações no que diz respeito à criação do Comitê Gestor apresentam indícios de uma redução da forma federativa do Estado.

No tocante à instituição dos impostos, por exemplo, enquanto atualmente o ICMS e o ISS são de competência estadual, distrital e municipal, respectivamente, e instituídos por leis próprias, o IBS, de natureza compartilhada, será instituído por lei complementar nacional, retirando-se do respectivo ente subnacional a autonomia legislativa para instituição do seu próprio tributo.

Nesse ponto, verifica-se uma significativa redução da autonomia legislativa dos entes estaduais, distrital e municipais, acompanhada do fortalecimento do poder federal à justificativa de uniformização e simplificação.

Quanto à estrutura administrativa, que envolve a atribuição de arrecadar, administrar e distribuir o IBS, essa atribuição incumbirá ao Comitê Gestor como entidade representativa em detrimento do ente federativo que antes atuava diretamente. Ocorrerá, aqui, uma espécie de transferência de exercício da competência sem a alteração da titularidade.

É dizer: os entes subnacionais continuam sendo competentes pelo tributo compartilhado, mas a sua capacidade tributária passará a ser exercida via Comitê Gestor em prol da tão sonhada simplicidade e uniformidade tributária.

Por essas razões, a criação do Comitê Gestor do IBS representa o nascimento de um quarto poder, eis que transfere as autonomias financeira, administrativa, normativa e política dos entes subnacionais a uma atuação representativa por meio do Comitê.

No entanto, a centralização da gestão, da interpretação normativa e do contencioso administrativo em um órgão interfederativo com independência técnica, administrativa, orçamentária e financeira suscita preocupações relevantes quanto ao respeito ao princípio do pacto federativo. A amplitude das competências atribuídas ao Comitê Gestor, que extrapolam a esfera técnica e adentram aspectos legislativos e administrativos dos entes subnacionais, aponta para uma reconfiguração do federalismo brasileiro.

Tal estrutura compromete a autonomia dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, que, embora ainda formalmente competentes, terão sua atuação tributária substancialmente comedida por uma entidade pública de regime especial caracterizada pela plena ausência de subordinação.

Portanto, apesar de a reforma tributária trazer inegáveis avanços em termos de racionalidade e simplificação, a criação do Comitê Gestor representa o nascimento de um novo e sui generis poder, que concorrerá com a autonomia dos entes subnacionais e o equilíbrio federativo estabelecido pela Constituição da República.

Mariana de Oliveira Ferreira
Advogada formada pela Faculdade IBMEC, com LL.M. em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas. Mestranda em Direito Tributário pela UERJ. Foi membro da Comissão Especial de Assuntos Tributários da OAB/RJ no ano de 2018. Atua no Murayama, Affonso Ferreira e Mota Advogados na área de contencioso e consultivo tributário.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Abertura de empresas e a assinatura do contador: Blindagem ou burocracia?

3/12/2025

Como tornar o ambiente digital mais seguro para crianças?

3/12/2025

Recuperações judiciais em alta em 2025: Quando o mercado nos lembra que agir cedo é um ato de sabedoria

3/12/2025

Seguros de danos, responsabilidade civil e o papel das cooperativas no Brasil

3/12/2025

ADPF do aborto - O poder de legislar é exclusivamente do Congresso Nacional

2/12/2025