Breve panorama
O termo “programa de integridade” há tempos deixou de ser um jargão corporativo restrito ao setor privado para se tornar um pilar indispensável (e cada vez mais necessário) também da Administração Pública. Essa transformação conceitual e de aplicabilidade reflete tanto a evolução da legislação quanto a cobrança crescente por transparência, eficiência e combate eficaz à corrupção no setor público.
A lei Federal 12.846, de 1/8/13, conhecida como “Lei Anticorrupção”, foi considerada extremamente inovadora à época de sua edição, pois estabelecia fundamentos objetivos para responsabilizar administrativa e civilmente as pessoas jurídicas que praticassem atos lesivos (elencados em seu art. 5º) contra a Administração Pública, seja ela nacional ou estrangeira.
Contudo, para deflagrar corretamente o procedimento de responsabilização de que trata a referida lei, as Administrações Públicas das três esferas de governo necessitaram não somente estruturar e qualificar seus órgãos de controle interno, mas também precisaram incorporar regramentos de integridade, auditoria, incentivo à denúncia de irregularidades, bem como zelar pela aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, a fim de prevenir, detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos.
Em âmbito Federal, temos dois decretos que ratificam a incorporação dos preceitos basilares de compliance:
- Decreto 9.203, de 22/11/17, que dispõe sobre a política de governança da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional, e
- Decreto 11.529, de 16/5/23, que institui o Sistema de Integridade, Transparência e Acesso à Informação da Administração Pública Federal e a Política de Transparência e Acesso à Informação da Administração Pública Federal.
Esses decretos determinam que os órgãos e entidades da União estruturem programas de integridade internos. Em suma, isso significa a adoção de práticas e políticas permanentes de prevenção de fraudes, gestão de riscos e canais de denúncia efetivos, deixando claro que a integridade passou a ser requisito estruturante da governança estatal, não mais se restringindo a uma política de observância voltada a apenas de entidades privadas.
Estados e municípios, embora não obrigados a seguir automaticamente essas normas, vêm reproduzindo políticas semelhantes, muitas vezes “estimulados” pelos Tribunais de Contas, que já tratam o tema como boa prática administrativa.
No município de Palmas/TO, por exemplo, foi editado o decreto 2.736, de 4/8/25, que instituiu a Política de Governança no âmbito da Administração Direta e Indireta, com o objetivo de estabelecer mecanismos de estratégia e controles necessários para monitorar a atuação da gestão municipal.
Ainda em 2023, no dia 2 de outubro daquele ano, foi editado o decreto 2.423, que dispôs sobre o Código de Conduta Ética aplicável a agentes públicos do município de Palmas.
A estruturação normativa do município de Palmas acerca das regras de compliance evidencia a preocupação do poder público em se ajustar concretamente aos princípios da eficiência e da moralidade públicas
Compliance nas contratações públicas
Do outro lado do balcão, os particulares que contratam com o poder público também têm novas responsabilidades. A lei Federal 14.133/21, nova lei de licitações e contratos administrativos, inovou ao prever:
- A implantação obrigatória de programas de integridade em contratos de grande vulto - aqueles acima de R$ 200 milhões (Art. 25, § 4º);
- O uso da integridade como critério de desempate entre licitantes (Art. 60, IV);
- A possibilidade de reabilitação de empresas punidas, mediante a comprovação de implementação ou aperfeiçoamento de seus programas (Art. 163, Parágrafo único).
O decreto 12.304/24 detalhou como essas exigências devem ser cumpridas, indicando parâmetros mínimos e formas de comprovação.
O freio (correto) do TCU
Se, por um lado, a legislação avançou, por outro, a jurisprudência tem colocado limites. O TCU - Tribunal de Contas da União firmou posição de que é ilegal exigir programa de integridade como documento de habilitação em editais de licitação. Através do acórdão 1467/22 - plenário, os ministros sustentaram que a exigência restringe a competitividade e extrapola os critérios previstos em lei. A lógica, segundo o TCU, é clara: a integridade pode ser exigida após a assinatura do contrato, mas não como barreira de entrada para a disputa.
Programa de integridade como atenuante sancionatório
No campo sancionatório, a já citada lei anticorrupção (lei Federal 12.846/13) e seu regulamento mais recente (decreto 11.129/22) reforçam que as empresas com programas de compliance efetivos podem ter multas atenuadas em processos administrativos. A medida busca incentivar que tais estruturas sejam criadas antes de qualquer ilícito, funcionando como fator concreto de prevenção e de mitigação de riscos
Desafios da implementação
Apesar dos avanços, ainda existem obstáculos: resistência cultural interna e falta de comprometimento da alta gestão; falta de capacitação técnica e de recursos humanos; dificuldade em integrar compliance, controle interno e governança; fragilidade dos mecanismos de responsabilização e monitoramento
Um novo paradigma de governança pública
A mensagem que emerge do conjunto de leis, decretos e decisões é inequívoca: o Estado brasileiro passou a enxergar compliance não como mera política de boas práticas, mas como ferramenta estratégica de gestão e de confiança social. Para a Administração Pública, significa adotar sistemas de integridade internos. Para os fornecedores, significa se preparar para contratos mais exigentes, sob pena de perder competitividade ou enfrentar sanções mais severas.
Num país constantemente ferido por escândalos de corrupção, a consolidação dessa cultura em âmbito municipal pode representar mais que uma obrigação legal: trata-se de um novo paradigma de governança estabelecido por atos normativos eficazes, capaz de elevar a qualidade do gasto público e fortalecer a relação entre Estado, empresas e sociedade.