O caso: Quando o amor supera a ausência de formalidade
A 3ª turma do STJ, por unanimidade, reconheceu a possibilidade de declaração de filiação socioafetiva após a morte dos pais, mesmo sem manifestação formal de vontade do falecido.
O caso (REsp 2.227.835) envolvia uma mulher criada desde a infância por um casal já falecido. Embora nunca houvesse adoção formal, havia um vínculo real, público e contínuo de afeto.
A relatora, ministra Nancy Andrighi, destacou que a questão não tratava de adoção - que exige consentimento formal -, mas sim de socioafetividade, cujo elemento essencial é a convivência duradoura.
“A filiação socioafetiva pós-morte pressupõe o reconhecimento de uma situação fática vivenciada pelas partes, independentemente de manifestação formal pelo de cujus”, afirmou a relatora.
O ministro Moura Ribeiro fez ressalva de entendimento, apontando que o acórdão original tratava de mera guarda. Ainda assim, acompanhou a relatora “para preservar a coerência jurisprudencial da turma”.
O fundamento: posse do estado de filho e publicidade da relação
O reconhecimento da paternidade socioafetiva tem como base a posse do estado de filho, formada pelo trato, fama e nome:
- Trato: a convivência e o cuidado cotidiano;
- Fama: o reconhecimento público da relação;
- Nome: o vínculo simbólico e identitário.
Para o STJ, esses elementos foram amplamente demonstrados. O casal tratava a autora como filha, com afeto público e notório, o que impõe o reconhecimento da filiação socioafetiva.
“Negar a filiação nesse caso seria desconsiderar a dignidade da pessoa humana e a realidade afetiva consolidada”, reforçou a ministra Nancy Andrighi.
O alcance jurídico: igualdade entre filhos e efeitos sucessórios
A decisão reafirma a igualdade plena entre filiação biológica, adotiva e socioafetiva, prevista no art. 227, §6º, da Constituição Federal e no art. 1.596 do CC.
Assim, o reconhecimento:
- assegura registro civil como descendente;
- garante participação na sucessão;
- confere igualdade jurídica e moral entre todos os filhos.
O STJ também reforça que a ausência de manifestação formal não impede o reconhecimento de vínculos legítimos, desde que comprovada a convivência e o afeto público.
O cuidado necessário: prova robusta e equilíbrio jurídico
A decisão não abre portas para reconhecimentos automáticos. O voto do ministro Moura Ribeiro é um lembrete: a filiação socioafetiva post mortem exige prova robusta.
A comprovação deve ser consistente, sob pena de distorcer o instituto e fragilizar relações patrimoniais legítimas.
O STJ equilibrou a sensibilidade afetiva com a segurança jurídica, evitando que o Direito se torne refém da emoção, mas sem negar a sua humanidade.
Um novo marco de sensibilidade jurídica
O REsp 2.227.835 consolida o paradigma do afeto como valor jurídico. O STJ reconhece que a verdade do coração pode ter a mesma força que o vínculo biológico — desde que vivida, reconhecida e comprovada.
“A ausência de papel não apaga a presença do amor”, resume o espírito da decisão.
Ao admitir a filiação socioafetiva post mortem, a Corte reafirma que o Direito de Família deve proteger realidades, não aparências.
Conclusão:
Ao reconhecer a filiação socioafetiva post mortem sem manifestação expressa, o STJ reafirma uma verdade que vai além das provas: quem foi pai ou mãe de coração merece ser reconhecido como tal pelo Direito.
A decisão é mais do que um precedente - é um gesto de justiça afetiva e coerência constitucional.
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Referência técnica
Processo: REsp 2.227.835
Relatora: Ministra Nancy Andrighi
Turma: 3ª turma do STJ
Julgamento: Unânime
Tema: Filiação socioafetiva post mortem sem manifestação expressa do falecido