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Insegurança jurídica e blindagem nas relações de trabalho

Instabilidade nas decisões trabalhistas revela o desafio estrutural do Direito brasileiro em conciliar proteção ao trabalhador e segurança jurídica para as empresas.

15/10/2025
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A tessitura das relações jurídicas entre capital e trabalho no Brasil tem sido, historicamente, marcada por uma dualidade tensa: de um lado, o viés protetivo fundante do Direito do Trabalho, e de outro, a legítima aspiração do empresariado por segurança jurídica, previsibilidade normativa e estabilidade contratual. Tal tensão, longe de ser circunstancial, revela uma crise estrutural do modelo normativo brasileiro, cujos efeitos transbordam o campo jurídico e alcançam diretamente a esfera econômica, dificultando a livre iniciativa, inibindo investimentos e ampliando o custo de conformidade da atividade produtiva.

É inegável que a promulgação da reforma trabalhista, pela lei 13.467/17, representou um marco relevante no intento de conferir maior racionalidade e liberdade negocial às relações laborais. Todavia, a recepção dessa reforma no seio da jurisprudência, bem como a resistência cultural de parcela significativa da magistratura trabalhista, tem gerado o que se pode denominar de “insegurança interpretativa”, por meio da qual a norma reformadora é frequentemente reconduzida ao paradigma anterior, em manifesta subversão de sua teleologia. Isso se agrava com a permanência de institutos como a primazia da realidade - pela qual documentos, acordos e registros formais podem ser desprezados com base em testemunhos ou narrativas subjetivas -, ampliando o espaço da incerteza jurídica e fragilizando o valor do contrato como instrumento de autonomia privada e boa-fé objetiva.

Ilustrativo desse estado de coisas é caso em que atuei em defesa de empresa do ramo da construção e demolição, a qual, diante da gravidade da conduta reiterada de um operador de escavadeira que se apresentava embriagado após o intervalo do almoço, promoveu sua dispensa por justa causa, amparada na inquestionável necessidade de preservar a segurança do canteiro de obras. Não obstante a veracidade dos fatos, a instrução processual revelou-se profundamente desigual: a empresa, pouco orientada quanto à imprescindibilidade de documentação robusta, logrou apresentar apenas um correio eletrônico interno e arrolar testemunha que, temerosa de represálias, negou-se em audiência a confirmar o que antes declarara. O reclamante, por seu turno, municiou-se de prova testemunhal manifestamente temerária, que, malgrado seu caráter falacioso, foi acatada pelo juízo como expressão da verdade real, em frontal desprestígio ao princípio da boa-fé e em detrimento da proteção da coletividade laboral. 

Tal episódio, mais que um revés pontual, expõe de forma cristalina a fragilidade do sistema, no qual a ausência documental do empregador abre campo para a prevalência de narrativas artificiosas e para a produção de verdade processual divorciada da realidade fática - verdadeiro desatino hermenêutico que subverte a finalidade mesma do Direito do Trabalho.

Nesse contexto, o empresário se vê imerso em um verdadeiro labirinto normativo, no qual o cumprimento formal das obrigações trabalhistas não é garantia de imunidade frente a reclamatórias. Ao contrário, a constância de decisões surpreendentes, a heterogeneidade de entendimentos entre tribunais regionais e superiores, e o ativismo judicial orientado por critérios morais subjetivos geram um passivo jurídico oculto, de difícil mensuração, que compromete o planejamento financeiro e estratégico das empresas. O empresário brasileiro, por conseguinte, opera num ambiente de risco não apenas econômico, mas jurídico-existencial: sua permanência no mercado passa a depender não apenas de competência gerencial, mas da habilidade de navegar por um mar revolto de insegurança normativa.

Diante disso, impõe-se à advocacia empresarial a adoção de uma postura ativa, estratégica e preventiva, alicerçada em instrumentos jurídicos que permitam a blindagem - no sentido ético e legítimo da expressão - contra a arbitrariedade e a volatilidade jurisprudencial. 

Tal blindagem não se confunde com subterfúgios ilícitos ou manobras fraudulentas. Ao contrário, exige o mais elevado grau de conformidade com a legislação, somado à documentação robusta, padronização procedimental, treinamento das lideranças internas, e à criação de canais eficazes de gestão de risco. A adoção de contratos de trabalho redigidos com clareza, transparência e aderência à realidade funcional, a implementação de programas de compliance trabalhista com escuta ativa e mecanismos internos de denúncia, bem como o uso de tecnologias para controle de jornada e gestão de dados laborais, são medidas que não apenas resguardam a empresa perante eventuais litígios, mas contribuem para a construção de uma cultura organizacional pautada pela legalidade, eficiência e respeito mútuo.

É igualmente imprescindível que o empresário compreenda os pontos nevrálgicos que mais frequentemente dão ensejo a demandas judiciais, tais como o uso indevido de contratos de pessoa jurídica para mascarar vínculos empregatícios, a terceirização sem fiscalização efetiva, o acúmulo de funções não remuneradas, e as práticas organizacionais que ensejem, ainda que indiretamente, a configuração de assédio moral. Em tais hipóteses, a melhor defesa é a prevenção: não basta contar com uma boa banca de contencioso, se a cultura interna da empresa negligencia o cuidado com as relações humanas e jurídicas em seu seio.

A propósito, é preciso recordar que a função social da empresa, prevista no art. 170 da CF/88, não é um conceito retórico, tampouco um princípio eticamente neutro. Trata-se de um critério normativo concreto, que impõe à empresa um dever de conduta compatível com a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento econômico e a harmonia das relações laborais. Ao mesmo tempo, a função social não pode ser interpretada de modo a subtrair do empresário o direito à previsibilidade contratual, à segurança jurídica e à proteção de sua liberdade de iniciativa, igualmente alicerçada na Constituição.

Nesse sentido, é necessário construir uma dogmática do Direito do Trabalho que reconheça a complexidade do mundo contemporâneo, a diversidade de formas de trabalho, e a necessidade de equilíbrio entre proteção e autonomia. A empresa não é um ente opressor por definição, e o trabalhador não é um sujeito em permanente estado de vulnerabilidade jurídica. Ambos são polos de uma relação contratual que deve ser regida por boa-fé, transparência e justiça distributiva.

Por fim, é papel da doutrina jurídica, das associações empresariais e da jurisprudência superior - em especial do TST e do STF - oferecer diretrizes claras, estáveis e coerentes que permitam ao empresário orientar sua conduta sem depender da sorte ou do humor judicial.

A blindagem jurídica não deve ser vista como uma tentativa de fuga ao Direito, mas como expressão legítima da segurança jurídica, valor fundante do Estado de Direito moderno.

Enquanto não se consolida esse novo paradigma, é dever do jurista advertir: a insegurança jurídica nas relações de trabalho, tal como hoje configurada, não prejudica apenas o empresário individualmente considerado, mas corrói a própria base da economia nacional, inibe a formalização do emprego, fomenta a litigiosidade e desestimula a inovação. A superação dessa disfunção exige maturidade institucional, racionalidade interpretativa e uma compreensão profunda de que o Direito, para ser justo, deve antes ser estável.

Quanto ao caso que mencionei, ainda iremos recorrer, com a esperança - mínima, mas necessária - de que instâncias superiores possam corrigir a distorção. Essa expectativa, contudo, não é apenas de uma parte ou de um advogado, mas de todo o tecido social que depende da previsibilidade das instituições para prosperar. A confiança no Judiciário não pode ser exceção: deve ser regra. Enquanto ela oscilar entre avanços e retrocessos, o empresário continuará a operar na sombra da incerteza, e o trabalhador, paradoxalmente, permanecerá exposto a um sistema que, ao pretender protegê-lo a qualquer custo, acaba por comprometer a própria dignidade do trabalho.

Autor

Felipe Magosso Bonilha Cavaggioni Advogado, sócio do Bueno & Cavaggioni, com atuação em direito empresarial e contencioso cível. Pós-graduado pela FGV-SP, com extensão acadêmica na Università degli Studi di Torino (Itália).

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