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Lei 14.754/23 - Quando a lei chama de renda o que não é renda

A lei 14.754/23 tributa "renda ficta" de offshores contrariando a Constituição, que condiciona o IR à renda efetiva.

16/10/2025

"Se a lei pudesse chamar de compra o que não é compra, de importação o que não é importação, de exportação o que não é exportação, de renda o que não é renda, ruiria todo o sistema tributário inscrito na Constituição." - Ministro Luiz Galotti (RE 71.758/1973).

A advertência profética do ministro Galotti encontra novo desafio na lei 14.754/23, que institui tributação automática sobre ganhos não realizados em entidades controladas no exterior. O art. 5º da referida lei estabelece que os lucros apurados por essas entidades "serão tributados em 31 de dezembro de cada ano", prescindindo de distribuição ou qualquer ato que configure disponibilidade econômica.

Esta inovação legislativa afronta a arquitetura constitucional da tributação da renda, criando obrigação tributária sobre acréscimos patrimoniais meramente escriturais. Em outras palavras, tributa-se expectativa de renda, não renda efetiva.

1. A competência constitucional para tributar renda

A competência prevista no art. 153, III da CF/88 delimita materialmente o poder de tributar sobre "renda e proventos de qualquer natureza", conceito explicitado no art. 43 do CTN como "aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica".

A lei 14.754/23 substitui "aquisição da disponibilidade" por "apuração contábil de lucros", transmutando o conceito constitucional de renda. O conceito constitucional de renda não constitui mera rubrica formal, mas delimita substancialmente o poder de tributar. Como ensina Paulo de Barros Carvalho, "a competência tributária é matéria eminentemente constitucional (...) Uma vez cristalizada a delimitação do poder legiferante pelo constituinte, a matéria dá-se por pronta e acabada".

2. A insuficiência do argumento fazendário

A União fundamenta a constitucionalidade da lei 14.754/23 no § 2º do art. 43 do CTN: "Na hipótese de receita ou de rendimento oriundos do exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará sua disponibilidade, para fins de incidência do imposto referido neste artigo."

Ocorre que, ao pretender definir o "quando", a lei 14.754/23 invadiu o campo da incidência sob aspecto material e redefiniu o "que". A simples leitura do § 2º permite concluir que apenas o aspecto temporal da disponibilidade da renda pode ser objeto de regulação, jamais seu aspecto material.

A distinção é fundamental: autorizar a lei a definir o momento da disponibilidade pressupõe que esta efetivamente ocorreu. Não se pode confundir autorização para antecipação temporal com autorização para criação de ficção jurídica que prescinda da própria disponibilidade.

Ademais, o art. 110 do CTN estabelece vedação expressa contra alteração de "institutos de direito privado utilizados pela Constituição para definir competências tributárias". O conceito de disponibilidade econômica constitui instituto incorporado constitucionalmente, não podendo ser desnaturado pelo legislador ordinário.

3. A violação ao princípio da capacidade contributiva

3.1. Regimes tributários distintos: Competência versus caixa

As pessoas jurídicas tributadas pelo Lucro Real e Presumido submetem-se obrigatoriamente ao regime de competência, reconhecendo receitas e despesas independentemente do recebimento ou pagamento. As pessoas físicas, diversamente, submetem-se ao regime de caixa por expressa determinação legal, exigindo disponibilidade efetiva para configuração do fato gerador.

Esta diferenciação decorre da própria natureza dos sujeitos tributários. A pessoa jurídica possui estrutura patrimonial e contábil que permite reconhecer acréscimos antes de sua efetiva disponibilidade. A pessoa física manifesta capacidade contributiva apenas quando os recursos ingressam efetivamente em seu patrimônio.

3.2. A inversão da lógica constitucional

O princípio da capacidade contributiva, previsto no art. 145, § 1º da CF, exige que a tributação incida sobre manifestações reais de riqueza. Valorização meramente contábil não constitui manifestação real de capacidade contributiva, pois pode desaparecer sem qualquer ato do contribuinte.

A tributação de ganhos não realizados inverte a lógica constitucional ao exigir que o contribuinte pague tributo sobre riqueza que não possui efetivamente, violando não apenas a capacidade contributiva, mas a própria racionalidade do sistema tributário.

3.3. Exemplo prático: A volatilidade como "renda"

Considere a seguinte situação:

LETS MAKE MONEY LTD.

Pela lei 14.754/23, considerando taxa de câmbio hipotética de R$ 5,50/US$:

O contribuinte deve pagar R$ 247.500,00 sobre uma "renda" que existe apenas no papel, podendo desaparecer com a oscilação do mercado no dia seguinte.

Evidência de que se alterou o conceito de renda e não o momento da tributação: em 2/1/25, Elon Musk publica um tweet controverso sobre a economia americana, causando queda de 10% nas ações da empresa. O patrimônio da LETS MAKE MONEY LTD. despenca para US$ 1.350.000,00, mas o contribuinte brasileiro já terá pago R$ 247.500,00 sobre um ganho fictício que se reduziu drasticamente por um simples post nas redes sociais, 24 horas após a "marcação da base de cálculo" do ganho (que nunca existiu!) sobre o qual recairá a tributação.

Ora, é evidente que não há se falar em renda! As ações nunca foram vendidas e, portanto, o dinheiro jamais foi expressão de riqueza efetiva. Tal tributação ocorre sobre uma variação contábil que registra, num determinado momento, a volatilidade de mercado, como se renda efetiva fosse. A lei 14.754/23 tributa o que não existe, cobrando imposto (de renda) sobre expectativas patrimoniais ao sabor do vento (dos mercados).

4. A indevida desconsideração da personalidade jurídica

Os recursos permanecem na pessoa jurídica controlada - no exemplo, a LETS MAKE MONEY LTD. -, constituindo patrimônio distinto do controlador. A personalidade jurídica não é ficção contábil, mas realidade jurídica que impede confusão patrimonial. O controlador pode decidir sobre a distribuição dos lucros, mas esta decisão não equivale à própria distribuição.

Aceitar que controle equivale à disponibilidade significa desconsiderar a personalidade jurídica para fins tributários, violando princípios fundamentais do Direito Societário. Entre o poder de decidir e a efetiva disponibilidade existe diferença conceitual intransponível - ou ao menos deveria existir, se respeitados os fundamentos do direito societário que a lei 14.754/23 parece ignorar.

A lei transmuta o conceito de disponibilidade, equiparando mero controle societário à efetiva fruição econômica, criando ficção jurídica incompatível com a estrutura constitucional do sistema tributário.

5. Jurisprudência dos Tribunais Superiores

A jurisprudência dos tribunais superiores oferece respaldo à tese da inconstitucionalidade, estabelecendo precedentes que confirmam a necessidade de acréscimo patrimonial efetivo para configuração do fato gerador do imposto de renda.

Tema 808 do STF (RE 855.091/RS) O Tribunal Pleno fixou que "a materialidade do imposto de renda está relacionada com a existência de acréscimo patrimonial", confirmando que valores só podem ser tributados quando caracterizado efetivo acréscimo patrimonial.

Tema 962 do STF (RE 1.063.187/SC) O STF reafirmou que "a materialidade do tributo está relacionada à existência de acréscimo patrimonial, aspecto ligado às ideias de renda e de proventos de qualquer natureza, bem como ao princípio da capacidade contributiva."

Tema 1.226 do STJ (REsp 2.069.644/SP) O STJ estabeleceu que no Stock Option Plan "não incide IRPF quando da efetiva aquisição de ações (...) dada a inexistência de acréscimo patrimonial em prol do optante adquirente"Se a própria aquisição de ações não gera tributação pela ausência de acréscimo patrimonial, com maior razão sua mera valorização contábil!

6. O mandado de segurança de Ribeirão Preto: "Não Existe Renda Presumida. A Renda Há de Ser Sempre Real"

A tese da inconstitucionalidade da lei 14.754/23 encontrou confirmação judicial no MS 5007446-97.2025.4.03.6102, julgado pela 6ª vara Federal de Ribeirão Preto/SP, sob relatoria do juiz Federal substituto Jonathas Celino Paiola.

O caso envolveu contribuintes cotistas da FAMILIAR INVESTMENTS HOLDING LTD., sediada nas Ilhas Virgens Britânicas, que questionaram a tributação automática sobre ganhos não realizados decorrentes da valorização de ações. A decisão concedeu integralmente a segurança, reconhecendo o direito de excluir da base de cálculo do IRPF os montantes equivalentes à valorização temporária de ações detidas pela offshore.

O magistrado fundamentou sua decisão no cotejamento da doutrina, legislação e CF, citando expressamente que"não existe renda presumida. A renda há de ser sempre real" e que "a renda só deve ser tributada quando realizada, isto é, quando o acréscimo de valor entra efetivamente para o patrimônio do titular".

Como observou o ministro Aliomar Baleeiro (RE 62.791): 'bola de futebol não é segurança nacional. Batom de moça não é segurança nacional.' Parafraseando Baleeiro: variação contábil não é renda!

A decisão nos parece impecável. Espera-se que o TRF-3, inspirado pelos ministros Galotti e Baleeiro, negue provimento à apelação da União e reconheça que variação contábil não é renda. Devemos, contudo, manter-nos "conservadoramente otimistas", afinal não foram poucas as derrotas dos contribuintes neste ano de 2025.

Conclusão: A preservação da integridade constitucional

A lei 14.754/23 representa tentativa de chamar de renda aquilo que não possui tal natureza jurídica, violando os fundamentos constitucionais do sistema tributário brasileiro.

Aceitar a constitucionalidade estabeleceria precedente perigoso para expansão ilimitada da base tributária através de ficções legislativas. Se valorização contábil constitui renda tributável, valorizações de imóveis, obras de arte e participações societárias poderiam ser tributadas pela simples oscilação de mercado, transmutando o imposto de renda em tributo sobre o patrimônio.

A integridade do sistema tributário exige que conceitos constitucionais mantenham sua substância. Se a lei pode chamar de renda aquilo que não é renda, pode igualmente chamar de importação aquilo que não é importação, de exportação aquilo que não é exportação, ruindo todo o sistema tributário inscrito na Constituição.

A preservação do conceito constitucional de renda não constitui formalismo acadêmico, mas compromisso com a supremacia constitucional e a segurança jurídica que fundamenta o Estado de Direito.

A recente decisão da 6ª vara Federal de Ribeirão Preto representa luz em meio às sombras, confirmando que o Poder Judiciário permanece vigilante na defesa dos princípios constitucionais. Contudo, a batalha está apenas começando. O futuro julgamento da apelação pelo TRF3 será teste decisivo para determinar se prevalecerá a integridade constitucional ou a voracidade arrecadatória.

Como advertiu profeticamente o ministro Galotti há mais de cinco décadas, permitir que a lei chame de renda o que não é renda significa aceitar o desmoronamento de todo o sistema tributário constitucional. A escolha é clara: ou preservamos os conceitos fundamentais que estruturam nosso ordenamento, ou assistimos à erosão sistemática das garantias constitucionais do contribuinte.

A Constituição não é carta de intenções, mas norma suprema que delimita o poder estatal. Que assim permaneça.

____________________

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 71.758/GB. Relator: Min. Thompson Flores, 1973.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 855.091/RS (Tema 808). Relator: Min. Dias Toffoli, 2017.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 2.069.644/SP (Tema 1226). Relator: Min. Sérgio Kukina, 2024.

BRASIL. Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Mandado de Segurança nº 5007446-97.2025.4.03.6102. Juiz Federal Substituto Jonathas Celino Paiola. Ribeirão Preto, 19 ago. 2025.

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 32. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.

COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022

Jose Marcello Monteiro Gurgel
Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Sócio do Marins Bertoldi Advogados.

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