Migalhas de Peso

Entre acesso e abuso: Os desafios da gratuidade judicial no Brasil

STJ reforça que renda não pode barrar gratuidade judicial, protegendo vulneráveis, mas alerta para riscos de litigância excessiva e sobrecarga do Judiciário.

17/10/2025
Publicidade
Expandir publicidade

O STJ, ao julgar recentemente o Tema 1.178, reafirmou a centralidade do princípio constitucional do acesso à justiça ao decidir que critérios objetivos, como renda ou patrimônio, não podem servir como fundamento exclusivo para negar a gratuidade judiciária. A decisão preserva a lógica de que a declaração de hipossuficiência goza de presunção relativa de veracidade, de modo que apenas indícios consistentes podem justificar a exigência de comprovação adicional. O entendimento, à primeira vista, reforça a proteção ao mais vulnerável e impede que fórmulas rígidas criem barreiras artificiais a quem depende da Justiça.

Mas há um outro lado desse debate que não pode ser negligenciado. A leitura econômica da litigância revela que, se mal aplicada, a gratuidade irrestrita pode ter um efeito colateral perverso: o de incentivar a judicialização excessiva, contribuindo para o já conhecido cenário de sobrecarga do Judiciário. Ao blindar pedidos de justiça gratuita de um filtro minimamente objetivo, corre-se o risco de transformar um mecanismo de inclusão em um vetor de ineficiência. O acesso universalizado, quando não calibrado, gera uma corrida aos tribunais que não distingue o necessitado do oportunista, fragilizando a própria função do Poder Judiciário como espaço de solução qualificada de conflitos.

Dados recentes do Relatório Justiça em Números do CNJ oferecem contexto empírico para esse temor: estima-se que 34% dos processos arquivados definitivamente na Justiça Estadual tramitem com pedido de gratuidade judicial1. Esse percentual - que, segundo o próprio relatório, pode ser ainda maior por causas de sub-registro ou por tribunais que não registram adequadamente o movimento de decisão pela gratuidade - revela que não se trata de casos isolados nem marginais2. O dado sugere que a gratuidade se tornou uma parcela significativa do volume processual, e isto intensifica o risco de congestionamento, atraso ou recurso desproporcional de estrutura para demandas que poderiam eventualmente contar com algum critério de moderação.

O desafio, portanto, está em encontrar o equilíbrio. A decisão do STJ corretamente afasta fórmulas matemáticas que, sozinhas, não captam a complexidade da realidade econômica do cidadão. No entanto, também não se pode ignorar que o sistema de justiça opera com recursos finitos e que a litigância em massa, estimulada pela ausência de custos, contribui para o congestionamento das pautas e para a demora na entrega das decisões. Uma aplicação acrítica da gratuidade, ainda que em nome de uma nobre garantia constitucional, pode redundar no paradoxo de dificultar o acesso à justiça justamente por comprometer sua efetividade.

Em última instância, o que está em jogo é a necessidade de preservar o direito de acesso sem convertê-lo em uma carta em branco. O olhar econômico demonstra que a eficiência e a justiça social não são valores opostos, mas faces complementares de um mesmo objetivo: assegurar que a porta do Judiciário esteja aberta a quem dela precisa, sem que se torne um corredor congestionado que atrapalha a todos. O STJ deu um passo importante ao reafirmar o princípio da individualização, mas caberá aos magistrados, na prática, a difícil tarefa de aplicar esse entendimento sem perder de vista que a justiça gratuita é um instrumento de inclusão, não de banalização do processo.

_______

1 https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/11/pesq-gratuidade-insper.pdf?utm_source=chatgpt.com

2 https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/11/pesq-gratuidade-insper.pdf?utm_source=chatgpt.com

Autor

Guilherme da Costa Ferreira Pignaneli Sócio no escritório Ernesto Borges Advogados, atua na área de Legal Operation. Autor do livro "Análise Econômica da Litigância". Graduado pela PUC-PR Especialização LLM em Direito Empresarial FGV/RIO; Mestre em Direito Econômico e Socioambiental PUC/PR.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos