“Por trás da aparência da autonomia
esconde-se uma reapropriação pelas direções
e pelas chefias da autonomia dos assalariados” (LINHART, 2007, p. 121).
1. A reconfiguração do vínculo e o esvaziamento dos direitos
No primeiro trimestre de 2025, o Brasil registrou a abertura de 1.407.010 novos CNPJs, dos quais 78% correspondem a MEIs, segundo o Sebrae - Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas1. Esse crescimento representa um aumento de 35% no número de MEIs em comparação ao mesmo período de 2024, enquanto as MPEs - micro e pequenas empresas apresentaram uma alta de 28%.
Nesse contexto de aumento exponencial de ‘microempreendedores’, o Tema de repercussão geral de 1.389 (ARE 1.532.603) do STF discute a competência e ônus da prova nos processos que discutem a existência de fraude no contrato civil/comercial de prestação de serviços e a licitude da contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo para essa finalidade (prática conhecida como pejotização).
A pejotização é a substituição da relação de emprego pela contratação via pessoa jurídica individual e atualmente representa uma das faces mais emblemáticas da precarização das relações de trabalho brasileiras.
Trata-se de um fenômeno que “consiste na contratação de trabalhador subordinado como sócio ou titular de pessoa jurídica, visando mascarar vínculo empregatício por meio da formalização contratual autônoma, em fraude à relação de emprego”2. E, ainda de acordo com Lorena Porto e Paulo Vieira3, um neologismo que transforma artificialmente um empregado em pessoa jurídica.
Na perspectiva do Direito do Trabalho, um direito tutelar, os problemas são múltiplos, mas sobretudo relacionados à violação direta ao princípio da primazia da realidade (segundo o qual a essência fática deve prevalecer sobre a forma contratual) e o incentivo à fraude institucionalizada, a partir de interpretações liberais e economicistas que desconsideram a função social do trabalho e os princípios estruturantes da CLT4.
Ou seja, a pejotização ou ‘cnpejotização’ das pessoas trabalhadoras, destrói uma rede de tutelas que tem como objetivo primordial respeitar limites mínimos de exploração do trabalho e preservar a dignidade e a integridade física, moral e emocional da pessoa.
O fenômeno, ainda que travestido de “modernização” ou “liberdade econômica”, causa danos mensuráveis: queda da renda, ampliação da desigualdade, evasão previdenciária e enfraquecimento da Justiça do Trabalho e da negociação coletiva5. O trabalho que não garante a subsistência deprime e adoece as pessoas trabalhadoras.
Esses efeitos, porém, não se distribuem de forma neutra, uma vez que atingem de modo mais severo as mulheres trabalhadoras, sobretudo gestantes e mães, que enfrentam dupla vulnerabilidade: a discriminação de gênero e a perda da rede protetiva que lhes assegurava estabilidade, licença e seguridade social6.
2. O custo econômico e social da pejotização
Estudos do CESIT7 revelam que a pejotização irrestrita provocaria uma redução de até 20% da renda disponível dos trabalhadores, além de queda de 0,5 ponto percentual no PIB real e um aumento de 10 pontos percentuais no desemprego. A eliminação de direitos como 13º salário, férias, FGTS, licença-maternidade e seguro-desemprego geraria, no curto prazo, um aparente “alívio” para o empregador, mas a longo prazo comprometeria o dinamismo econômico ao contrair o consumo e enfraquecer os fundos públicos de seguridade.
Além disso, a pejotização amplia a desigualdade social, com aumento projetado de até 10 pontos no índice de Gini, ao concentrar renda nas empresas e reduzir o poder de compra das famílias8. A precarização é, portanto, um pacto com a mediocridade econômica, que destrói a base da economia real e, consequentemente compromete o desenvolvimento do país. Nas palavras de Krein, Manzano, Welle e Petrini, “trata-se de uma solução falaciosa que sacrificaria o presente e comprometeria a vida das próximas gerações”9.
3. O impacto sobre a maternidade e as mulheres trabalhadoras
Se a pejotização já é socialmente destrutiva, ela se torna ainda mais cruel quando aplicada às mulheres trabalhadoras grávidas ou mães. A perda do regime jurídico do emprego compromete direitos securitários e trabalhistas fundamentais para elas. A perda da estabilidade no emprego durante e pós gestação e o não pagamento de salário-maternidade e demais coberturas previdenciárias farão com que a mulher tenha que optar entre a maternidade e sua renda (regra geral, de subsistência).
A pejotização reforça o ciclo de exclusão de gênero no mercado de trabalho. As empresas, ao preferirem contratar PJs, eliminam custos associados à maternidade e ao cuidado, penalizando justamente as trabalhadoras que mais necessitam de proteção legal. O resultado é uma feminização da precariedade e da pobreza: mulheres pressionadas a aceitar contratos frágeis, sem proteção contra demissão, assédio ou sobrecarga.
A aplicação da pejotização irrestrita representa uma violação concreta ao direito fundamental à maternidade e uma forma estrutural de marginalização das mulheres no acesso e na permanência no mercado de trabalho.
Ao desconstituir os mecanismos protetivos previstos na Constituição Federal (que asseguram à mulher trabalhadora condições especiais de proteção à maternidade) , essa prática fere também compromissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e a Convenção 103 da OIT - Organização Internacional do Trabalho10, que determinam a adoção de políticas efetivas de amparo à gestante, à parturiente e à lactante.
O discurso do empreendedorismo feminino mascara essa realidade ao exaltar uma abstrata e inexistente “autonomia feminina”11, quando na prática trata-se apenas da supressão da rede de proteção. A retórica da “mulher empreendedora de si mesma” esconde o fato de que muitas são forçadas à informalidade ou à pejotização compulsória para manter algum rendimento, em um cenário marcado pela divisão sexual do trabalho e pela sobrecarga de cuidados.
4. Resistência e reconstrução
Ao cogitar a possibilidade de legalizar a fraude a contrato de trabalho, através da pejotização, o STF atua em uma concepção política onde o nivelamento social, sobretudo o que regula o trabalho e as relações trabalhistas, deve se dar a partir da imposição da ideia de liberdade econômica e de decisão individual, sob a justificativa de desenvolvimento e progresso econômico. Como se quem vive do trabalho de subsistência, como a maior parte das pessoas trabalhadoras no Brasil, gozasse de autonomia privada para negociar condições do contrato de trabalho.
Isso legitima e corrobora a ideia de que um sistema de direitos e garantias para as pessoas que vivem do trabalho é o responsável pelo desemprego, que o direito do trabalho não deve se sobrepor à liberdade contratual e aos interesses do mercado e, por fim, que os sindicatos e o direito de greve são reminiscências de décadas passadas que precisam ser modernizados e superados.
O STF faz a inversão lógica protetiva e confunde o direito de empreender com o direito de explorar sem limites.
A pejotização não é sinônimo de modernização: é a institucionalização da fraude. Seus efeitos ultrapassam o campo jurídico e atingem o núcleo da coesão social e econômica do país. A falsa autonomia oferecida à pessoa trabalhadora esconde a vulnerabilidade e o isolamento; e, no caso das mulheres, intensifica desigualdades estruturais, aprofunda a exclusão e ataca direitos conquistados duramente por elas.
O combate à pejotização exige resistência jurídica, política e pedagógica. Cabe à Justiça reafirmar o princípio da primazia da realidade, ao Estado garantir proteção social universal, e à sociedade civil denunciar a narrativa falaciosa da “liberdade contratual” que esconde a precarização.
Se a proteção for suprimida, o direito do trabalho também o será. Então é importante que se perceba que o que se passa neste julgamento, não é alterar um modo ou um regime contratual específico e sim de extinguir o direito do trabalho.
Em última instância, trata-se de uma disputa civilizatória: entre um país que valoriza o trabalho digno e outro que legitima o simulacro da liberdade em meio à exploração. A escolha determinará não apenas o futuro das relações de trabalho, mas também o tipo de sociedade que o Brasil deseja ser : uma sociedade democrática que valoriza o trabalho digno ou que coloca a exploração do poder econômico acima de tudo.
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1 BRASIL, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/noticias/2025/04/brasil-registra-abertura-de-1-4-milhao-de-pequenos-negocios-no-primeiro-trimestre-do-ano. Último acesso em: 13. out. 2025.
2 PORTO, Lorena Vasconcelos; VIEIRA, Paulo Joarês. A “pejotização” na reforma trabalhista e a violação às normas internacionais de proteção ao trabalho. JusLaboris, 2019. Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12178/162073. Acesso em: 13 out. 2025.
3 PORTO, Lorena Vasconcelos; VIEIRA, Paulo Joarês. A “pejotização” na reforma trabalhista e a violação às normas internacionais de proteção ao trabalho. JusLaboris, 2019. Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12178/162073. Acesso em: 13 out. 2025.
4 RODRIGUES, Adriana L. S. Lamounier; BRANT, José Caldeira. Relação de emprego "versus" trabalho autônomo: fim do princípio da primazia da realidade?. In: HORTA, D. A; FABIANO, I.M.A; KOURY, L.R.N; OLIVEIRA, S.G. (Org.). Direito do Trabalho e Processo do Trabalho: Reforma Trabalhista: principais alterações. 1ed.São Paulo: LTr, 2018, v. , p. 167-173.
5 KREIN, Dari; MANZANO, Marcelo; WELLE, Arthur; PETRINI, Gabriel. Pejotização: armadilha para o Brasil. Disponível em: https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/pejotizacao-armadilha-para-brasil/. Acesso em 13.out.2025.
6 CARVALHO, Lívia. Empreendedoras ou precarizadas? Como a pejotização penaliza as mulheres. Ribeirão Preto, 2025. Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-por-elas/431432/empreendedoras-ou-precarizadas-como-a-pejotizacao-penaliza-as-mulheres. Acesso em 13.out.2025.
7 WELLE, Arthru; PETRINI, Gabriel. Nota Técnica (2025) usando modelos baseados em agentes (ABM) para avaliar os efeitos da adoção ampla da pejotização. In: KREIN, Dari; MANZANO, Marcelo; WELLE, Arthur; PETRINI, Gabriel. Pejotização: receita para uma economia mais frágil. São Paulo, 2025. Disponível em: https://jornalggn.com.br/artigos/pejotizacao-receita-para-uma-economia-mais-fragil/. Último acesso em 13.out.2025.
8 KREIN, Dari; MANZANO, Marcelo; WELLE, Arthur; PETRINI, Gabriel. Pejotização: armadilha para o Brasil. Disponível em: https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/pejotizacao-armadilha-para-brasil/. Acesso em 13.out.2025.
9 KREIN, Dari; MANZANO, Marcelo; WELLE, Arthur; PETRINI, Gabriel. Pejotização: armadilha para o Brasil. Disponível em: https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/pejotizacao-armadilha-para-brasil/. Acesso em 13.out.2025.
10 PINTO, Luiza O. Ramos. A precarização do trabalho das mulheres na perspectiva do tema 1389 do Supremo Tribunal Federal Brasileiro. Anais do X Congresso Internacional de Direitos Humanos de Coimbra, v. 10 n. 1 (2025).
11 CARVALHO, Lívia. Empreendedoras ou precarizadas? Como a pejotização penaliza as mulheres. Migalhas. Ribeirão Preto, 2025. Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-por-elas/431432/empreendedoras-ou-precarizadas-como-a-pejotizacao-penaliza-as-mulheres. Acesso em 13.out.2025.