Migalhas de Peso

Abstrativização das ações abstratas: Um caminho a se perfazer

Não faz mais sentido manter o entendimento de que a vinculação em sede de ações do controle concentrado fique limitada à parte dispositiva da decisão.

28/10/2025

As ações do controle concentrado de constitucionalidade são sempre tema que desperta a atenção do público jurídico, uma vez que suas peculiaridades nos remetem às bases da teoria geral do processo com as devidas adaptações. Se o processo civil foi pensado para, ao fim e ao cabo, se produzir uma norma particular e concreta - a sentença - nos processos abstratos, por mais que seja concreto o comando (a declaração de inconstitucionalidade da lei X), seus efeitos transcendem as partes envolvidas (sequer há partes em sentido material), uma vez que o objeto da ação de inconstitucionalidade, na maior parte das vezes, é uma lei, ou seja, uma norma geral, abstrata e impessoal. Sua nulidade impacta, de saída, a todos, seus destinatários naturais.

Até o advento do atual CPC, tal realidade ficava restrita às ações do controle concentrado, pois ainda não havia a regulamentação do regime jurídico da repercussão geral atinente ao recurso extraordinário, ficando esta limitada a ser apenas um requisito de admissibilidade recursal. Isso gerava a curiosa situação: um recurso extraordinário para ser admitido tinha a sua repercussão geral reconhecida, no entanto, a eficácia da sua decisão judicial era inter partes - de modo que havia repercussão geral do caso, mas a respectiva decisão não repercutia para o público geral, ficando restrita às partes.

Essa situação foi devidamente corrigida com o advento do atual diploma processual, notadamente no art. 1.035, §5º e seguintes, que instituiu o regime jurídico da repercussão geral, isto é, agora a decisão repercute de maneira geral, não ficando mais restrita às partes conflitantes. Com isso, é fixada uma tese que funciona não apenas como norma geral do caso concreto, mas também passa a ser de observância obrigatória para outros casos semelhantes. Em termos de abstrativização do processo, o regime da repercussão geral deu um passo à frente em relação às ações do controle concentrado, pois o que se está a tonar abstrato é uma inteligência, uma ratio (a ratio decidendi) e não apenas o seu dispositivo.

A tese da repercussão geral é apenas, por assim dizer, a ponta do iceberg, a fachada do prédio, a conclusão de uma profunda operação mental. O que vincula o destinatário não é apenas a tese veiculada no tema de repercussão geral, mas esse percurso mental que lhe dá sustentação.

Atentos a esta tendência de abstrativização, imprescindível para adoção de um modelo que valorize os precedentes judiciais, já há algum tempo se debateu no STF acerca da aplicação do que se convencionou chamar de transcendência dos motivos determinantes. Um importante debate que restou, em tese, interrompido por decisões que não reconheceram a sua aplicação nas ações de controle concentrado.

Transcrevo abaixo o resumo das reclamações 8.168/SC e 2.2012/RS feito por Márcio André Lopes Cavalcante1:

O STF não admite a “teoria da transcendência dos motivos determinantes”.

Segundo a teoria restritiva, adotada pelo STF, somente o dispositivo da decisão produz efeito vinculante. Os motivos invocados na decisão (fundamentação) não são vinculantes.

A reclamação no STF é uma ação na qual se alega que determinada decisão ou ato:

Não cabe reclamação sob o argumento de que a decisão impugnada violou os motivos (fundamentos) expostos no acórdão do STF, ainda que este tenha caráter vinculante. Isso porque apenas o dispositivo do acórdão é que é vinculante.

Assim, diz-se que a jurisprudência do STF é firme quanto ao não cabimento de reclamação fundada na transcendência dos motivos determinantes do acórdão com efeito vinculante.

STF. Plenário. Rcl 8168/SC, rel. orig. Min. Ellen Gracie, red. p/ o acórdão Min. Edson Fachin, julgado em 19/11/2015 (Info 808).

STF. 2ª Turma. Rcl 22012/RS, Rel. Min. Dias Toffoli, red. p/ ac. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 12/9/2017 (Info 887).

Ocorre que, embora por um lado tenha o STF reconhecido a não aplicação da transcendência dos motivos determinantes, por outro sempre reconheceu que a corte estava em vias de abraçar a mencionada teoria. Vejamos as luminosas palavras da ministra Cármen Lúcia por ocasião dos debates das ADIns - Ações Diretas de Inconstitucionalidade 3.406/RJ e 3.470/RJ e constam nos anais do informativo 886 do pretório excelso 2:

“A ministra Cármen Lúcia, na mesma linha, afirmou que a Corte está caminhando para uma inovação da jurisprudência no sentido de não ser mais declarado inconstitucional cada ato normativo, mas a própria matéria que nele se contém."

Ora, caminhar para reconhecer a inconstitucionalidade da matéria - e não simplesmente da norma por meio da qual ela é veiculada - significa caminhar rumo à adoção da transcendência dos motivos determinantes, o que em outras palavras, significa dizer perfazer o caminho da abstrativização das ações do controle concentrado: não mais será inconstitucional apenas a lei X, mas sim a matéria que ela trata.

Não foi outro o raciocínio empreendido pelo STF por ocasião do julgamento da ADIn 5.105/DF segundo o qual, por não vincularem o parlamento, caso o Poder Legislativo queira editar nova lei com conteúdo idêntico ao declarado inconstitucional pelo pretório excelso em julgamento abstrato de outra lei, a novel legislação nasce com presunção de inconstitucionalidade, impondo ao legislador, na exposição de motivos, o ônus argumentativo de demonstrar que “a correção do precedente faz-se necessária, ou, ainda, comprovar, lançando mão de novos argumentos, que as premissas fáticas e axiológicas sobre as quais se fundou o posicionamento jurisprudencial não mais subsistem, em exemplo acadêmico de mutação constitucional pela via legislativa”. 3

Não faz mais sentido, diante do atual regime de valorização da jurisprudência como fonte não só do direito, mas de segurança jurídica e estabilidade institucional, manter o entendimento de que a vinculação em sede de ações do controle concentrado fique limitada à parte dispositiva da decisão, quando sua maior riqueza está nas suas razões, na norma geral do caso concreto, na ratio decidendi.

Se isso ganha relevo com o regime de repercussão geral já aplicado há anos pelo STF, em que há uma abstrativização de ações concretas, seria incoerente manter uma posição que nos levaria a uma espécie de concretização das ações abstratas, mantendo-nos presos ao dispositivo que, como já dito, nada mais é do que a ponta do iceberg, a pequena parte aparente de uma realidade muito maior. Esta sim, a razão de decidir, é que deve ser a regente da tomada de decisões futuras e sua vinculação só pode acontecer se o caminho rumo à abstração das ações do controle concentrado (ações abstratas por natureza) se perfizer, nos termos apontados pela ministra Cármen Lúcia que restaram registrados no informativo 886.

___________________

1 CAVALCANTE, Márcio André Lopes. O STF não admite a teoria da transcendência dos motivos determinantes. Buscador Dizer o Direito, Manaus. Disponível em: https://buscadordizerodireito.com.br/jurisprudencia/5349/o-stf-nao-admite-a-teoria-da-transcendencia-dos-motivos-determinantes. Acesso em: 23/10/2025 - 17:04   

2 https://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo886.htm

3 DIREITO CONSTITUCIONAL E ELEITORAL. DIREITO DE ANTENA E DE ACESSO AOS RECURSOS DO FUNDO PARTIDÁRIO ÀS NOVAS AGREMIAÇÕES PARTIDÁRIAS CRIADAS APÓS A REALIZAÇÃO DAS ELEIÇÕES. REVERSÃO LEGISLATIVA À EXEGESE ESPECÍFICA DA CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NAS ADIs 4490 E 4795, REL. MIN . DIAS TOFFOLI. INTERPRETAÇÃO CONFORME DO ART. 47, § 2º, II, DA LEI DAS ELEICOES, A FIM DE SALVAGUARDAR AOS PARTIDOS NOVOS, CRIADOS APÓS A REALIZAÇÃO DO PLEITO PARA A CÂMARA DOS DEPUTADOS, O DIREITO DE ACESSO PROPORCIONAL AOS DOIS TERÇOS DO TEMPO DESTINADO À PROPAGANDA ELEITORAL GRATUITA NO RÁDIO E NA TELEVISÃO. LEI Nº 12 .875/2013. TEORIA DOS DIÁLOGOS CONSTITUCIONAIS. ARRANJO CONSTITUCIONAL PÁTRIO CONFERIU AO STF A ÚLTIMA PALAVRA PROVISÓRIA (VIÉS FORMAL) ACERCA DAS CONTROVÉRSIAS CONSTITUCIONAIS. AUSÊNCIA DE SUPREMACIA JUDICIAL EM SENTIDO MATERIAL . JUSTIFICATIVAS DESCRITIVAS E NORMATIVAS. PRECEDENTES DA CORTE CHANCELANDO REVERSÕES JURISPRUDENCIAIS (ANÁLISE DESCRITIVA). AUSÊNCIA DE INSTITUIÇÃO QUE DETENHA O MONOPÓLIO DO SENTIDO E DO ALCANCE DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS. RECONHECIMENTO PRIMA FACIE DE SUPERAÇÃO LEGISLATIVA DA JURISPRUDÊNCIA PELO CONSTITUINTE REFORMADOR OU PELO LEGISLADOR ORDINÁRIO . POSSIBILIDADE DE AS INSTÂNCIAS POLÍTICAS AUTOCORRIGIREM-SE. NECESSIDADE DE A CORTE ENFRENTAR A DISCUSSÃO JURÍDICA SUB JUDICE À LUZ DE NOVOS FUNDAMENTOS. PLURALISMO DOS INTÉRPRETES DA LEI FUNDAMENTAL. DIREITO CONSTITUCIONAL FORA DAS CORTES . ESTÍMULO À ADOÇÃO DE POSTURAS RESPONSÁVEIS PELOS LEGISLADORES. STANDARDS DE ATUAÇÃO DA CORTE. EMENDAS CONSTITUCIONAIS DESAFIADORAS DA JURISPRUDÊNCIA RECLAMAM MAIOR DEFERÊNCIA POR PARTE DO TRIBUNAL, PODENDO SER INVALIDADAS SOMENTE NAS HIPÓTESES DE ULTRAJE AOS LIMITES INSCULPIDOS NO ART. 60, CRFB/88 . LEIS ORDINÁRIAS QUE COLIDAM FRONTALMENTE COM A JURISPRUDÊNCIA DA CORTE (LEIS IN YOUR FACE) NASCEM PRESUNÇÃO IURIS TANTUM DE INCONSTITUCIONALIDADE, NOTADAMENTE QUANDO A DECISÃO ANCORAR-SE EM CLÁUSULAS SUPERCONSTITUCIONAIS (CLÁUSULAS PÉTREAS). ESCRUTÍNIO MAIS RIGOROSO DE CONSTITUCIONALIDADE. ÔNUS IMPOSTO AO LEGISLADOR PARA DEMONSTRAR A NECESSIDADE DE CORREÇÃO DO PRECEDENTE OU QUE OS PRESSUPOSTOS FÁTICOS E AXIOLÓGICOS QUE LASTREARAM O POSICIONAMENTO NÃO MAIS SUBSISTEM (HIPÓTESE DE MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL PELA VIA LEGISLATIVA). 1 . O hodierno marco teórico dos diálogos constitucionais repudia a adoção de concepções juriscêntricas no campo da hermenêutica constitucional, na medida em que preconiza, descritiva e normativamente, a inexistência de instituição detentora do monopólio do sentido e do alcance das disposições magnas, além de atrair a gramática constitucional para outros fóruns de discussão, que não as Cortes. 2. O princípio fundamental da separação de poderes, enquanto cânone constitucional interpretativo, reclama a pluralização dos intérpretes da Constituição, mediante a atuação coordenada entre os poderes estatais - Legislativo, Executivo e Judiciário - e os diversos segmentos da sociedade civil organizada, em um processo contínuo, ininterrupto e republicano, em que cada um destes players contribua, com suas capacidades específicas, no embate dialógico, no afã de avançar os rumos da empreitada constitucional e no aperfeiçoamento das instituições democráticas, sem se arvorarem como intérpretes únicos e exclusivos da Carta da Republica. 3 . O desenho institucional erigido pelo constituinte de 1988, mercê de outorgar à Suprema Corte a tarefa da guarda precípua da Lei Fundamental, não erigiu um sistema de supremacia judicial em sentido material (ou definitiva), de maneira que seus pronunciamentos judiciais devem ser compreendidos como última palavra provisória, vinculando formalmente as partes do processo e finalizando uma rodada deliberativa acerca da temática, sem, em consequência, fossilizar o conteúdo constitucional. 4. Os efeitos vinculantes, ínsitos às decisões proferidas em sede de fiscalização abstrata de constitucionalidade, não atingem o Poder Legislativo, ex vi do art. 102, § 2º, e art . 103-A, ambos da Carta da Republica. 5. Consectariamente, a reversão legislativa da jurisprudência da Corte se revela legítima em linha de princípio, seja pela atuação do constituinte reformador (i.e ., promulgação de emendas constitucionais), seja por inovação do legislador infraconstitucional (i.e., edição de leis ordinárias e complementares), circunstância que demanda providências distintas por parte deste Supremo Tribunal Federal. 5 .1. A emenda constitucional corretiva da jurisprudência modifica formalmente o texto magno, bem como o fundamento de validade último da legislação ordinária, razão pela qual a sua invalidação deve ocorrer nas hipóteses de descumprimento do art. 60 da CRFB/88 (i.e ., limites formais, circunstanciais, temporais e materiais), encampando, neste particular, exegese estrita das cláusulas superconstitucionais. 5.2. A legislação infraconstitucional que colida frontalmente com a jurisprudência (leis in your face) nasce com presunção iuris tantum de inconstitucionalidade, de forma que caberá ao legislador ordinário o ônus de demonstrar, argumentativamente, que a correção do precedente faz-se necessária, ou, ainda, comprovar, lançando mão de novos argumentos, que as premissas fáticas e axiológicas sobre as quais se fundou o posicionamento jurisprudencial não mais subsistem, em exemplo acadêmico de mutação constitucional pela via legislativa . Nesse caso, a novel legislação se submete a um escrutínio de constitucionalidade mais rigoroso, nomeadamente quando o precedente superado amparar-se em cláusulas pétreas. 6. O dever de fundamentação das decisões judicial, inserto no art. 93 IX, da Constituição, impõe que o Supremo Tribunal Federal enfrente novamente a questão de fundo anteriormente equacionada sempre que o legislador lançar mão de novos fundamentos . 7. O Congresso Nacional, no caso sub examine, ao editar a Lei nº 12.875/2013, não apresentou, em suas justificações, qualquer argumentação idônea a superar os fundamentos assentados pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento das ADIs nº 4430 e nº 4795, rel. Min . Dias Toffoli, em que restou consignado que o art. 17 da Constituição de 1988 - que consagra o direito político fundamental da liberdade de criação de partidos - tutela, de igual modo, as agremiações que tenham representação no Congresso Nacional, sendo irrelevante perquirir se esta representatividade resulta, ou não, da criação de nova legenda no curso da legislatura. 8. A criação de novos partidos, como hipótese caracterizadora de justa causa para as migrações partidárias, somada ao direito constitucional de livre criação de novas legendas, impõe a conclusão inescapável de que é defeso privar as prerrogativas inerentes à representatividade política do parlamentar trânsfuga. 9. No caso sub examine, a justificação do projeto de lei limitou-se a afirmar, em termos genéricos, que a regulamentação da matéria, excluindo dos partidos criados o direito de antena e o fundo partidário, fortaleceria as agremiações partidárias, sem enfrentar os densos fundamentos aduzidos pelo voto do relator e corroborado pelo Plenário. 10. A postura particularista do Supremo Tribunal Federal, no exercício da judicial review, é medida que se impõe nas hipóteses de salvaguarda das condições de funcionamento das instituições democráticas, de sorte (i) a corrigir as patologias que desvirtuem o sistema representativo, máxime quando obstruam as vias de expressão e os canais de participação política, e (ii) a proteger os interesses e direitos dos grupos políticos minoritários, cujas demandas dificilmente encontram eco nas deliberações majoritárias . 11. In casu, é inobjetável que, com as restrições previstas na Lei nº 12.875/2013, há uma tentativa obtusa de inviabilizar o funcionamento e o desenvolvimento das novas agremiações, sob o rótulo falacioso de fortalecer os partidos políticos. Uma coisa é criar mecanismos mais rigorosos de criação, fusão e incorporação dos partidos, o que, a meu juízo, encontra assento constitucional . Algo bastante distinto é, uma vez criadas as legendas, formular mecanismos normativos que dificultem seu funcionamento, o que não encontra guarida na Lei Maior. Justamente por isso, torna-se legítima a atuação do Supremo Tribunal Federal, no intuito de impedir a obstrução dos canais de participação política e, por via de consequência, fiscalizar os pressupostos ao adequado funcionamento da democracia. 12. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade dos arts . 1º e 2º, da Lei nº 12.875/2013.

(STF - ADI: 5105 DF, Relator.: LUIZ FUX, Data de Julgamento: 01/10/2015, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 16/03/2016)

Igor Awad Barcellos
Assessor para assuntos jurídicos do TJ/ES, professor universitário, ex-presidente da Comissão de Bioética e Biodireito da OAB/ES, escritor, autor do livro Retrato do Mundo, mestre em Filosofia.

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